O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Desarquivando o Brasil XVIII: Comissão da Verdade no Brasil e na Argentina

Em seu discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU, a presidenta Dilma Rousseff, depois de se referir à crise econômica do capitalismo mundial, de lamentar que a Palestina ainda não seja membro da Organização, e de louvar um possível excepcionalismo brasileiro (na paz e na economia), deu uma nota pessoal:

Junto minha voz às vozes das mulheres que ousaram lutar, que ousaram participar da política e da vida profissional, e conquistaram o espaço de poder que me permite estar aqui hoje.
Como mulher que sofreu tortura no cárcere, sei como são importantes os valores da democracia, da justiça, dos direitos humanos e da liberdade.

Disso, ela só poderia mesmo falar em tom pessoal, pois, em nível institucional, nada há de digno para mostrar. O projeto da Comissão da Verdade ainda não foi aprovado, e ele mesmo provavelmente não fará muita diferença: propõe-se uma comissão com poucos membros, sem autonomia financeira, que dificilmente terá condições de realizar o trabalho necessário, mesmo que os militares que a integram queiram fazê-lo.
Lembro, então da CONADEP (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) na Argentina, que gerou o impressionante informe Nunca más. Ela foi criada por um decreto do presidente Alfonsín de 15 de dezembro de 1983.
No Brasil, nada semelhante ocorreu na época - afinal, o presidente Sarney, nosso primeiro presidente civil (ou como "se viu", segundo Millôr Fernandes) após a ditadura militar, tinha relações umbilicais com os militares e a ditadura, ex-presidente que havia sido da ARENA. O nosso Nunca mais veio dos advogados, das vítimas e da Igreja Católica, feito clandestinamente, sem participação do governo, ou lei que o amparasse. Por isso, foi fortemente baseado nos processos da Justiça Militar.
No livro argentino, pode-se ler uma fala impressionante do General Roberto Viola, de março de 1981:

Parece-me que você quer dizer que investiguemos as Forças de Segurança, e isso é que não. Nesta guerra há vencedores, e nós fomos vencedores e tenha a plena certeza de que se, na última guerra mundial, tivessem vencido as tropas do Reich, o julgamento não teria se dado em Nurembergue e sim em Virgínia.[p. 476]

Viola, que morreu em 1994 com 69 anos, foi um dos arquitetos da Guerra Suja. Ele ficou pouco tempo no poder (oito meses), tendo sido sucedido por Galtieri, que levou o país à Guerra das Malvinas e à derrota do país e da ditadura. Devemos reconhecer que ele foi bem coerente e lúcido ao comparar o seu regime com o da Alemanha nazista - ambos fundamentavam-se no terror.
Esses mesmos militares, no Brasil, consideram-se vencedores: eles julgaram, e não foram julgados; condenaram, e não foram condenados. Ao fim, aprovaram uma anistia, ato generoso pelo qual o governo perdoou-se pelos crimes que ele mesmo cometeu.
A CONADEP, em nove meses, conseguiu contabilizar 8960 casos de desaparecimentos forçados e 340 centros clandestinos de detenção, tortura e assassinato, entre os quais a tristemente célebre ESMA (Escuela de Mecánica de la Armada).
A Comissão brasileira, se vier, nascerá tardia (ainda mais se abranger fatos desde 1946) e sem poderes. Boa sorte!

P.S.: Leio texto do jornalista João Carlos Magalhães, da Folha de S.Paulo, sobre a aprovação da Comissão na Câmara dos Deputados. Ele afirma que a "versão das vítimas da ditadura já foi extensamente registrada por outras duas comissões federais: Sobre Mortes e Desaparecidos Políticos e da Anistia". Exatamente porque essas duas comissões não foram capazes de trazer elementos sobre vários casos é que se necessita de algo novo, com mais poderes de apuração - não se trata de punição, pois a comissão não será um órgão do Judiciário.
Afinal, já está extensamente registrado que temos um quadro muito lacunar de nosso passado recente.

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