O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

30 dias de leituras: Kant perpetuamente

30 livros em um mês

Dia 19: Livro favorito não literário.

Trata-se de um livro curto, de longas consequências: À paz perpétua ("Zum ewigen Frieden"), de Kant (1724-1804), que fui ler apenas quando fiz um curso do professor Ricardo Terra. Já escrevi algumas vezes sobre a obra e o cosmopolitismo kantiano.
Aqui, gostaria de lembrar que não se trata de um livro utópico; trata-se de um caminho para a paz perpétua, caminho que não chegará ao fim: o conflito não deixará de existir (Kant pensa que ele é próprio da natureza humana), e a paz é uma ideia no sentido kantiano: ela não vai realizar-se completamente, mas deve servir para regular a ação.
Nesse livro, Kant prefigura algo parecido com sistema das Nações Unidas (mais de cem anos antes da Liga das Nações), condena o colonialismo e defende a garantia universal dos direitos humanos e a esfera pública.
Ele expressamente escreve contra as propostas utópicas de um "Estado mundial", que acarretaria nada menos do que uma tirania global. Para entendê-lo, basta imaginar hoje onde seria a eventual "capital" do mundo, e que povos seriam prejudicados ao perderem seu Estado e terem que se subordinar a um governo mundial. Como Kant é explícito sobre esse ponto no livro, é de se indagar com que despropósito certos professores de filosofia, em furor anti-gramsciano, afirmam exatamente o oposto sobre o filósofo.
Kant denuncia as máximas sofísticas das grandes potências, com que encobertam seus planos e ações de dominação, e argumenta que o princípio da publicidade é a garantia do direito público: pensem, por exemplo, na obrigação de prestar contas dos contratos administrativos e licitações; sem ela, é claro que as irregularidades podem se tornar muito mais frequentes.
Pode-se, por exemplo, questionar a intenção do governo de Dilma Rousseff de não divulgar os gastos com a Copa do Mundo; trata-se de um sinal de lisura, ou de tentativa de fuga ao controle social? Outra questão: por que se quer sigilo eterno para certos documentos? Não é sinal de que podem esconder irregularidades?
No meu livro de 2009, tracei rápido paralelo entre a posição de Kant, que ousadamente considera os europeus mais selvagens do que os índios antropófagos, e Hegel, que considerou "natural" o genocídio sofrido pelos índios nas Américas... Escrevi também que o cosmopolitismo kantiano é bem menos etnocêntrico do que os de Rawls e Habermas...
O direito de hospitalidade nessa obra de Kant foi um dos assuntos que abordei na entrevista que dei a Alexandre Nodari no Sopro n. 54, que pode ser lida também aqui.
Não devemos parar em Kant, claro. No mesmo livro, Kant afirma que numa forma de governo não representativo não é realmente uma forma de governo - e sim uma forma de dominação. Como Arendt (que tenho citado muito ultimamente...) bem nota, essa divisão não é satisfatória:
Sua principal fraqueza é que por trás da relação entre direito e poder está a suposição de que a fonte do direito é a razão humana (ainda no sentido de lumen naturale) e a fonte do poder é a vontade humana. Ambas suposições são questionáveis em termos históricos bem como filosóficos. ("On the Nature of Totalitarianism: An Essay in Understanding", ensaio recolhido em Essays in Understanding 1930-1954)

De fato, a relação entre direito e política é mais complexa, e ainda estamos nesse trabalho incessante de tentar entendê-la. No entanto, À paz perpétua continua a manter um vigor crítico. Termino com as palavras de Daniel Bensaïd (Éloge de la résistance à l'air du temps) e faço minha a sua última indagação:

Essa cosmopolítica liberal contemporânea não é nem mesmo a de Kant. Ele pensava a Paz Perpétua a partir da organização das relações entre Estados e não de sua negação. Ele mantinha de forma coerente a diferença entre o direito incondicional de visita e o direito condicional de instalação, protestando nessa ocasião contra o universalismo de via única e contra a "conduta inospitaleira" dos Estados "civilizados e particularmente dos Estados comerciantes de nossa parte do mundo quando visitam países e povos estrangeiros".
Para esses maus visitantes coloniais, a visita significa "a mesma coisa que a conquista" e pode "chegar até o horror". Ele não viu mal, não é mesmo?

2 comentários:

  1. kant forever!
    desculpe, não tenho paciência para ler "certos filósofos", como diz vc - às vezes acho que acenam com linguajares rococós grandiloquentes só para impressionar. sinceramente não consigo ler:é uma reação física mesma, meio de fastio, meio de engulho.
    mas me pergunto se a arendt depois de 1956 não ficou um pouco mais animadinha. gosto muito de "sobre a revolução", talvez até esperançoso demais.

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  2. Cara Denise Bottmann,
    escrevi "certos professores de filosofia", o que é diferente...
    Arendt alterna esses momentos mais animados com outros em que há menos esperança.
    "Sobre a revolução", como o que ela escreve em geral, é ousado na crítica às duas revoluções (ela não pensa com medo) - os EUA teriam preferido esquecer que nasceram em uma tradição revolucionária, e os franceses não teriam sido capazes de criar instituições que preservassem a liberdade.
    Mas como Arendt é a pensadora da natalidade, e sabe que a política é o espaço da contingência, ela sempre deixa as portas abertas para o novo. Acho que isso é o que sempre me convoca para a leitura dessa autora.
    Abraços, Pádua

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