O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 17 de setembro de 2011

30 dias de leituras: Sá-Carneiro, azul e aquém

30 livros em um mês
Dia 09: Um livro de autodescoberta.

Apenas um livro? Todos os grandes livros podem propiciar a autodescoberta. Na adolescência, Demian foi a primeira das traduções de Ivo Barroso que li, bem como meu primeiro Hermann Hesse. Tenho ainda essa edição, não lembro mais do ano em que a comprei – e sim do lugar, um sebo muito bom que existia na Visconde de Inhaúma, no Rio de Janeiro. “Para nascer é preciso destruir um mundo.” – gostei de ler isso, embora não me fosse claro (nem para o protagonista) que mundo novo deveria ser erigido.
No entanto, se eu já estava pronto para ler essas coisas do Hesse (principalmente Viagem ao Oriente, que achei muito superior a Sidarta), foi porque um impacto anterior já havia produzido efeito. Em uma festa na casa de um tio, subi para o cômodo vazio, o da biblioteca. Peguei um volume da coleção Nossos Clássicos da editora Agir, que se compunha de antologias em formato de bolso, em geral muito bem escolhidas. A Ediouro, que absorveu a Agir, parece querer reviver essa coleção.
No caso, peguei uma antologia organizada por Cleonice Berardinelli, cujo trabalho ainda não conhecia, de um poeta que eu ignorava completamente (no Rio de Janeiro, a literatura portuguesa já havia sido expulsa dos currículos escolares): Mário de Sá-Carneiro.

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

[...]

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Estrofes do poema “Dispersão”, do livro homônimo. A antologia era pequena, como eram os livros dessa coleção. Li-a toda nessa festa. Fiquei surpreso (tinha uns 12 anos) – então era possível escrever assim!
Havia uma liberdade no léxico que criava sentidos, possibilidades na língua que eu ainda não tinha imaginado. Essa criação de possibilidades não era exemplo de malabarismos vocabulares gratuitos, e sim estava vinculada à expressão de estados d’alma (assim escrevo, já que se trata de um autor português) de que normalmente não se fala: “É só de mim que ando delirante –/ Manhã tão forte que me anoiteceu.” (“Álcool”).
Eu ainda não tinha lido Rimbaud; foi em Sá-Carneiro que descobri que o eu é um outro; não conhecia Pessoa, foi na poesia desse seu amigo que descobri que a unidade do eu é frágil e inconstante. Saber disso me ajudou a descobrir o mundo. Logo consegui ter acesso à poesia dele completa.
No poema “Dispersão”, o primeiro que li, a repetição de palavras no fim dos versos dentro dos quartetos (isso ocorre na maior parte deles), em vez de imperícia poética, revela a escolha formal da obsessão com o “mim” e o “mesmo”. É coerente que, nesse turbilhão, o poema termine com um dístico sem rima, como se não pudesse se completar.
Ainda mais coerente é o primeiro livro terminar com um poema de suicídio, “A queda”, que continuo sabendo de cor: “Não me pude vencer, mas posso-me esmagar/ – Vencer às vezes é o mesmo que tombar –” O segundo livro, Indícios de oiro, prossegue na mesma trilha, ganhando em sarcasmo e derrisão, preparando para os impressionantes poemas finais, que ele não chegou a recolher em livro: “De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;/ E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...” (“Caranguejola”), “Quando eu morrer batam em latas,/ Rompam aos saltos e aos pinotes,/ Façam estalar no ar chicotes,/ Chamem palhaços e acrobatas!” (“Fim”).
Essa ironia permeia também a questão do gênero nesta poesia (também na prosa dele, de que não vou tratar aqui), como em "Feminina":

Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.

Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos - mesmo ao predilecto -
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...

A alusão à própria figura com "rapaz gordo e feio" é óbvia; no soneto "Aqueloutro", autodenomina-se "o Esfinge gorda".
No segundo livro, há um poema impressionante de suicídio, “O recreio”: um menino que está num balanço à beira de um poço (dentro da "Alma" do poeta). A corda está esgarçada, e a criança irá afogar-se: “Mais vale morrer de bibe/ Que de casaca... Deixá-lo/ Balouçar-se quanto vive... // – Mudar a corda era fácil.../ Tal ideia nunca tive...” Como ele pode dizer que não teve uma ideia que ele mesmo enuncia? A incoerência do final casa-se, no entanto, perfeitamente com o poema; a questão é que a morte já ocorreu, ou já está decidida. No próprio “Dispersão”, havia escrito: “E sinto que a minha morte/ – Minha dispersão total –/ Existe lá longe, ao norte,/ Numa grande capital.”
Foi em Paris que se matou, em 1916, aos 26 anos. A perda para a poesia de nossa língua foi enorme; a reduzida obra que deixou é marcante, e a amizade com Pessoa (foram os maiores amigos um do outro, e entre si podiam falar literariamente de igual para igual) poderia ter rendido mais frutos para ambos. Em 1934, tantos anos depois, e um ano antes de morrer, Pessoa lamentou no poema “Sá-Carneiro”: “Sei que, falho de ti, estou um a sós.”
As cartas de Pessoa para ele perderam-se com a confusão que se seguiu ao suicídio – certamente foram parar no lixo. As de Sá-Carneiro, Pessoa guardou-as e estão publicadas. E foi ele mesmo quem conservou a obra do amigo e organizou a publicação dos Indícios de oiro e Últimos poemas, que A Presença lançou em 1937 (edição póstuma para os dois poetas).
O brasileiro Augusto dos Anjos morreu um pouco antes de Sá-Carneiro, em 1914, um pouco mais velho, aos 30, também tendo publicado um único livro (Eu). Diferenças poéticas à parte, uma curiosidade que jamais será satisfeita é a de saber o que esses poetas tão obcecados com o eu fariam a partir da experiência da Guerra Mundial. Augusto dos Anjos, com “Os vencidos”, por exemplo, revelou ter uma grande sensibilidade social.
Há crítica social também na obra de Sá-Carneiro; é engraçado ler, em "16", "As mesas do Café endoideceram feitas ar.../ Caiu-me agora um braço... Olha lá vai ele a valsar,/ Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei....". Porém, não poderemos apreender o que seria seu voo final, se não fora este:

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

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