O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 24 de abril de 2011

Sexualidades que se desviam da direita: Bolsonaro e a Medicina Legal

É assunto velho? Em certo sentido não, pois continua atual. Em outro sentido sim, pois representa sentimentos velhos na sociedade brasileira. Quis escrever a respeito do problema por causa dos racistas que saíram do armário ultimamente. Um representante do Rio de Janeiro na Cãmara dos Deputados, Jair Bolsonaro, do PP, respondeu a uma cantora negra, Preta Gil, que os filhos dele não namorariam uma mulher negra porque não foram criados em um ambiente de promiscuidade como seria o dela. Depois, ele afirmou que se confundiu, achando que ela tinha perguntando se os filhos teriam relações homossexuais.
A alegação do deputado federal, historicamente associado à direita, à tortura e à ditadura militar, é curiosa, pois Preta Gil não namora mulheres [ver nota abaixo] e ele se referiu explicitamente à cantora.
Houve os que suspeitaram que o político do Estado do Rio de Janeiro teria afirmado que se confundiu porque o preconceito racial no Brasil é crime, porém não o contra homossexuais. Não posso garantir isso, claro. O que posso observar é que os dois preconceitos foram ensinados pela mesma "ciência" médico-legal, reproduzida academicamente no Brasil em duas faculdades tradicionais, a de Medicina e a de Direito.
O deputado diz que teria sido absurdo que ele tivesse querido afirmar o que efetivamente disse (que o relacionamento entre negra e branco é promíscuo), porém nada há de mais coerente com aquela "ciência", para a qual o relacionamento entre pessoas de raças diferentes é um desvio sexual.
Estudei Direito. Lembro de ir à biblioteca ler sobre Medicina Legal (o que fiz sozinho, pois minha turma não teve professor da disciplina) e não me interessar muito. Mas sempre me lembrei de que a literatura disponível reproduzia concepções racistas e homofóbicas.
Tomo como exemplo o livro de Medicina Legal de Hélio Gomes da edição do ano em que me formei, 1992. Entre os "desvios do sexo", estão a cromoinversão e a etnoinversão: a preferência por pessoas de cor e de raça diferentes, respectivamente. Como "perversão sexual", está a homossexualidade.

Há casais cromo-invertidos, casados há muitos anos, com filhos de epiderme diversa assim como o tipo de cabelo, analisado em sua qualidade. Esses filhos podem se constituir numa constante preocupação, pois os pais temem que a diferença de cor dos filhos tenha conseqüências graves no futuro.

O autor afirma que não deve existir barreira de cor entre os que se amam, mas que também é impossível impedir a existência do "preconceito de cor" (na verdade, ele estava adiante dos jornalistas de hoje que negam a existência do racismo no Brasil). E acrescenta: "Para alguns psicólogos, o amor de uma mulher branca por negro e vice-versa pode representar uma forma discreta de tendência masoquista."
Como é um livro científico, a história bíblica de Sodoma e Gomorra é citada, e não pelas fontes originais, mas por Raul de Polillo...
A parte sobre homossexualidade envolve a castração dos testículos como um dos métodos para "cura" entre os homens, mas também que "O lesbianismo na jovem pode ser a educação para o erotismo requintado." Aprendemos que as principais causas da "anomalia" são

Perturbações e deficiências mentais, histerismo, esquizofrenia, senilidade, epilepsia, personalidade psicopática, debilidade mental, etc. A anomalia sexual é uma conseqüência, um sintoma das perturbações psíquicas.
Não há nada de novo nisso na medicina legal brasileira. Lembro de Nina Rodrigues sustentando que a mulata era lúbrica e, portanto, depravada e anormal, no livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil, cuja primeira edição é de 1894:

O desequilíbrio entre as faculdades intellectuaes e as affectivas dos degenerados, o desenvolvimento exagerado de umas em detrimento das outras teem perfeito símile nesta melhoria da intelligencia dos mestiços com uma imperfeição tão sensível das qualidades moraes, affectivas, que delles exigia a civilisação que lhes
foi imposta. E esta observação estreita ainda mais as analogias que descubro entre o estado mental dos degenerados superiores e certas manifestações espirituaes dos mestiços. Nestes casos como que se revela em toda a sua plenitude, em toda a sua brutalidade, o conflicto que se trava entre qualidades psychicas, entre condições physicas e physiologicas muito desiguaes de duas raças tão dessemelhantes, e que a transmissão hereditaria fundiu em producto mestiço resultante da união ou cruzamento dellas.
A sensualidade do negro pode attingir então ás raias quasi das perversões seuaes morbidas.
A excitação genesica da classica mulata brazileira não póde deixar de ser considerada um typo anormal. [p. 153]

Para Nina Rodrigues, as "raças inferiores" (índios, negros, mestiços) deveriam ter mais cedo a imputabilidade penal, pois sua maturidade orgânica ocorreria mais cedo (ele ressalta que fruto que amadurece logo se desenvolve menos...) e, quanto mais cedo a justiça agir, melhor.
A associação de tanto a miscigenação quanto a homossexualidade com a sexualidade desviante ocorre em um quadro que atribui um caráter propenso ao crime dos que se engajam nessas atividades.
Nos EUA, já se fala que o gay é o novo negro - no sentido de ser o grupo discriminado que está agora a conseguir avançar na luta pelos direitos civis. No Brasil, contudo, o próprio ensino jurídico contrapunha-se a esses direitos, pregando que esses dois grupos não poderiam "objetivamente", "cientificamente", aspirar à igualdade na partilha do comum. A luta deve-se dar também nesse campo, propiciando novas partilhas, mais igualitárias.

Nota: Errei; Preta Gil declarou que é bissexual assumida.

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