O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Desarquivando o Brasil XXXIV: Emancipação dos índios e genocídio no Brasil


Neste dia do índio, decidi lembrar de um relatório de espionagem, pela Polícia Civil de São Paulo, da  30ª Reunião  da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que ocorreu em 1978, ainda durante o governo Geisel. O documento pode ser consultado no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
O antigo Ministério do Interior, a que se subordinava a FUNAI, havia apresentado projeto para a emancipação dos índios brasileiros. Essa emancipação já era prevista pelo Estatuto do Índio, a lei federal nº 6001 de 1973, e poderia ser feita pela FUNAI ou por decreto do Presidente da República.

A novidade é que as terras indígenas, com a emancipação, seriam tratadas como terras privadas e poderiam ser vendidas. Conforme conta Roque de Barros Laraia, juristas como Dalmo de Abreu Dallari e Carlos Frederico Marés auxiliaram na denúncia do projeto, que foi alvo de grande campanha da Associação Brasileira de Antropologia e da, ainda segundo Laraia, "única grande mobilização da sociedade civil brasileira" em prol dos índios desde 1910, quando foi criado o Serviço de Proteção aos Índios.
A SBPC participou ativamente da mobilização. Naquela ocasião, o professor Carlos Alberto Ricardo apresentou os conferencistas Lux Boelitz Vidal, Dom Tomás Balduíno (um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário, CIMI), Shelton Davis e Darcy Ribeiro - vejam que o espião não sabia escrever o nome destes dois.
De acordo com o relatório, a professora Boelitz Vidal denunciou a ameaça que o projeto trazia para as terras indígenas; o membro do CIMI enfatizou a necessidade de respeitar os costumes dessa população e Shelton Davis tratou da necessidade de delimitação das terras e dos respeito aos direitos humanos. Darcy Ribeiro teria denunciado que o projeto decorria de interesses políticos do Ministro do Interior, que era Maurício Rangel Reis, para se apossar "das reservas que são as terras mais cobiçadas daquela região de Mato Grosso".
A mobilização foi bem-sucedida. No entanto, é claro que os problemas dos indígenas não acabaram, e a expansão do agrobanditismo ameaça-os hoje, ainda mais porque muitas vezes se ignora, nos centros urbanos, completamente o problema. Permanece o que Carlos Alberto Ricardo caracterizou como "amnésia periódica sobre a presença dos índios no Brasil".
Essa amnésia parece-me continuar. Pode-se verificá-la, por exemplo, sob um prisma jurídico, no terceiro número da revista Tekoma, do Ministério Público do Mato Grosso do Sul, publicada há pouco, na época da Semana do Índio de 2012. O MPF afirma que há sete etnias de índios nesse Estado, três delas ameaçadas de extinção. Suas terras continuam a ser das mais cobiçadas. Os índios estão sendo mortos, o que gerou este protesto do Conselho da Aty Guasu Guarani-Kaiowá: os missionários indigenistas, ameaçados, bem como os antropólogos. Vejam a Nota de repúdio do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRJ em razão da recentíssima ameaça feita ao antropólogo guarani-kaiowá e doutorando Tonico Benites no Mato Grosso do Sul.
Infelizmente, na publicação do Ministério Público Federal, houve um grande esquecimento do direito aplicável à questão. Não é desta categoria jurídica, "extinção", que se trata, eis que não se trata de espécies ameaçadas animais ou vegetais. Como os índios são humanos, a ameaça se dá contra a espécie humana, a que os procuradores também pertencem, e a categoria jurídica apropriada é a de genocídio.
A Convenção da ONU para a prevenção e a repressão do crime de genocídio foi celebrada em 1948 e o Brasil dela participa desde 1952. A lei federal nº 2889, que tipifica o crime, é de 1956:

Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;

Não consigo entender por que ela jaz quase inaplicada enquanto a matança de índios permanece firme no Brasil, sob ou sobre este governo que vê o meio-ambiente como ameaça à sustentabilidade.
Dedico esta pequena nota ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que faz aniversário neste dia. Em entrevista que gentilmente me concedeu no ano passado, "", tratou da contradição de os índios (que se organizam pelo múltiplo) dependerem hoje do Estado (que impõe o um). Aquela amnésia impede o múltiplo:
Enquanto garantidor dos direitos - e todo direito deveria ser, em última análise, o direito de uma minoria, todo direito "é" direito do mais fraco -, o Estado é quem garante a existência , marginal decerto, dessa multiplicidade ou alteridade indígena que persiste e resiste no país. Temos de viver com essa contradição, os índios têm de viver com ela, e precisamos trabalhar a partir dela. Em direção a outra forma de Estado, talvez, ou a outra forma de sociedade, que nos livre do Um e liberte os poderes vivificadores do múltiplo. 

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