O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 17 de setembro de 2011

30 dias de leituras: Dante inquire

30 livros em um mês
Dia 10: Clássico favorito

Não tive dúvida alguma. É a (Divina) Comédia, de Dante. Um clássico, pois é um livro que nunca terminei de reler, e jamais acabarei, pois seria tolo acalentar a ilusão de apreendê-lo totalmente.
O Inferno é dramático, várias vozes se fazem ouvir com suas sentenças e as razões da condenação; o Purgatório, que é minha parte preferida, possui as virtudes comoventes da esperança; o Paraíso, grande momento teológico-poético na voz do Eterno Feminino, é mais abstrato, e talvez seja a seção mais ousada do poema, por tentar descrever o inexprimível. Uma cultura que vede absolutamente a criação de ídolos (o pecado da idolatria...) não pode gerar uma obra com esse caráter.
Li-a pela primeira na tradução oitocentista de Xavier Pinheiro (de onde tiro as citações desta nota). Vasco Graça Moura realizou uma muito bela recentemente. Sobre isso, e Dante em geral, recomendo um grande estudioso da obra de Dante, meu amigo Eduardo Sterzi (também é um dos melhores poetas contemporâneos brasileiros), autor do indispensável Por que ler Dante, editado pela Globo. Por coincidência, hoje saiu mais um artigo de Sterzi sobre esse autor no Estado de S.Paulo. O texto trata das diversas incertezas sobre a biografia do poeta, o que inclui seu próprio nome e sobrenome...
Tais incertezas provavelmente inspiraram um de meus poetas preferidos, Hans Magnus Enzensberger, a escrever um poema, "Identificação policial", do livro O naufrágio do Titanic.
Li-o pela primeira vez em uma antologia que a antiga editora Brasiliense lançou em 1985, com organização de Kurt Scharf e tradução dele mesmo e de Armindo Trevisan, Eu falo dos que não falam. Em 2000, a Companhia das Letras lançou O naufrágio do Titanic: uma comédia, traduzido por José Marcos Mariani de Macedo.
A sintaxe do poema é bem simples - trata-se de uma enumeração com que termina o canto vigésimo-terceiro do livro. O primeiro e o último versos são "Das ist nicht Dante" e "Das ist Dante", este não é Dante e este é Dante. Entre eles, listam-se representações do poeta - pessoas que fingem sê-lo, sonham sê-lo... "Este é um homem que todos tomam por Dante, só ele próprio não acredita nisso."
Nesse canto, depois das divergências sobre o número de mortos no Titanic, os poetas tomam a palavra e fazem uma grande confusão: "Os poetas deliravam, exigiam, confessavam:/ uma horda completamente fora do controle.", na tradução de José Marcos Mariani de Macedo. Soa bastante cabível aparecer, então, uma "identificação policial" de Dante.
Essa identificação é uma espécie de produção da verdade pelo poder: do que não é Dante (Das ist nicht...) produz-se uma verdade sobre Dante (Das ist Dante). Imagino que se possa usar Foucault para ler esse poema.
Nesse procedimento, porém, temos algo do próprio poeta italiano na Comédia. Uma das questões fundamentais nesse poema é o julgamento - a decisão de quem irá para uma das três instâncias, Inferno, Purgatório e Paraíso. O legislador, acusador e juiz desse terrível tribunal que é a Comédia é o próprio poeta - a própria Beatriz, que aparece como seu superior, só chegou a tal posto por escolha de Dante. Dante é o soberano destas terras, e, como o monarca absolutista, só a Deus deve satisfações.
É possível que as partes mais comoventes do poema sejam as narrativas que os personagens fazem de sua própria história. Na minha lembrança, gravaram-se especialmente o episódio de Paolo e Francesca no Inferno, tão forte (eroticamente) que faz o personagem de Dante tombar como tomba um corpo morto; no Purgatório, a fala de Guido Guinicelli ("Hermafrodito foi nosso pecado") a que se segue o curto e comovente pedido de Arnaut Daniel em provençal - poetas que são homenageados por Dante nesse canto. Nele, é citado um de meus favoritos da época, Guiraut de Borneilh (ou Giraud de Bornelh, há várias grafias), autor desta beleza.
Vejam como Dante se refere a um de seus algozes, o Papa Bonifácio VIII, no Inferno (Canto XIX); o Papa ainda não tinha morrido, mas já era esperado lá... E por quem? Outro Papa, Nicolau V. Vejam a ironia de Dante de dizer que estava ali, diante da alma punida do Papa, "qual monge, que confessa/ Assassino"...
A noção de inquérito, como Foucault apresenta em A verdade e as formas jurídicas, pode iluminar momentos como esse, imagino. Muitos já devem ter feito esse estudo, afinal, as literaturas secundária e terciária sobre Dante são infinitas, porém menores do que a própria Divina Comédia - outra virtude dos clássicos.

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