O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 11 de junho de 2011

Desarquivando o Brasil IX: dizendo o incomunicável

O Congresso de Direitos Humanos da ULBRA está acontecendo, mas não pude participar dele, apesar do convite de Moysés Pinto Neto: as cinzas não deixam Porto Alegre, o céu da cidade está fechado.
Na fala que preparei sobre a cultura jurídica autoritária durante a ditadura militar, eu faria, em certo momento, uma alusão aos bombeiros do Rio de Janeiro, que continuam organizados contra a aparente política de desmantelamento da corporação.
Os bombeiros fluminenses recebem péssima remuneração e trabalham em precária condição (vejam o que eles mesmos relatam a respeito). No entanto, foram considerados vândalos pelo governador do Estado, como se um caso grave de vandalismo não fosse justamente governar arruinando o serviço público.
Foram notícia em todo o país a ocupação do quartel central pelos bombeiros, tendo em vista a intransigência do governador, bem como a prisão de 439 deles pelos fuzis do BOPE. O habeas corpus foi concedido há pouco.
Por que eu faria a alusão, se estamos nesta democracia? Lembrando os tempos do DEOPS, as autoridades estaduais tentaram impedir que os advogados dos bombeiros tivessem contato com seus clientes. A OAB do Rio de Janeiro, por meio da Comissão de Prerrogativas, conseguiu que esse direito fosse respeitado. Ademais, a comunicação da prisão à autoridade judicial deixou de ser feita no prazo, tornando ilegais todas as prisões.
Esse quadro remonta a estratégias da ditadura militar: o Código de Processo Penal Militar e a Lei de Segurança Nacional editados em 1969 (ambos sob a forma da legislação autoritária do decreto-lei) previam a incomunicabilidade do preso (porém não da mesma forma, o que gerou dúvidas dos agentes da repressão, que eu iria explicar na palestra impedida pelo céu em cinza). No entanto, o Estatuto da Advocacia dessa época já previa que essa incomunicabilidade não se aplicava ao contato com advogados. Essa previsão, geralmente, não era respeitada.
A conduta evidentemente, não se tornava menos ilegal por ser escondida - o que se desejava era impedir que o preso tivesse acesso à justiça nesse período de incomunicabilidade, em que era, em regra, torturado, e, assim, os abusos sofridos não pudessem ser evitados. A justiça tampouco viria depois da prisão, em razão da cumplicidade entre a Justiça Militar e os aparelhos de tortura. Essa Justiça sistematicamente ignorou as várias notícias de sevícias que recebeu, apesar das fantasias anistóricas de que o Judiciário era independente nessa época. Esses fatos eram arrancados da esfera pública não só pela censura nos meios de comunicação, mas também pelos inquéritos.
Deve-se notar que era vital para a imagem "democrática" da ditadura militar (que o regime buscou preservar apesar das evidências em contrário) mostrar que haveria um Judiciário funcionando no Brasil, e que os subversivos não eram simplesmente eliminados, mas julgados segundo a lei!
Isso significava, na prática, que os direitos humanos poderiam existir formalmente desde que não fossem eficazes socialmente - um exemplo de cultura cínica em relação ao direito.

Um exemplo do problema: o então jovem deputado Hélio Navarro (já falecido), em discurso de 15 de outubro de 1968 (um pouco antes, pois, do AI 5 e da legislação de 1969 que citei), que o Ministério da Guerra difundiu entre órgãos da comunidade de informações, criticou o então secretário de segurança pública do Estado de São Paulo, Hely Lopes Meirelles, por manter estudantes presos no congresso da UNE em Ibiúna incomunicáveis, apesar de decisão judicial em contrário.
O documento, cujo início incluo ao lado, está no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Hely Lopes Meirelles foi um dos papas do direito administrativo no Brasil - e também do direito municipal e do direito de construir. No entanto, há uma diferença entre o que ele escreveu sobre o princípio da legalidade no âmbito do direito público e o que ele fez quando estava engajado em favor da ditadura militar. Mas deixo isso para outros artigos.
Com essas críticas, não é de estranhar que Hélio Navarro tenha sido cassado por meio do AI 5 e cumprido pena no Presídio Tiradentes - caso único entre os deputados federais. Seus passos e manifestações estavam sendo acompanhados atentamente.
No discurso, Navarro afirmou que o jurista tornou-se policial. Esse tipo de jurista, como a cinza, age para interditar o céu.

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