O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

30 dias de leituras: Beckett e o jogo após o fim do mundo

30 livros em um mês
Dia 13: Um livro após o fim do mundo.

Fiquei em dúvida - Dias felizes ou Fim de partida? Minhas lembranças de uma grande encenação argentina, com Pompeyo Audivert, Max Berliner, Pochi Ducasse e Lorenzo Quinteros, com direção de Audivert e Quinteros, que vi em 2009, decidiram pela segunda peça.
Não hesitei, contudo, em relação a este autor, Beckett.
Em Fim de partida, até ocorre uma morte - a de Nell, a mãe de Hamm - mas ela não tem nada de "dramática", pois não altera o curso dos não-acontecimentos. A impressão que sempre tive da peça foi a de que todos, no palco, são póstumos, e o mundo também - tal é a força do texto de Beckett.
No palco, há duas duplas. Uma delas, Hamm e Clov (nomes que sugerem diversas alusões, até mesmo a Hamlet) - este, o serviçal. Os pais de Hamm estão dentro de latões, separados. "O fim está no começo e no entanto continua-se.", exclama Hamm, talvez ecoando o início do segundo dos Quatro Quartetos de Eliot, "East Coker": "In my beginning is my end."
O curioso é que o poema de Eliot, embora tenha um espírito muito diverso, tem alguns versos que poderiam, para mim, estar na peça de Beckett: "The houses are all gone under the sea."; "We must be still and still moving/[...]/ Through the dark cold and the empty desolation,".
Em Fim de partida, o próprio mundo acabou - a comunidade entre os homens se desfez, e também o mundo físico: Hamm, em certo momento, pergunta a Clov se ainda é dia; a resposta vem numa formulação negativa, típica de Beckett: "Não é noite". A pergunta é repetida, Clov diz simplesmente "É". No entanto, não há luz. Hamm indaga se o que ele mesmo sente no rosto é um raio de sol - e Clov nega. Hamm ordena que ele abra a janela, porque deseja ouvir o mar - e nada se ouve: "É porque não há mais navegadores.", afirma. Também não há mais caixões, e é em vão que Hamm pede um para Clov.
Clov chega a ver, do alto da escada e com uma luneta, uma criança imóvel do lado de fora. Ele não sai para matá-la porque também isso não vale a pena - se ela realmente existir, irá até lá, ou morrerá.
Beckett, apesar de tudo, é engraçado - mas de um humor tristíssimo. Clov define assim "ontem': "Quer dizer a merda do dia que veio antes desta merda de dia." Em certo momento, Hamm inverte Smile de Chaplin e diz que choramos por nada, para não rir, e acabamos ficando tristes de verdade...
O texto é magnífico, porém mais impressionantes são os gestos e o que as frases carregam de inarticulado. Tanto as frases quanto os gestos são improfícuos e, por isso mesmo, são realizados - o que me parece algo oposto ao reino dos fins kantiano; temos nessa peça um reino, talvez (Hamm tem muito de tirano), mas sem finalidade alguma.
Diz Hamm, no monólogo final: "Momentos nulos, nulos desde sempre, mas que são a conta, fazem a conta e fecham a história." A partida acabou, mas continua; não há mais apostas nem vitória, mas os lances permanecem, sem sentido senão o da própria repetição.
Li o livro na grande tradução de Fábio de Souza Andrade, publicada pela Cosac & Naify. Na apresentação, ele aproxima a peça de Malone morre: "Em Malone, também confinado ao leito à espera do fim, encontramos um parente próximo de Hamm. Esteta e escritor mal realizado, ele acompanha sua progressão rumo ao silêncio [...]" - a progressão rumo ao silêncio; grande forma de qualificar a obra de Beckett.
Para terminar, uma frase da correspondência de Beckett, uma carta de 1938 que se aplica a este leitor depois de reencontrar esta peça: "It has gone pretty well, though it still hurts me to breathe."

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