O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Violência política nos EUA: Terror e oposição aos direitos humanos

Quando eu fazia mestrado, na década de 1990, escutei uma discussão nada edificante entre dois colegas, que nunca mais vi e cujos nomes não recordo. Um sindicalista havia sido assassinado em uma disputa sindical (não lembro qual foi). Um filho de desembargador, que logo daria umas aulas naquela instituição, dirigiu-se zombeteiro a uma colega que era petista, referindo-se à morte: "A esquerda só faz política matando". Ela retrucou: "A direita só faz política corrompendo." A réplica foi ótima: "Mas corromper não vai contra o sistema."
Não vai, certamente; porém, por que dizer que a direita só faz política corrompendo? Ela também não mata?
É claro, claríssimo que nem toda direita é assassina; Fernando Pessoa não tirou a vida de ninguém, e estava até à esquerda de Salazar - afinal, o poeta não era fascista. É também evidente que houve massacres e genocídios de esquerda: por exemplo, ordens de execução sumária ocupam algum espaço na obra completa de Lênin.
Escrevo isto, porém, por causa dos EUA do século XXI. Temos vários exemplos de assassinato na plutocracia estadunidense, em que "esquerdista" (leftist) é um insulto, a tal ponto que pessoas muito ingênuas pensam que o sistema político dos EUA é um caso de bipartidarismo. Há outros partidos: mas só os dois que têm apoio do grande capital logram aparecer. Vejam o Partido Verde e o Partido Comunista.
Esta imagem não é minha; baixei-a do twitpic de Matthew K, que a deixou disponível aqui para ser carregada em blogues. Ela provém dos Republicanos e mostra os alvos que Sarah Palin, ex-candidata a vice-presidente dos EUA, e virtual presidenciável republicana, designou para serem acertados pelos eleitores. Por quê? Votaram pela tímida reforma da saúde que o governo Obama conseguiu aprovar.

Aparentemente, começaram a atender seu apelo, de forma literal: no Arizona, a deputada democrata Gabrielle Giffords foi atingida, com mais dezoito pessoas. Seis já morreram. Ela havia sido reeleita no ano passado.
Seu concorrente republicano, Jesse Kelly, em uma metáfora bélico-eleitoral de pronunciado mau gosto, pediu durante a campanha para que atirassem nela com uma arma automática. Ouçam aqui ou leiam nesta ligação: http://firedoglake.com/2011/01/08/giffords-opponent-jesse-kelly-held-june-event-to-shoot-a-fully-automatic-m16-to-get-on-target-and-remove-gabrielle-giffords/
Será mesmo o faroeste o grande modelo político dos EUA? Ou, pelo menos, do Arizona?
Nem todos os envolvidos foram presos até o momento em que escrevo esta nota - vejam a matéria no portal do jornal The Guardian.
Ainda não são conhecidas as motivações do crime. Sabe-se, porém, que ele foi cometido em um clima de radicalização política promovido pela direita estadunidense, que age explicitamente com base na desinformação pública (como é sustentar que Obama seria comunista e/ou homossexual e/ou islâmico - e que tudo isso seria uma ameaça nacional - e/ou estrangeiro - e, por isso, não poderia ser eleito presidente) e na ameaça.
Entre os mortos, está uma menina de nove anos, Christina Taylor Green, que nasceu em 11 de setembro de 2001, dia em que foi assinada a Carta Democrática Interamericana e o Pentágono e o World Trade Center nos EUA foram atacados por meio de aviões. Uma criança nascida no dia de ataques do terror estrangeiro de radicais islâmicos morreu pela ação terrorista de estadunidenses. Não será um sinal de que a "guerra contra o terror" movida (criminosamente, aliás, como as memórias de Little Bush confirmam) pelo governo estadunidense engana-se um pouco de meios e alvo?
Acho pertinente lembrar da distinção que Hannah Arendt faz entre poder (segundo a pensadora, a capacidade de agir em comum acordo) e a violência, que é meramente instrumental. Normalmente, eles estão juntos. O poder cria um mundo comum e precisa da legitimidade; a violência, por ela mesma, pode apenas destruir - inclusive o poder.
Cito Crises da República (na tradução de José Volkmann, editada pela Perspectiva em 1999): "A violência sempre pode destruir o poder; do cano de um fuzil nasce a ordem mais eficiente, resultando na mais perfeita e instantânea obediência. O que nunca pode nascer daí é o poder. [...] O domínio pela pura violência entra em jogo quando o poder está sendo perdido." (p. 130) e "[...] politicamente a questão é que a perda do poder traz a tentação de substituí-lo pela violência [...]".
Não verificamos essa perda de poder e substituição pela violência na política externa dos EUA, e, no que Arendt chama de efeito bumerangue, também na política interna, com os apelos à violência promovidos pela direita?
A questão da legitimidade é correlata à do direito. Antijuridistas, de direita ou de esquerda, acham que o direito não importa. Os de direita querem minimizar o direito estatal porque preferem a autorregulação produzida pelo grande capital: temos assim o império do mais forte, que é o mais rico. Certa esquerda acha que, extinguindo o direito, virá a emancipação, porque o direito cria sanções e limitações. Ora, já sabiam os romanos que a liberdade precisa da sanção para ser garantida. Mais tarde, Hobbes consequentemente argumentou que liberdades, se ilimitadas, incluem a liberdade de matar e escravizar o outro. A solução dele para o problema era acabar com a liberdade. Em vez disso, é melhor limitá-la: como vivemos em conjunto, o livre arbítrio de um deve encontrar limitação no livre arbítrio do outro - essa é a intersubjetividade.
A Câmara votaria nesta semana um projeto contrário à reforma da saúde. O massacre fez essa agenda política adiar-se. Mas os Republicanos têm nela maioria, e para eles a saúde não pode ser um direito, mas uma simples mercadoria.
Os direitos humanos importam. Que uma direita que recusa o direito à saúde (um direito social) despreze o direito à vida (um direito civil) dos adversários não demonstra a contrario sensu a unidade e a indivisibilidade daqueles direitos?

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