O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Direito, literatura e racismo "onde arde o fogo sagrado da liberdade"


Eu havia feito um comentário a um artigo de Idelber Avelar para a Fórum, "Sobre algumas vitórias recentes da luta afro-brasileira", por causa de uma observação de leitor que pretendia que a legislação racial do Brasil no século XX, por ter se dirigido aos imigrantes, não teria afetado os negros e mulatos brasileiros.
Achei bastante equivocada a observação, embora o erro fosse previsível e até comum para os leigos no direito, que costumam resumir a lei aos textos e confundir o direito com o conjunto das leis. Até alguns profissionais do direito cometem esses equívocos...
Com a mudança no sítio da revista, aquela observação sumiu, bem com o que escrevi. Exponho meu ponto de vista aqui, como já queria antes, em três tópicos que, na verdade, são propostas de pesquisa para quem tiver mais fôlego do que eu.

a) Há diversas formas de eficácia do direito. Uma delas é de caráter simbólico: uma norma jurídica pode gerar menos efeitos concretos diretos do que transformações nas representações que a sociedade faz sobre o tema da norma (ver Jacques Commaille). Creio que seria interessante verificar como o incentivo à imigração europeia ajudou na caracterização de um grupo indesejado, os negros e os mulatos estrangeiros, com reflexos sobre os brasileiros da mesma cor.

Na literatura brasileira, lembro agora de trecho de romance de Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor (Record, 2006), em que a narradora, Kehinde (mãe de Luiz Gama), fala das restrições criadas no Brasil aos africanos libertos depois da Revolta dos Malês em 1835:

Em maio, um dia depois do cumprimento das penas de morte, saiu a aprovação da lei sobre a deportação, que dizia que todos os africanos libertos, suspeitos ou não, deveriam deixar a Bahia assim que o governo achasse algum país para recebê-los. [...] Ou seja, preto, na Bahia, só se fosse escravo, ou então se tivesse algum dinheiro, porque podiam protelar a deportação os africanos que se dispusessem a pagar um imposto de dez mil réis [...]
O medo dos brancos de o Brasil se tornar um novo Haiti não deixou de surtir efeito sobre os negros brasileiros e se vinculou ao projeto de "embranquecimento" do país. No romance de Ana Maria Gonçalves, aparecem intermitentemente as tensões dos escravos e dos libertos com os mulatos que desejavam passar por brancos.
A distopia de se querer um Brasil racialmente homogêneo e branco persiste, creio, no imaginário: lembro de, no ano passado, estar no Rio de Janeiro, Barra da Tijuca, e ouvir uma senhora comentando que (o punhado de) haitianos que entrou no país iria "escurecer" o Brasil. Perguntem a essa senhora se ela acha dignos os negros brasileiros. A resposta será sim, porém na função de empregados domésticos e zeladores.

b) A maior parte da discriminação vem de um infra-direito (aqui, faço uso de Foucault), que cria distinções onde a norma jurídica prevê a igualdade formal. Outra hipótese para pesquisa: talvez se possa verificar, em muitos casos, que a norma jurídica discriminatória surge quando essa discriminação social não é suficiente para assegurar a dominação.
Voltando à literatura, em casos como este, que Francisco Maciel retrata em O primeiro dia do ano da peste (Estação Liberdade, 2001), a norma jurídica da igualdade formal terá sua existência aprovada até mesmo pelos racistas moderados, pois será sabotada cotidianamente pelas práticas de discriminação:
A resposta devia ser esta: no Exército entrei soldado e saí cabo. O capitão me aconselhou a seguir carreira. Eu disse que não seguia  porque nunca tinha visto um general crioulo e eu não seria o primeiro. Por isso, de vez em quando, eu banco o sargento à paisana. Por aí.
Com isso, os horizontes dos grupos discriminados fecham-se, a despeito do que diga a lei, até pelo fato de ela dizer tão pouco, hoje, se apenas prevê a igualdade formal. O que pode suscitar reações coléricas são as medidas jurídicas de igualdade material, como cotas. Essas medidas, tanto por seus efeitos concretos (provável melhoria das condições de vida dos grupos discriminados) quanto por suas implicações simbólicas (o reconhecimento da persistência do racismo), fizeram e farão os racistas sair do armário.

c) O direito não se resume simplesmente à legislação. As dimensões da doutrina e da jurisprudência, por exemplo, não devem ser esquecidas. É importante verificar como a variável raça afeta as decisões judiciais. Talvez em áreas como direito penal ela seja decisiva, tendo em vista o que ocorre em áreas próximas, como a medicina legal, que considerava os negros "naturalmente" inferiores, assim como os mestiços e índios.
Cito agora o advogado, jornalista, poeta e ex-escravo Luiz Gama. Sua mãe, por ter participado das revoltas de escravos na Bahia, teve de fugir e o seu filho jamais conseguiu encontrá-la. A história é muito conhecida: por ter nascido de uma liberta, Luiz Gama era livre, e o direito brasileiro não permitia sua escravização. No entanto, depois de sua mãe ter desaparecido, o pai vendeu-o ilegalmente (acontecimento nada incomum) como escravo. Mais tarde, Luiz Gama conseguiu provar e recobrar seu estatuto original e tornou-se um dos abolicionistas e advogados mais marcantes do século XIX brasileiro. E ele também era um bom poeta.
Em solidariedade a outro abolicionista, José do Patrocínio, atacado por ser mulato, Luiz Gama publicou na Gazeta do Povo em 1880:

Em nós, até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime; e vão ao ponto de esquecer que esta cor é a origem da riqueza de milhares de salteadores, que nos insultam; que esta cor convencional da escravidão, como supõem os especuladores, à semelhança da terra, ao través da escura superfície, encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.

Ligia Fonseca Ferreira coligiu escritos de diversos gêneros do autor em Com a palavra, Luiz Gama (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011), que acabo de citar. Nesse trecho, como em outros, temos a denúncia dessa crença na inferioridade de nós negros e mestiços, sem esquecer da hipocrisia das fortunas que foram construídas a partir da escravidão.
A hipocrisia sobre o tema continua no século XXI, como provou o DEM com a arguição por descumprimento de preceito fundamental n. 186, contrária às cotas raciais em universidades públicas. Felizmente, o direito positivo não está mais a seu lado.

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