O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

José Sarney ou o esquecimento como política e a afasia como poética

Por enquanto, entre os historiadores, a respeito do episódio constrangedor de o Senado, na presidência de José Sarney, ter apagado do Túnel do Tempo o impeachment de Fernando Collor de Mello, vi apenas as críticas de Marco Antonio Villa e de Carlos Fico.
No entanto, historiadores (quais?) teriam sido os responsáveis por excluir esse fato e outros, também desabonadores para antigos e atuais membros do Senado como a cassação de Luís Estêvão, a fraude e renúncia de Antônio Carlos Magalhães. Menções elogiosas do presidente do Senado foram também incluídas. Está aí um belo argumento para que a história não se torne privilégio legal dessa categoria de profissionais.
A respeito da omissão do impedimento de Collor, atual senador por Alagoas, José Sarney declarou, memoravelmente: "Olha, eu não posso censurar os historiadores encarregados de fazer a história, talvez esse episódio seja apenas um acidente que não devia ter acontecido na história do Brasil."
Trata-se de uma concepção normatizante de história, que substitui o que foi pelo que deveria ter sido. Essa concepção, numa vertente mais radical, foi adotada por grandes potências, como a União Soviética, ao serem apagadas as referências a Trotsky na época de Stalin, por exemplo. O exemplo brasileiro é muito mais ameno e ocorre em sentido oposto: o Senado, em vez de apagar o inimigo, tratou todos os Senadores como amigos e lavou-lhes o currículo. Um exemplo de cordialidade.
Um ponto em comum pode ser encontrado no fato de que a historiografia soviética fundamentava-se na censura, atividade que Sarney defendeu quando foi presidente da república, e pela qual recebeu cumprimentos da TFP com a censura de Je vous salue, Marie de Godard.
No ensaio "Verdade e política" de Entre o passado e o futuro, Hannah Arendt considerou que, mesmo na Alemanha nazista e na União Soviética stalinista, era mais perigoso falar sobre campos de concentração e de extermínio do que expor visões "heréticas" sobre antissemitismo, racismo e comunismo. Nos países democráticos, notava Arendt, esse choque entre a verdade factual e a política verificava-se quando essa verdade, se não desejada, era encarada como mera questão de opinião. Podemos identificar nessa atitude o que fez o atual presidente do Senado Federal ao justificar os historiadores que montaram o Túnel do Tempo.
Trata-se mesmo, contudo, de história, ou de fantasia poética, da saudade do que não foi, como diria Manuel Bandeira? Talvez a lamentável frase do presidente do Senado Federal decorra não de um conflito da verdade factual com a política, e sim com a literatura! Essas declarações do senador me fizeram investigar a concepção de memória na obra poética de José Sarney.
Não ousei fazê-lo com a prosa do autor, já definitivamente analisada pelo genial Millôr Fernandes. Faço-o com a poesia, talvez porque essa faceta da vocação beletrista de Sarney não seja devidamente destacada.
Marimbondos de fogo não seria a melhor obra para tratar disso - o estilo, obviamente, não estava maduro nesse livro. Saudades mortas (São Paulo: Arx, 2002) é que me parece ter levado o memorialismo de Sarney às últimas consequências.
É de lembrar que a obra literária de José Sarney, membro das Academias Maranhense e Brasileira de Letras, conta com a bênção marmórea da imortalidade conferida pelo oficialato acadêmico, entre outros nomes ilustres de nossas letras, como o ex-senador, ex-arenista e ex-vice-presidente Marco Maciel.
O primeiro poema desse livro da maturidade, "Revisitando a Casa da Infância, no Outono", impressiona desde o título: trata-se de uma investigação da memória ao voltar para a terra da infância. O uso bem démodé (ao menos desde os tempos de Cruz e Sousa) das maiúsculas mostra que tudo virou Símbolo ou Alegoria. Vejamos.
O sujeito poético inicia-se em alucinação:

Na máquina em que escrevo
o teclado
de santa alucinação.
Sozinha brilha e aparece
entre tipos e aranhas
a amarga madrugada
do recordar.

Mas ela é "santa", para que saibamos que o poeta não tomou substâncias proibidas nem cometeu excessos condenáveis. Ele vai batendo as palavras (parece máquina datilográfica) e isso leva-o ao "recordar" (a substantivação do verbo serve para dar um toque preciosista que, em todo livro, serve para compensar a falta de poesia no discurso bem prosaico de Sarney). O sujeito começa a ver "nuvens, um pântano, uma cacimba" (poderia ser qualquer coisa, a enumeração é gratuita, assim como todo o poema), até que vem

O poço que amarga o relembrar
onde enchi de água o balde ralado
pedras pretas, musgos do tempo

Novamente a substantivação que tem como fim dar um "ar poético" aos versos do autor. A falta de coesão sintática do terceiro verso poderia indicar alguma emoção que teria levado à desarticulação do discurso, mas, infelizmente, a imagem rasteira de "musgos do tempo" estraga tudo. A frouxidão sintática, por sinal, é uma constante no livro. A memória não consegue mais recordar conjunções e preposições.
O poço é uma poderosa metáfora. Aqui, porém, ela é banalizada pelo solipsismo:

O poço não é o poço
é um espelho
meu rosto copiado
nas águas guardadas
no fundo de mim.

O sujeito reduz tudo a si mesmo ou a seus familiares:
Encontro uma moça de cabelos longos
ajoelhada.
É minha mãe rezando.
Meu pai a falar das coisas de Deus

Bandeira, com sua técnica privilegiada, soube extrair o máximo de emoção com uma escrita sintaticamente bem simples no poema em que todos estão "dormindo profundamente". Sarney não se mostra capaz de fazer algo parecido, pois não há revelação alguma, apenas reiteração, quando indaga, sobre as figuras do passado, "Onde estão? Esmagados no silêncio./ Só tu, alma minha, tens a ressurreição". Note-se o cacófato da maminha que, ou revela falta de ouvido, ou um momento de imodéstia do poeta ao comparar-se a Camões (o soneto "Alma minha gentil...").
Não há conflito, pois - tudo já estava resolvido e encerrado na alma do sujeito poético. Não há realmente morte e, portanto, tampouco ressurreição. No final do poema, a visão, que nada revelava enfim, desfaz-se: "Toda memória está cega/ na saudade morta./ Eu mesmo não estou em mim,/ liberto para sempre da felicidade."
Não estando em si mesmo, perdeu a felicidade - ela é ele mesmo! E quem ele é? Declara-o inesquecivelmente outro poema do mesmo livro, "Auto-Retrato":

Bigode,
indevassável,
eterno,
ausente,
habita
intocável
o latifúndio da minha solidão.

Esses versos pecam apenas pelas três últimas palavras que, desnecessárias para a caracterização, quebram a concisão do verbo poético.
Todo o livro é exemplar por seu tratamento antiproustiano da memória: enquanto, em Proust, as madeleines fazem descortinar décadas de transformações na sociedade francesa, do final do século XIX até o imediato pós-guerra (da Primeira Guerra Mundial), Sarney consegue reduzir sua terra e a velha tradição portuguesa ao solipsismo de um sujeito que não questiona a sua autoproclamada eternidade. Isso ocorre mesmo quando ele tenta emular a poética do século XVI em momentos como "Retalhos de um Poema de um Náufrago da Índia":

Estou no mar das saudades,
nas águas das esperanças,
em África, Macau e Ceilão,
dentro do coração.
[...]
Lisboa, Alfama e Varzim.
Ai que saudades de mim!

Nesse sentido, talvez seja o poeta mais anticamoniano da língua portuguesa, pois o grande cantor do Império português soube abrir-se ao mundo e possuía um domínio da sintaxe e da versificação incomparavelmente superior. Sarney reduz o mundo aos limites canhestros de sua sintaxe e de seus versinhos. Note-se também como as rimas de Sarney, nesse poema (im-im, ão-ão) e alhures, são infantis. Essa deficiência é ratificada no momento de preciosismo ridículo da rima pretensamente rica "amar" com "a mar" (no poema "M de Mar", pueril desde título).
Talvez o único momento em que a rima apresenta realmente um valor expressivo seja este, de "Carta de La Ravardière a El-Rei" (em geral, as referências políticas do poeta Sarney vêm do Ancien Régime, o que é coerente com uma poesia contemporânea seiscentista):

A minha libertação com a maldita sentença
de não voltar ao Maranhão,
não é liberdade,
é escravidão.

De fato, ninguém melhor do que um Sarney para rimar Maranhão com escravidão.
Dessa forma, fico sem saber se foi a péssima historiografia ou a lamentável poesia que inspiraram a fala do excelentíssimo presidente do Senado Federal, antigo presidente acidental da república, mais antigo ainda presidente da ARENA. O que posso afirmar é que a política realizada não foi de melhor quilate.

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