O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 29 de março de 2011

Desarquivando o Brasil: o projeto de lei para regulamentar o acesso à informação pública


A jornalista Niara de Oliveira está coordenando novamente a campanha virtual Desarquivando o Brasil, agora na terceira edição: trata-se de uma blogagem coletiva pela abertura dos arquivos da ditadura militar no Brasil.
Os blogueiros que quiserem participar desta semana (até o próximo domingo, dia três de abril) pelo direito à memória e à verdade sintam-se livres para avisar no post de Niara que estão aderindo, e participar da campanha em seus blogues e nas redes sociais com o tópico #desarquivandoBR.
O assunto exige uma lembrança sobre o trâmite de projetos de lei para tornar público o acesso à informação pública no Brasil. O projeto de lei 219 de 2003, de autoria do deputado federal Reginaldo Lopes, do PT de Minas Gerais, tinha como fim regulamentar "o inciso XXXIII do art. 5º da Constituição Federal, dispondo sobre prestação de informações detidas pelos órgãos da Administração Pública." Ele o apresentou porque a legislação infraconstitucional estava simplesmente ferindo o acesso à informação (já menciono o decreto de FHC II)), previsto na Constituição da República no dispositivo mencionado, ferindo uma garantia fundamental dos cidadãos brasileiros.
Foi aprovado um projeto substitutivo em 13 de abril de 2010, de autoria do relator, Deputado Mendes Ribeiro Filho (PMDB-RS), que levou em conta o projeto de 2003 e mais alguns, entre eles o do Poder Executivo, que foi encaminhado pela Casa Civil em 2009 à Câmara dos Deputados (5228/2009). Este projeto do Executivo não previa limitação para a renovação do sigilo das informações ultrassecretas (eternizando-o, pois - e quem o fez foi Dilma Rousseff), ao contrário do substitutivo, que só prevê uma única renovação - acabando assim, se aprovado definitivamente, com o sigilo eterno do decreto 4553 de 2002, que Fernando Henrique Cardoso, no apagar das luzes de seu último governo, deixou como herança para o povo e seus (do ex-presidente da república) antigos pares, os cientistas sociais. Lula melhorou-o, mas não foi o suficiente.
O Ministério das Relações Exteriores desejava a eternidade do segredo, ao que parece, por conta de papéis sobre a Guerra do Paraguai e a compra do Acre - não são apenas as Forças Armadas que se posicionam contra o direito à memória e à verdade. O MRE também o faz, e, pior, mais discretamente.
Segundo o substitutivo aprovado na Câmara, o princípio da publicidade aplica-se, em regra, a todos os documentos, sendo o sigilo uma exceção. A lei, se aprovada definitivamente, aplicar-se-á aos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como aos três níveis da federação: União, Estados e Municípios. Também à administração indireta: autarquias, fundações, e a organizações que recebam verbas públicas, como organizações não governamentais. A OAB, imagino, será também afetada.
No entanto, há riscos de restrições ao acesso: o direito à imagem e à honra, previsto no projeto e no Código Civil de forma vaga, pode servir de pretexto para prolongar o sigilo de documentos. O projeto deseja também criar uma Comissão de Reavaliação de Informações, no âmbito da Casa Civil, para os documentos da União. A Comissão não conta com membros da sociedade civil, e pode não ser independente no tratamento e na classificação de informações sigilosas, bem como no pedido de revisão da classificação dos documentos, pedido que pode ser apresentado por qualquer cidadão interessado. Veja-se aqui a composição da Comissão no caput do artigo 35 e o limite na renovação da classificação ultrassecreta no inciso III :

Art. 35. Fica instituída, em contato permanente com a
Casa Civil da Presidência da República, inserida na competência
da União, a Comissão Mista de Reavaliação de Informações,
composta por Ministros de Estado e por representantes dos Poderes
Legislativo e Judiciário, indicados pelos respectivos
presidentes, com mandato de 2 (dois) anos.
§ 1º A Comissão Mista de Reavaliação de Informações
decidirá, no âmbito da administração pública federal, sobre o
tratamento e a classificação de informações sigilosas e terá
competência para:
I - requisitar da autoridade que classificar informação
como ultrassecreta e secreta esclarecimento ou conteúdo,
parcial ou integral da informação;
II - rever a classificação de informações ultrassecretas
ou secretas, de ofício ou mediante provocação de pessoa
interessada, observado o disposto no art. 7º e demais dispositivos
desta Lei; e
III - prorrogar o prazo de sigilo de informação classificada
como ultrassecreta, sempre por prazo determinado, enquanto
o seu acesso ou divulgação puder ocasionar ameaça externa
à soberania nacional ou à integridade do território nacional
ou grave risco às relações internacionais do País, observado
o prazo previsto no § 1º do art. 24, limitado a uma
única renovação.
§ 2º A revisão de ofício a que se refere o inciso II
do § 1º deverá ocorrer, no máximo, a cada 4 (quatro) anos,
após a revisão prevista no art. 39, quando se tratar de documentos
ultrassecretos ou secretos.
§ 3º A não deliberação sobre a revisão pela Comissão
Mista de Reavaliação de Informações nos prazos previstos no §
2º implicará a desclassificação automática das informações.
§ 4º Regulamento disporá sobre a composição, organização
e funcionamento da Comissão Mista de Reavaliação de Informações,
observadas as disposições desta Lei.
Art. 36. O tratamento de informação sigilosa resultante
de tratados, acordos ou atos internacionais atenderá às
normas e recomendações constantes desses instrumentos.


De positivo, a referência ao direito internacional no artigo 36, normalmente mais liberal do que o brasileiro nessa matéria. Aqui, temos os prazos do artigo 24:

Art. 24. A informação em poder dos órgãos e entidades
públicas, observado o seu teor e em razão de sua imprescindibilidade
à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser
classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada.
§ 1º Os prazos máximos de restrição de acesso à informação,
conforme a classificação prevista no caput, vigoram
a partir da data de sua produção e são os seguintes:
I - ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos;
II - secreta: 15 (quinze) anos; e
III - reservada: 5 (cinco) anos.
§ 2º As informações que puderem colocar em risco a
segurança do Presidente e Vice-Presidente da República e respectivos
cônjuges e filhos (as) serão classificadas como reservadas
e ficarão sob sigilo até o término do mandato em
exercício ou do último mandato, em caso de reeleição.
§ 3º Alternativamente aos prazos previstos no § 1º,
poderá ser estabelecida como termo final de restrição de acesso
a ocorrência de determinado evento, desde que este ocorra
antes do transcurso do prazo máximo de classificação.
§ 4º Transcorrido o prazo de classificação ou consumado
o evento que defina o seu termo final, a informação tornar-
se-á, automaticamente, de acesso público.
§ 5º Para a classificação da informação em determinado
grau de sigilo, deverá ser observado o interesse público da
informação, e utilizado o critério menos restritivo possível,
considerados:
I - a gravidade do risco ou dano à segurança da sociedade
e do Estado; e
II - o prazo máximo de restrição de acesso ou o evento
que defina seu termo final.


A importância desse projeto para o pesquisador é imensa. Raros acervos - e o Arquivo Nacional não é uma exceção - tem a política do Arquivo Público do Estado de São Paulo, que abriga os papeis do DEOPS/SP. Nele, encontram-se vários documentos que comprovam a contradição entre a retórica legalista do regime e suas práticas contrárias aos direitos humanos. Por exemplo, podem-se ver as comprovações de execuções, como a de Olavo Hansen, de Manoel Fiel Filho e outros mortos pelo regime, bem como de torturas sobre sobreviventes que foram depois indenizados (como Damaris de Oliveira Lucena).
No entanto, não é tão comum encontrar documentos de outros Estados, e o acervo do DEOPS/SP, embora tenha documentos federais confidenciais e reservados (como diretrizes jurídicas sobre a incomunicabilidade das prisões de suspeitos de crimes políticos, assunto sobre que estou escrevendo), evidentemente não traz um quadro completo dos documentos da União.
Aqui, poderá ver o trâmite do projeto já aprovado na Câmara:
http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=105237
Eis o Substitutivo que seguiu para o Senado Federal.
No Senado, ele foi enviado para diversas Comissões: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=96674. O Senador Eduardo Suplicy apresentou requerimento em 29 de junho de 2010 para que ele fosse também para a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.
De parecer aprovado no Senado, apenas há o da Comissão de Justiça e Cidadania, que foi favorável ao projeto. Curiosamente, ele foi assinado por Romeu Tuma (morreria quatro meses depois) e Demóstenes Torres.
Resta ver se o projeto não será desfigurado no Senado Federal, e se essa Casa será célere na tramitação. Depois, se aprovado, ainda terá que escapar da possibilidade de veto da presidência da república.

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