O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Desenhar um lugar: Trópico das repetições, de Silvio Ferraz

No mesmo antigo número do K Jornal de Crítica (n. 21, de jan.-fev. 2008) em que saiu minha resenha de livro de Alex Ross, publiquei outra, sobre o primeiro disco totalmente voltado para a música de Silvio Ferraz, compositor que aprecio e conheço pessoalmente há poucos anos - mas cuja música me alcançou no início do anos 1990. O disco foi gravado com apoio do SESC.


Desenhar um lugar: Trópico das repetições, de Silvio Ferraz


A música de câmara, por definição, destina-se à execução em âmbitos mais privados. A comemoração pública da queda do muro de Berlim não foi realizada com uma execução, digamos, do último quarteto de cordas de Beethoven, o opus 135, e sim com esta grande declaração pública iluminista que é a Sinfonia n.o 9.
Daí não se segue, porém, que toda música de câmara construa um universo equivalente ao da esfera privada, tampouco que toda música sinfônica elabore algo que possa ser comparado à esfera pública (pense-se no subjetivismo programático deste exemplo da música romântica, a Sinfonia fantástica, de Berlioz). O caráter elusivo, próprio da música, torna problemática essa diferenciação em várias obras.
Caixas, casas vazias, casas tomadas, quartos. A construção sonora de um universo privado é explicitamente reivindicada, porém, em Trópico das repetições, primeiro disco totalmente dedicado à obra do compositor paulista Silvio Ferraz. Com os músicos Lídia Bazarian (piano), Cássia Carrascoza (flauta), Luís Afonso Montanha (clarinete), Fábio Presgrave (violoncelo) e o próprio compositor na eletrônica, o disco inclui obras terminadas entre 1990 (Trópico das repetições) e 2007 (Tríptico das linhas).
Há anos, um lirismo intenso percorre esse universo privado; pode-se ainda reconhecer o compositor de ...enquanto corre o rio das onças... (peça de 1985, gravada por Graham Griffiths, então regente do grupo Novo Horizonte, em disco de 1993, brasil!
new music!) no Tríptico das casas.
Paulo Zuben, no texto de encarte do disco, destaca as interrupções na melodia de Cortázar (quarto com caixa vazia), “um pouco ofegantes”, e no solo de violoncelo Lamento quase mudo; creio que a interrupção pode ser considerada um princípio construtivo em mais de uma obra de Silvio Ferraz, como Les silences d’un étrange jardin, em que o uso expressivo da respiração, cortando o discurso da flauta, corrobora esse efeito.
Se boa parte das composições do autor de Linha torta e Linha solta (não incluídas neste disco) podem ser comparadas a uma linha interrompida, as referências a outros compositores (como Bach, Beethoven, Vivaldi) também são submetidas a esse processo: elas são interrompidas e reconstruídas para se transformar em outro desenho.
A ária da ópera Farnace, de Vivaldi, "Gelido in ogni vena", mal pode ser reconhecida em Tríptico das casas. O drama de Farnace, rei do Ponto, que usa o tema do Inverno das Quatro estações, é submetido ao universo privado da memória, e refeito noutra configuração, mais íntima.
Zuben destaca a importância dos carros de boi nessa peça e em Lamento quase mudo. Nesses dois casos, pode-se repetir o
que o próprio compositor escreveu sobre Ao encalço do boi, peça gravada em Duos e trios contemporâneos por Luís Eugênio Montanha e Carlos Tarcha: não se trata de peças nacionalistas, mas de lembranças afetivas reconstruídas.1
No disco, pode-se confirmar que o compositor, embora esteja ligado há muito à música eletrônica, não trata a tecnologia como fetiche: Poucas linhas de Ana Cristina e Cortázar ou quarto com caixa vazia podem ou não ser interpretadas em versões eletroacústicas. O disco oferece as duas versões de Cortázar (as duas sustentam-se musicalmente, sem se anular) e a eletroacústica de Poucas linhas, peça para clarinete, de notável intensidade.
É interessante notar que essa música parece ser uma referência a Ana Cristina Cesar, poeta que se notabilizou pela reconstrução ficcional da intimidade, característica presente também na poética de Silvio Ferraz.
Tanto na peça relativa a Ana Cristina Cesar quanto na que evoca Cortázar, não há ilustração a textos desses autores, nem biografismos: a obra constrói sua própria realidade. Senão, seria música funcional e o compositor estaria a ganhar milhões no cinema. Outra é a vocação desta música:

Desenhar um lugar e ter a música como sendo a pequena história deste lugar, ora se desenhando, ora se desfazendo, ora invadido por outro, ora contracenando com outro. Nada mais.2


Notas
1 Por sinal, não estamos mais na época em que o valor de uma obra era julgado por seu nacionalismo, o que levou a Mario de Andrade, por exemplo, a ratificar o repúdio da União Soviética às obras de Stravinsky e Kandinsky (como lembra Paulo César do Amorim Chagas em Luciano Gallet via Mário de Andrade, Rio de Janeiro: Funarte, 1979, p. 81).
Silvio Ferraz, felizmente, surgiu após as querelas dos nacionalistas. Veja-se que o próprio caráter brasileiro da música de Villa-Lobos, por exemplo, foi criado com influência estrangeira, como Stravinsky.
2 FERRAZ, Silvio. Tatuagens. In: FERRAZ, S.(org.) Notas, Atos, Gestos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 116.

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