O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Após 400 anos II: a navalha gentil de Rossini

Já escrevi sobre a coleção de ópera resgatada com algumas alterações pela Folha de S. Paulo. Mas eu ainda não tinha visto nenhum volume, pois os dois primeiros eram discos que eu já possuía.
Comprei o terceiro, O Barbeiro de Sevilha, pois a gravação que está nas bancas, de 1952, regida por Serafin, não havia saído na encarnação anterior da coleção. Como essa ópera parece essencial a coleções desse tipo, a de 2007 também a trouxe, mas em gravação de 1997 com Flórez ainda muito jovem, Gruberova e Chernov.
Somente agora descobri, portanto, que nessa coleção da Folha ocorreu o corte de duas seções, a de história do gênero operístico e a de discografia e videografia recomendadas. Mas a explicação da ópera objeto da gravação permanece, e é bem feita. Ainda a acompanham, além do libreto no original e na tradução portuguesa, algumas notas críticas a respeito do disco, que são sutilmente sinceras.
Tendo em vista a falta de sutileza e de agilidade de Gino Bechi (discretamente, afirma-se no disco que a voz dele é para Verdi), a voz limitada de Nicola Monti, a regência sem brilho de Serafin (nesta gravação; em geral, ele é muito bom para a ópera italiana do século XIX), o destaque deve ser mesmo para a Victoria de los Ángeles que, sozinha, vale o disco.
Ela era soprano e, nessa gravação, bem jovem. Não há por que duvidar de seus agudos. No entanto, ao contrário de Gruberova (a cantora que interpretou a Rosina na primeira edição da coleção das grandes óperas), ela optou por cantar a versão original, que é confortável para meio-soprano, e mais bonita do que as tentativas de Lily Pons e quejandas de reescrever a ópera para adaptá-la à sua vaidade vocal.
(Para não acharem que detesto Rosinas sopranos - Rossini, ele mesmo, adaptou o papel para esse tipo de voz, aprecio muito esta interpretação de Maria Callas, que canta um "mi lascio reggere" e "sarò una vipera" com voz de jovenzinha, efeito que não tenta nas duas gravações de estúdio, e acentua sem exagero o "guidarrrrrmmmma").
A história, como se sabe, vem de Beaumarchais, assim como As bodas de Fígaro de Mozart. A ação das duas óperas reflete a sociedade estamental e o poder dos nobres.
Na de Rossini, moça apaixonada por moço tem que driblar seu tutor, que quer casar com ela. No final, o tutor é logrado. Um clichê da época. Rosina, a moça, acha que o moço é pobre. Amor verdadeiro, pois. Quando descobre que ele é também conde, une-se o útil ao agradável.
Lembro quando, adolescente, vi essa ópera pela primeira vez em uma fita VHS. Fiquei irritado com a figura do Conde, que resolve todas as confusões apelando para o seu estatuto de nobre e para privilégios - é um intocável. No final, ameaça atirar em Basílio, o professor de música. Sua arrogância denota a violência estrutural daquela sociedade.
Rossini não questiona esse estado de coisas, embora já vivesse no desmanchar do Antigo Regime. Mozart (embora anterior ao músico italiano), ao contrário, não poderia deixar de ser subversivo, e ele tinha Da Ponte a seu lado - não por acaso estes dois ficaram com a parte politicamente subversiva da história (As bodas de Fígaro, em que o Conde acaba sendo enganado e desmascarado).
O clichê da mocinha que quer casar e do tutor que a deseja (e assim não precisa pagar o dote para ninguém) ficou para o Rossini.
Dito isso, essa ópera é realmente imortal. Tornou-se célebre a história do encontro desse compositor com Beethoven que leu a partitura do Barbeiro e a achou muito engraçada - e disse para Rossini só compor óperas cômicas, pois os italianos não teriam conhecimento musical para as sérias... Eu gosto das óperas sérias de Rossini (como Ermione), mas devo concordar com Stendhal (Vie de Rossini) que, nessa ópera, Rossini é "eminentemente ele mesmo":

Rossini, luttant contre un des génies de la musique dans le Barbier, a eu le bon esprit, soit par hasard, soit bonne théorie, d'être éminemment lui-même.
Le jour où nous serons possédés de la curiosité, avantageuse ou non pour nos plaisirs, de faire une connaissance intime avec le style de Rossini, c'est dans le Barbier que nous devons le chercher.

Contra que "gênio musical" Rossini estava a lutar?? Paisiello, que havia composto décadas antes uma ópera sobre o mesmo libreto! Quase dois séculos depois, nossa avaliação é muito diferente...
Mesmo nesta gravação que a Folha de S. Paulo agora vende, que não é excelente, pode-se notar a grandeza da ópera de Rossini e seus conjuntos, claro (sorrio só ao lembrar de "Buona sera, mio signore"), com os efeitos de crescendo típicos de Rossini; também das árias, que podem ser muito engraçadas - Becchi consegue bradar a famosíssima ária do Fígaro (que para muitos é sinônimo de ópera - na ligação, cantada pelo classudo Thomas Allen), embora às vezes pareça que o barítono italiano está a ameaçar seus fregueses com a navalha. Ele faz mais barulho do que deveria, e as risadinhas não ajudam. Tito Gobbi parece leve perto dele. Lembro de Paulo Fortes, o grande barítono brasileiro, contando como se surpreendeu ao descobrir, na Itália, Bechi tentando recuperar a voz, prejudicada em virtude do uso abusivo.
Rossi-Lemeni canta a famosa ária da calúnia como se tivesse um ovo na boca (efeito cômico que não vale uma omelete), e é uma pena; mas Victoria de los Ángeles canta cheia de espírito "Una voce poco fa", ária que sempre me dá alegria, e "Contro un cor che accende amore", que Rossini compôs para a lição de música.
O disco da Folha traz o texto da "Cessa di più resistere", com o recitativo que a precede, entre colchetes (páginas 74 e 75). Isso ocorre porque a ária não foi gravada, inacessível que é para uma voz como a de Nicola Monti - e para quase todos os tenores dessa época. Ouçam-na aqui por Juán Diego Flórez. Quem conhece A Cinderela (La Cenerentola em italiano) vai reconhecer a melodia de "Non più mesta"... Rossini, que tinha que correr em razão dos prazos, fazia muitos desses empréstimos de ópera a outra.
Às vezes fala-se dos anos 1950 como uma grande época para as vozes, mas cantor é como hortaliça e fruta: depende de safra. Essa década teve grandes intérpretes para Verdi (Bergonzi, Callas, Bastianini, Corelli...) e Wagner (Varnay, Hotter, Mödl, Windgassen...), provavelmente superiores ou muito superiores aos de hoje em dia, porém não tinha muitos tenores e contraltos que fizessem jus a Rossini. Hoje, eles existem.
A Folha resolveu começar a coleção com gravações muito fortes de duas grandes óperas (Fidelio e Carmen) por grandes maestros (Klemperer e Karajan) ao vivo regendo grandes cantores (os tenores Jon Vickers e Nicolai Gedda, por exemplo).
Este Barbeiro não está no mesmo nível, mas não trará demérito para a discoteca de ninguém, ainda mais pelo preço por que está sendo vendido.

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