O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 28 de outubro de 2012

Desarquivando o Brasil XLI: EBC, Operação Condor e João Goulart


A EBC fez uma série de quatro reportagens sobre a Operação Condor, disponível nesta ligação:
http://www.ebc.com.br/cidadania/operacao-condor/2012/10/assista-as-quatro-reportagens-da-serie-operacao-condor
Há bastante o que ver: Jair Krishke falou do papel de Pio Correia na criação clandestina do Centro de Informações para o Exterior no Ministério das Relações Exteriores; abordaram-se-se a atuação da polícia argentina, ao lado da brasileira, a pedido do consulado desse país em São Paulo, para prender e aprisionar argentinos no Brasil, bem como o acontecimento oposto: a prisão de brasileiros na Argentina por Sérgio Fleury, no âmbito da cooperação entre os aparelhos de repressão. Pode-se assistir a depoimento da uruguaia Lílian Celiberti, presa ilegalmente com a família no Brasil, o que foi denunciado, na época, pelos jornalistas João Baptista Scalco e Luiz Cláudio Cunha. Este último, autor do livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios, também fala para a EBC.
Vários casos de desaparecidos foram destacados na série (especialmente João Batista Rita), que tratou também da espionagem sofrida por João Goulart no exterior, trazendo novo depoimento do ex-agente uruguaio, Mario Neira Barreiro, que reiterou declarações de que o ex-presidente foi assassinado.
Convidaram-me para contribuir com o debate, e tentei fazê-lo. Participei desta vídeo-conferência com ninguém menos do que o advogado Christopher Goulart, neto do presidente brasileiro deposto pelo golpe de 1964. A jornalista Ana Graziela Oliveira fez a mediação.

http://www.ebc.com.br/cidadania/2012/10/especialista-debate-operacao-condor-e-comissao-da-verdade-no-portal-da-ebc
Christopher Goulart, durante as respostas, expõs a visão de que seu avô "era um líder que buscava as reformas estruturais para o país que até hoje ainda não foram consolidadas como: na área fiscal, tributária, urbana", como já havia dito no depoimento que deu à Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul em 2008. Ele falou para a subcomissão que investigou a morte de Jango, respresentando o Instituto João Goulart:
http://www.al.rs.gov.br/download/SubJango/RF%20Sub_morte_Jango.pdf
Eu não sabia que ele foi o anistiado mais jovem no Brasil.
Quanto a mim, separei alguns documentos, entre eles este, presente no Portal Memórias Reveladas (http://www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=home), o Conceito Estratégico Nacional, elaborado em 1969, no fim do governo de Costa e Silva.




Uma das hipóteses de guerra aventadas (a "Alfa") correspondia à "guerra revolucionária na América Latina', que poderia ocorrer em outros países e contar com a participação do Brasil, tendo em vista "os compromissos assumidos no âmbito da OEA".
A referência à OEA vem antes do alinhamento político aos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria, do que de um compromisso com essa organização internacional. Na verdade, o isolacionismo, no campo da política externa, não deixa de se revelar também aqui. Na parte 5 do documento, "Premissa da segurança interna", lemos que "Na conduta da Política de Segurança Nacional a Nação não abrirá mão dos imperativos categóricos de sua soberania nacional, não submeterá a organismos regionais ou internacionais questões internas que afetam sua segurança."





Era de esperar, pois, que os militares brasileiros não fossem assinar a ata de criação da Operação Condor em 1975.
No entanto, reconhecia-se a necessidade de cooperação, tendo em vista o perfil internacional do inimigo comunista. Contra a "Pressão Comunista Internacional", o poder nacional, isoladamente, não seria capaz de alcançar seus objetivos:



Mais adiante, lemos que "É necessário reconhecer-se que, no mundo atual, a Segurança Nacional não pode ser alcançada com bases exclusivamente internas."
A possibilidade da internacionalização da repressão, portanto, já estava dada nas bases da doutrina de segurança nacional, tal como era concebida no Brasil pelos poderes militares. É de notar também que essa internacionalização ocorreu ao arrepio das normas internacionais vigentes na OEA. A Operação Condor teria que ser clandestina, tendo em vista sua ilicitude perante o direito internacional geral e americano. É certo que o direito constitucional vigente no Brasil também era violado.
Diferentemente de Carlos Lacerda e Juscelino Kubitscheck, os outros nomes da "Frente Ampla", proibida pela ditadura em 1968 (curiosamente morreram os três em um espaço de menos de um ano entre 1976 e 1977, o que deve merecer investigação da Comissão Nacional da Verdade), João Goulart morreu no exílio.


Sua morte recebeu muita atenção dos órgãos de repressão política. Neste relatório do DOPS/SP,  guardado no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo (http://www.arquivoestado.sp.gov.br/index.php), o agente que estava na missa de sétimo dia rezada em São Paulo, na Catedral da Sé, por Dom Evaristo Arns, anotou que Therezinha Zerbini, pioneira do movimento pela anistia, "já é tempo de políticos nacionais deixarem de morrer no exterior" e pronunciou-se pela ampla anistia aos presos políticos.
Ela somente ocorreria, em 1979, tarde demais para aqueles nomes da Frente Ampla.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Desarquivando o Brasil XL e Terra sem Lei VII: Genocídio de índios no Brasil e certa esquerda de hoje

Descobri que está havendo um twittaço em razão do que está ocorrendo no Mato Grosso do Sul. No ano passado, Juliana del Piva havia escrito para a Isto É sobre o genocídio desse povo: http://www.istoe.com.br/reportagens/179594_GENOCIDIO+EM+MARCHA
Naquela ocasião, o cacique Nísio Gomes havia sido assassinado.
Há poucos dias, Eliana Brum, para a Época, escreveu longa e essencial matéria sobre a questão, ainda mais premente com a decisão de os índios Guarani Kaiowá em Iguatemi (MS) morrerem em suas terras, caso a ordem da Justiça Federal de expulsá-los seja cumprida: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/10/decretem-nossa-extincao-e-nos-enterrem-aqui.html
Já assinei uma petição contra o genocídio dirigida para a presidência da república; sugiro que se faça o mesmo: http://www.avaaz.org/po/petition/Salvemos_os_indios_GuaraniKaiowa_URGENTE/ Há uma iniciativa semelhante no Facebook: http://www.facebook.com/pages/Vamos-impedir-o-suic%C3%ADdio-coletivo-dos-%C3%ADndios-Guarani-kaiowa/429391533790139 Ademais, estão sendo marcados protestos, como no Rio de Janeiro (https://www.facebook.com/events/471207732901865/), Brasília (https://www.facebook.com/events/124459604371995/) e em Porto Alegre (https://twitter.com/dansesurlamerde/status/260920085110214657/photo/1).
Aconselho também que se vejam os vídeos desse povo, inclusive o emocionante "Salve Dilma! Aqueles que irão morrer te saúdam":
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-kaiowa/2300
E, mencionando a presidenta, lembro que já escrevi sobre a VAR-Palmares, a Vanguarda Armada Revolucionária Zumbi dos Palmares, de que ela participou. Como se sabe, foi um dos grupos da esquerda clandestina armada que surgiu durante a ditadura militar no fim dos anos 1960, e foi destruído no início da década seguinte.
Além das ações armadas (entre elas, o roubo - chamava-se desapropriação - do cofre da amante de Ademar de Barros, em que o honesto político depositou o fruto de anos dedicados ao interesse público), o grupo elaborou textos em que tentava interpretar o Brasil e propor saídas para o país por  meio de via revolucionária.
A vocação da esquerda da época para o fracionamento revelava-se nesses momentos: havia ou houve feudalismo no país? A guerrilha deveria ser urbana ou rural? Guevara ou Mao? Questões como essas a dividiam. Algo, no entanto, havia de comum a pelos menos grande parte desses grupos, e também à direita no poder. Era o que é chamado por Carlos Alberto Ricardo de "amnésia periódica sobre a presença dos índios no Brasil": http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/04/desarquivando-o-brasil-xxxv-emancipacao.html#more
Essa amnésia estava presente também naquele grupo de esquerda, bem como nos outros cujos textos conheço. Neste "Informe da reunião da direção", apreendido em 1972 no Rio de Janeiro (encontrei o documento, porém, no Arquivo Público do Estado de São Paulo), pode-se ler esta passagem típica:


Existe o campo, mas não a floresta. "A relação cidade-campo dentro da estratégia de guerra revolucionária ainda não foi bem definida, volta e meia se torna a esse ponto, e as discussões se embananam."
Segundo documentos congêneres, considerava-se que o outro, em relação à cidade, era apenas o campo. No entanto, havia outros, que não eram percebidos, em relação a esse binômio cidade-campo, como a floresta. No fundo, cidade e campo eram apenas diferentes espaços, economicamente especializados, da mesma cadeia produtiva. O que não podia ser visto nessa cadeia, e era um outro mais radical, simplesmente era ignorado, mesmo pelos revolucionários. Tal era o défice antropológico do entendimento que essa esquerda tinha do Brasil.

Ainda hoje podem-se verificar fenômenos semelhantes? Sydney Possuelo, sertanista demitido pela FUNAI durante o governo Lula, pôde afirmar recentemente sobre a ignorância destas pessoas sobre os índios: "conheci todos os líderes da esquerda brasileira. Só entendem de operário e camponês.":
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/514515-conheci-todos-os-lideres-da-esquerda-brasileira-so-entendem-de-operario-e-campones-nao-sabem-nada-de-indio
O problema, de fato, verifica-se também no Partido dos Trabalhadores, que teve, muito claramente, origem na esquerda. Sua política para a Amazônia merece diversas críticas dos ambientalistas e dos antropólogos - e também dos juristas. Cito aqui recente entrevista que Eduardo Viveiros de Castro concedeu a Júlia Magalhães em Outras palavras:
http://www.outraspalavras.net/2012/09/20/outros-valores-alem-do-frenesi-de-consumo/

O PT vê a Amazônia brasileira como um lugar a se civilizar, a se domesticar, a se rentabilizar, a se capitalizar. Esse é o velho bandeirantismo que tomou conta de vez do projeto nacional, em uma continuidade lamentável entre as geopolítica da ditadura e a do governo atual. Mudaram as condições políticas formais, mas a imagem do que é uma civilização brasileira, do que é uma vida que valha a pena ser vivida, do que é uma sociedade que esteja em sintonia consigo mesma, é muito, muito parecida. Estamos vendo hoje, numa ironia bem dialética, o governo comandado por uma pessoa perseguida e torturada pela ditadura realizando um projeto de sociedade encampado e implementado por essa mesma ditadura: destruição da Amazônia, mecanização, transgenização e agrotoxificação da “lavoura”, migração induzida para as cidades.

E ele chamou atenção para uma entrevista de Carlos Nelson Coutinho, que é um dos marxistas que sabia da importância da questão ecológica para o socialismo, não pensada por Marx, que acreditava "num crescimento permanente das forças produtivas"; e que se deve hoje "rediscutir a questão do consumo":

http://globotv.globo.com/globo-news/milenio/v/entrevista-com-o-filosofo-e-cientista-politico-carlos-nelson-coutinho/996706/
Como exemplo da esquerda na academia (e na imprensa, pois o professor em questão é colunista da Folha de S.Paulo), pode-se mencionar Vladimir Safatle, autor de A esquerda que não teme dizer o seu nome, que recebeu resenhas pouco éticas no próprio jornal em que escreve, segundo a ombudsman.
De outro nível foi a resenha de Idelber Avelar: elogiosa e perspicaz para o problema de que "a esquerda paulista precisa visitar o Xingu":

Na verdade, Safatle só explicita o que vários pensadores de esquerda não têm tido como assumir nas últimas décadas: a recusa (ou incapacidade, formule-se como se queira) a pensar as diferenças étnicas, sexuais, de gênero e de orientação sexual como parte constitutiva de uma política de esquerda.
 Aqui: http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/10/09/resenha-de-a-esquerda-que-nao-teme-dizer-seu-nome-de-vladimir-safatle/

sábado, 13 de outubro de 2012

Dançando diante do terror: 70 anos da morte de Schulhoff

Em agosto de 2012, fez setenta anos que o compositor tcheco Erwin Schulhoff (1894-1942) morreu, provavelmente de tuberculose, como prisioneiro dos alemães, no campo de concentração de Wülzburg. Uma das formas de assassinato nos campos de concentração era a carência ou a ausência de cuidados médicos. Ele ainda escrevia música no campo, e sua oitava sinfonia ficou inacabada.
Schulhoff nasceu em Praga; filho de família de comerciantes, revelou um talento precoce para a música, tendo sido logo elogiado por ninguém menos do que Dvorák. Mais tarde, chegou a estudar com Max Reger e Debussy (com quem não teve boas relações, por sinal).
A I Guerra Mundial, em que lutou, trouxe-lhe a consciência política e levou-o para a vanguarda e para a esquerda. De compositor tributário de um romantismo tardio, foi influenciado pela Segunda Escola de Viena (embora criticasse o elemento rítmico na música de Schönberg - o que Boulez, por exemplo, também faria poucas décadas depois), pelo dadaísmo, o jazz e o neoclassicisimo. Ele encarnou muitos aspectos dessa década. Mais tarde, no início dos anos 1930, converter-se-ia ao comunismo, o que também mudou sua linguagem musical, que ficou mais próxima do realismo socialista.
Chegou a naturalizar-se cidadão soviético, o que o salvou quando a Tchecoslováquia foi invadida pela Alemanha - era cidadão de Estado que havia pactuado com os alemães. A invasão alemã na URSS, no entanto, selou seu destino: ele não tinha conseguido emigrar para o seu novo país: tivera a invasão acontecido meses depois, ou a burocracia soviética tivesse sido menos lenta, a história teria sido outra: ele já havia mandado suas partituras por mala diplomática. Preso em 1941, foi mandado para um campo de concentração de Wülzburg,e não para o de Terezín, campo para que foram conduzidos outros músicos judeus (como Viktor Ullmann, Ilse Weber, Gideon Klein), pois aquele era o destino dos cidadãos soviéticos aprisionados. Sobreviveu pouco tempo ao terror nazista.
Nesta ligação, pode-se ler uma biografia do músico: http://orelfoundation.org/index.php/composers/article/erwin_schulhoff/ Nesta outra, uma lista das obras e uma discografia: http://claude.torres1.perso.sfr.fr/Schulhoff/index.html
No portal Musicologie, além de uma biografia com excertos de críticas da época, bibliografia ativa e passiva, e a lista das obras, há seis exemplos sonoros no fim da página: http://www.musicologie.org/Biographies/s/schulhoff_erwin.html
Este trabalho universitário da violinista e professora Eka Gogichashvili, embora se concentre na Sonata para Violino e Piano n. 2 (importante peça da música de câmara do século XX, que recebeu bela gravação no discoImpressões de infância", de Gidon Kremer e Oleg Maisenberg), fornece uma panorama musical e biográfico de Schulhoff bastante útil, e boa parte das fontes citadas não está mais em catálogo: http://etd.lsu.edu/docs/available/etd-1111103-195959/unrestricted/Gogichashvili_thesis.pdf
Nunca poderá ser devidamente avaliado o que se perdeu com o horror nazista,com as possibilidades de vidas e de mundos novos destruídas irremediavelmente. A música foi um só um dos campos dessas perdas. Penso em Gideon Klein, morto aos 26 anos. Em Hans Krása. Em Pavel Haas. Viktor Ullmann e sua obra-prima, escrita no campo de concentração de Terezín, O imperador de Atlantis, que satirizava o ditador alemão. E penso em Schulhoff.
Não me lembro mais como o conheci - mas foi no século XXI. Eu tinha poucos discos da série Entartete Musik, que a Decca criou na década de 1990 para lançar ou relançar música banida pelo nazi-fascismo. Os nazistas haviam feito uma exposição de arte "degenerada" ("entartete", daí o nome da coleção) para incluir tudo que tivesse influência de arte não europeia (como o jazz), autores esquerdistas, judeus etc. A Decca gravou obras de Schulhoff, mas eu não as vi na época. Creio que foi um disco de Gidon Kremer e sua Kremerata, para a antiga Teldec, que me chamou a atenção para o compositor.
Diversas faces adotou sua música: um romantismo tardio, que, após a I Guerra, cedeu espaço para o dadaísmo e para o jazz. A conversão ao comunismo fez com que o realismo socialista adentrasse sua música, nem sempre com bons resultados. Ele chegou a musicar o Manifesto Comunista - infelizmente, nunca ouvi esse oratório, de que há pelo menos uma gravação. A revista Grammophone julgou-o desigual, com marchas militares "desagradáveis", "fascistas", e um final "chato", que não estaria à altura das palavras do Manifesto. É possível que a crítica seja correta e ele tenha pisado a garganta de seu canto, como fez Maiakóvsky; nunca ouvi nada de bom que seguisse o oficialismo soviético.
[Nota: o disco não está mais disponível, mas a gravação do oratório está no YouTube; vocês podem julgar por si mesmos, apesar de a execução não ser exemplar: http://www.youtube.com/watch?v=dAujsDBZByA]
Como vários desses compositores que tiveram suas trajetórias interrompidas pelo nazismo, suas obras sofreram certo esquecimento - e as vanguardas que vieram após a II Guerra não tiveram interesse nesses compositores. No entanto, temos hoje em disco grande parte da sua obra. Alguns grandes nomes de hoje, como os violinistas Gidon Kremer, Daniel Hope e também Renaud Capuçon, o violoncelista Gautier Capuçon, a meio-soprano Magdalena Kozená, entre outros, gravaram-no.

Aconselho ouvi-lo. No trabalho de Gogichashvili, a autora ressalta como o jazz é usado para criar harmonias estranhas à música clássica ocidental, como o Dada está presente no elemento rítmico, mas também o barroco e o romantismo. No entanto, a escrita é tão segura que a música não perde coerência, testemunha-o esta gravação da exultante partitura:
https://www.youtube.com/watch?v=qwSw11HjmNw&feature=related
https://www.youtube.com/watch?v=SH7XJC8_1Vg&feature=relmfu

É possível ouvi-lo até mesmo sem som. Uma de suas peças dadaístas, 5 Pittoresken, de 1919, dedicada ao pintor dadaísta e antiburguês Georg Grosz, inclui um movimento todo feito de pausas, escrito décadas antes de uma tentativa semelhante de John Cage. Diferentemente deste último compositor, o ritmo de Schulhoff, como geralmente ocorre, é complicadíssimo; vejam este início da música:

Além das pausas, há notações não musicais, como sinais de exclamação, o que torna esta peça, de fato, um evento, apesar da falta de som. Esta interpretação é muito interessante:
 https://www.youtube.com/watch?v=3c5lRRaW4Jw

Ela sugere a mudez e o espanto da civilização diante desse futuro, imaginado como catástrofe. Grosz havia sido preso logo depois da I Guerra Mundial por sua participação na marxista Liga Espartaquista. Diferentemente de Cage, este silêncio é político, bem como o uso do ragtime e do maxixe nos outros movimentos das Pittoresken. Segundo Gottfried Eberle, nas notas do disco duplo que Margarete Babinsky gravou em 2008 do piano solo de Schulhoff, ele foi o primeiro compositor alemão (mas, na verdade, ele era tcheco!) a adotar uma forma de dança dos EUA.

Um exemplo marcante de seu estilo jazzístico é o oratório H.M.S. Royal Oak, de 1930, com libreto de Otto Rombach. Ele conta a história verídica de uma revolta ocorrida no navio britânico que fornece o título da peça. A rebelião foi causada por uma proibição de jazz a bordo! A Jazzrevolte der Matrosen (revolta-jazz dos marinheiros) é vitoriosa no fim, que explicitamente ataca o racismo. A luta por essa linguagem musical, considerada perniciosa pela direita por sua origem africana, era uma bandeira política contra a crescente onda do fascismo na Europa.
O navio foi o primeiro da marinha britânica a ser afundado pelos nazistas, já em outubro de 1939. 
A Ebony Band gravou a obra com a Cappella Amsterdam em um disco muito interessante que inclui peças de Weill e Toch. Não encontro na internet o oratório-jazz, mas temos a sonata que escreveu para saxofone e piano, a Hot-Sonate: http://www.youtube.com/watch?v=xEINXjjcsNw&feature=related 
Um dos trabalhos mais populares de Schulhoff, a Hot-Sonate é encontrada também como concerto para saxofone e orquestra, numa orquestração feita por Detlef Bensmann.
Bach estilizou as danças de seu tempo, Schulhoff fez o mesmo com as de sua época, incluindo o tango. Também a música brasileira recebeu esta leitura no Orinoco, de 1934. A gravação é da Ebony Band Amsterdam, regida por Werner Herbers, do segundo disco, desse grupo, dedicado apenas a Schulhoff:
 http://www.youtube.com/watch?v=H5uPJ5-ri1w&feature=related

As peças que mais gosto de Shulhoff são as de câmara, pois encontro nelas, em geral, mais ironia e surpresa. No entanto, aprecio muito sua única ópera, Flammen, ou "chamas", que pode ser ouvida integralmente nestas ligações:
Trata-se da gravação, feita em 1993 e 1994, da série Entartete Musik; como a maior parte dos discos dessa coleção, ela não foi relançada. John Mauceri é o maestro, com a orquestra Deutsches-Sinbfonie de Berlim e o RIAS-Kammerchor Berlin.
O tema da ópera foi-lhe sugerido por ninguém menos do que Max Brod, que lhe mostrou a peça em verso Don Juan do escritor tcheco Karel Josef Benes, que foi o próprio autor do libreto, traduzido por Brod para o alemão.
O libreto tem antes o caráter de um poema do que de um drama teatral tradicional, em razão de caráter estático e simbólico. Em comparação, o libreto de Pelléas et Mélisande é realista demais... A música de Schulhoff é capaz de criar os estranhos climas de cada cena, que oscilam entre o delírio, o sonho e o sexo, as ruas, os salões e o mundo das sombras.
Em Flammen, temos a encenação do amor impossível de La Morte por Don Juan. La Morte é capaz de matar mulheres seduzidas por ele, mas não o consegue matar, apesar de ele também desejá-la. Como em Don Giovanni de Mozart, na penúltima cena da ópera aparece a estátua do Comendador (que também em Schulhoff foi assassinado por Don Juan), mas ela o condena a viver eternamente. Deseperado, ele tenta suicidar-se, mas o tiro tem outro efeito, rejuvenesce-o. Antes, Dona Anna (que, nesta ópera, é esposa e não filha do Comendador), havia se suicidado, após o assassinato do marido, dizendo ao sedutor que ele era a própria imagem da morte.
A música de Schulhoff conserva toda sua variedade nesta ópera. Na terceira cena, por exemplo, enquanto uma freira e Don Juan fazem sexo, La Morte vai para o órgão e toca um Gloria, que se transforma num foxtrote
No final, indaga La Morte, sem resposta, "Chamas do amor e da morte, quando finalmente se unirão?" No disco, ela é muito bem interpretada pela meio-soprano Iris Vermillion; os outros personagens femininos (La Morte e as mulheres que Don Juan seduz têm a mesma voz) foram enregues a Jane Eaglen, aqui bem dentro dos seus limites vocais, antes de cantar Brünnhilde e Isolde no Metropolitan Opera House e em outros teatros. O protagonista é o tenor Kurt Westi, que soa adequado.

Antes de terminar esta breve nota, lembro que Schulhoff foi descrito como um pianista excepcional, atento aos compositores contemporâneos como Berg, Schönberg e Webern. No entanto, ele escreveu com fluência para outros instrumentos, como a flauta (um caso é o Concerto Doppio para flauta e piano, de estilo neoclássico), para violino e para quartetos de cordas. Mais do que os quartetos, no entanto, indico o Sexteto de Cordas, de 1924, dedicado a Poulenc, mas que lembra (devido aos momentos sem tonalidade definida) que ele foi contemporâneo, embora não seguidor, da Segunda Escola de Viena. Há um disco duplo da Kremerata dedicado a Chostakovich e a Schulhoff com esse intenso Sexteto, bem como o Duo para violino e violoncelo e os Estudos de Jazz para piano.
Kremer não gravou, pelo que eu saiba, a Sonata para violino solo, no entanto Daniel Hope o fez duas vezes: no disco "Forbidden Music", com peças de Gideon Klein e Hans Krása (e um Kaddish) interpretadas Philip Dukes e Paul Watkins, e no disco "Terezín", da meio-soprano Anne Sofie von Otter, que canta com o barítono Christian Gerhaher canções compostas nesse campo de concentração.
A gravação de Ivan Ženatý é mais difícil de achar em disco, porém está na internet: https://www.youtube.com/watch?v=IZO7rjJJH-8&feature=relmfu

Nessa peça, sente-se a imensa vitalidade da música de Schulhoff.  Benjamin Ivry ressalta essa qualidade, sustentando que não é adequado lembrar de um compositor pela forma como ele morreu - e é o que se faz geralmente com nomes como Ullmann, classificados como músicos do Holocausto: http://forward.com/articles/14601/defined-by-quality-/
No entanto, não se pode reduzir a obra desse músico à alegria. Sua vocação para a derrisão era notável. Um exemplo foi a Symphonia Germanica, de 1919, mas estreada postumamente pela Ebony Band Amsterdam; ela satiriza crualmente o hino alemão e o heroísmo germânico revela-se o delírio de um bêbado: "und wir alle, Deutsche Männer/ sterben so gerne, ach, den Heldentod".
E Schulhoff era perfeitamente capaz de expressar a revolta, a loucura e a morte, como se vê no Sexteto e em Flammen. É notável que ele o tenha feito sem perder o sentido da dança.

Para terminar dentro desse sentido, ouço o próprio compositor tocando seu Shimmy-Jazz, de 1928:

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Angélica Freitas e o tamanho da insurgência

No antigo K Jornal de Crítica (n. 10, abril de 2007), eu havia escrito uma crítica sobre livros de Angélica Freitas, Ricardo Domeneck e Marília Garcia (segundo a ordem do meu gosto), que haviam sido lançados na coleção Ás de Colete da Cosac Naify. O meu preferido foi Rilke Shake, a estreia de Angélica Freitas.
Alguns narizes foram torcidos para o que escrevi, do sul ao nordeste, pelo pouco de que fiquei sabendo, não só em razão de  minhas limitações críticas. Houve uma certa resistência ao humor da autora - estes poetas contemporâneos brasileiros são tão seriosos! - e de um subjacente machismo dos poetas avançadinhos.
Nesta quarta-feira, em São Paulo, será lançado o segundo livro da autora, Um útero é do tamanho de um punho, na livraria da vila da rua Fradique Coutinho:
http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2012/10/sao-paulo-lancamento-do-novo-livro-de.html
 Gostei muito dele. O livro vai além do primeiro, mantendo, em geral, o mesmo tipo de verso e as mesmas sonoridades (como a rima colgate com fagote). Sua política de gênero está presente desde o título e surpreende já na epígrafe, tirada da Ópera dos três vinténs, de Brecht e Weill:
http://www.youtube.com/watch?v=Ec0clERjQ5A
E para quê? Para anunciar que o feminino que é motivo do livro não é nada submisso. Se a Amélia, antiquada figura da mulher, aparece, é porque "fugiu com a mulher barbada" (p. 24), no engraçado e terrível poema com que termina a primeira parte do livro, "Uma mulher limpa". Este começo apresenta figuras femininas de enquadramento e de revolta à salubridade da ordem vigente. No mesmo poema as duas reações podem aparecer, como o da página 20, que começa com "uma mulher gostava muito de escovar os dentes" e termina com "ao cuspir sentia-se muito melhor".
"Mulher de", a segunda seção, apresenta satiricamente vários tipos: mulher de malandro, de um homem só, de posses (com uma citação marota de Elizabeth Bishop), de regime... Na etapa seguinte, "A mulher é uma construção", há mais sátira e tiros certeiros:

a mulher é uma construção
deve ser

a mulher basicamente é pra ser
um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor

particularmente sou uma mulher
de tijolos à vista
nas reuniões sociais tendo a ser
a mais mal vestida (p. 45)
O lírico "eu durmo comigo" encerra a série e prepara o poema longo que dá título ao livro, de interessantíssima construção, que combina dados biológicos sobre o útero, uma língua do i, lista de úteros famosos (isto é, mulheres), paródias de discursos familiares sobre as mulheres pra explicar "para que serve um útero quando não se fazem filhos" (p. 59). A explicação - o próprio poema e seu questionamento da redução moral e biologizante das mulheres a funções reprodutivas - é um tremendo soco poético, mesmo que ela escreva "um útero é do tamanho de um punho/ não pode dar soco" (p. 61).
Ao impacto desse poema, seguem as paródias de "3 poemas com o auxílio do google", construídos a partir de anáforas e compostos apenas de lugares-comuns. No terceiro, temos "a mulher quer ser possuída/ a mulher quer um macho que a lidere" até "a mulher quer ser suicidar" (p. 72).
A penúltima seção do livro é uma declaração de amor chamada "Argentina", em que a questão de gênero não deixa de aparecer:

os churrascos são de marte
e as saladas são de vênus

me dizia uma amiga que os churrascos
cabem aos homens porque são feitos
fora de casa

às mulheres as alfaces
às alfaces as mulheres

que alguém se rebele e diga
pela mudança de hábitos

assar uma carne no forno
seria um paliativo não seria uma solução
que suem as lindas na frente da churrasqueira
e que piquem eles as folhas verdes (p. 76)
E ela reivindica, a sua maneira, a identidade de poeta daquele país: "bueno, soy 1 poeta brasileña" (p. 80).
Outro poema longo, "O livro rosa do coração dos trouxas", encerra o livro. O tema do amor de uma mulher por outra, central para esta poesia, encontra nesse poema sua melhor expressão desde o primeiro livro. A repetição dos papéis de gênero é questionada:

as mulheres são
diferentes das mulheres
pois
enquanto as mulheres
vão trabalhar
as mulheres ficam
em casa
lavando louça (p. 85)
Lemos então uma história de amor que não chegou ao casamento, que não obrigou a família a ter de unir suas filhas diante da sociedade pelotense.
Essa construção de uma identidade feminina insubmissa, que deseja uma felicidade que necessariamente incomodará a ordem ("uma mulher suja/ incomoda incomoda/ muito mais", p. 16), e cujo desejo não cabe no google, encontra um bom paralelo no projeto gráfico de Tereza Bettinardi, que aproveita imagem de Anna Maria Maiolino: há muito do universo feminino nos fios retratados, mas eles não se fecham no dócil ato doméstico da costura, e sim apontam para o que não se pode configurar, exceto em insurgência.
Aconselho alegremente a leitura do livro, bem como do anterior. Abaixo, reproduzo a parte da resenha de 2007 que tratava de Angélica Freitas:




Duas estreias, três poetas e o outro inumerável: Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck


Rilke Shake de Angélica Freitas revela um nome novo na poesia brasileira. Pode-se perceber que se trata de um livro de estreia pela heterogeneidade dos elementos: o livro, que inclui até mesmo boa poesia infantil (p. 26 e 45), tem desníveis, pois os poemas de reminiscência são mais fracos (p. 10, 13 e 31). O melhor do livro, contudo, é muito bem urdido.
Formalmente, destacam-se os versos geralmente curtos, o ritmo corrente e o uso da rima, algumas vezes surpreendente e com efeito cômico: “as estrelas dançam no piche/ [...] / e danço que nem dervixe” (p. 39); “entre os ringues polifônicos e a queda da marquise/ morreu ontem executada a poor elise” (p. 55), “que o chão é lindo & já vem vindo” (p. 15), “quem acreditaria/ nesta versão dos fatos? ajudem-me, maragatos” (p. 8).
Há traços de pertencimento e ruptura. O pertencimento a uma tradição, nesta poesia, não se dá pela repetição de moldes ou pela subserviência mistificadora, mas pela inscrição de marca própria. O poema de Jorge de Lima O grande desastre aéreo de ontem é relido segundo a perspectiva do violinista em queda (p. 10-11). Veja-se o que acontece com a antropofagia relida quase cem anos depois no poema de entrada: “Dentadura perfeita, ouve-me bem:/ não chegarás a lugar algum./ são tomates e cebolas que nos sustentam,/ e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita./  ah, sim, Shakespeare é muito bom,/ mas e beterraba, chicórias e agrião?/ [...] dura demais é a vida, dentadura perfeita,/ mas come, come tudo o que puderes,/ e esquece este papo,/ e me enfia os talheres.” (p. 7); o poeta sabe-se menos nutritivo do que o agrião, mas se oferece ao repasto e, no poema seguinte, ao furto: os livros dizem “roube-nos” (p. 8). Humor, e melhor do que o do trocadilho que dá título ao livro.
A ruptura de Angélica Freitas consiste em criar uma tradição própria no tocante ao gênero e à orientação sexual. As observações desta poesia são muito finas: em poema a respeito do homem-aranha, uma criança vê uma mulher no alto de um edifício: "mamãe, mamãe/ é a mulher/-aranha?/ não seja tola/ ela está/ limpando/ janelas" (p. 47) Dessa forma, a menina aprende os papéis reservados ao seu gênero: não o heroico, mas o doméstico - o exterior dos vidros não foge à domesticidade.
Dois dos melhores poemas do livro encenam as diferenças de gênero: sashimi e sereia a sério: a "ocupação tão masculina" de sushiman, de "retalhar/ melhor o peixe" (p. 22) e, do outro lado, a sereia que "pisa em facas quando usa os pés" (p 23): "melhor seria um final/ em que voltasse ao rabo original/ e jamais se depilasse// em vez do elefante dançando no cérebro/ quando ela encontra o príncipe/ e dos 36 dedos/ que brotam quando ela estende a mão" (p. 24). Cada um está do lado oposto da faca. A sereia, por sinal, é revisitada em o que é um baibai? (p. 41) e vira um arquétipo da mulher em pequenos retratos até a Lorelei com celular fazendo bipe sob as águas do Reno.
Chegamos aos poemas de mulher para mulher, campo ainda magro na poesia brasileira: a relação entre Elizabeth Bishop e Lota Macedo Soares ganha um poema elegíaco (liz & lota, p. 29). Destaca-se o antológico ciclo da página 32 a 37, a que o poema da 38 serve de apêndice: "gertrude stein tem um bundão chega pra lá gertrude stein [...]/ gertrude stein daqui pra cá é você o paninho de lavar atrás da orelha é todo seu da qui pra cá sou eu o patinho de borracha é meu [...]" (na banheira com getrude stein, p. 32); no epílogo, com ninguém menos do que Stein, Alice B. Toklas, Josephine Baker e Djuna Barnes, chega Ezra Pound: "lésbicas são um desperdício ele disse/ você já ouviu falar em mussolini?" (p. 37) - a relação entre homofobia e fascismo é desnudada.
Este mundo está muito distante da tragédia por trás de cortinas da poesia de Ana Cristina Cesar - que gerou poemas tão poderosos como 21 de fevereiro de Cenas de Abril. Em Angélica Freitas, o júbilo é possível e gera uma poética própria: o poema de amor siobahn 4 apresenta uma namorada celta em quatro partes - uma posição amorosa em poesia: "às vezes ela ficava/ de quatro, o símbolo/ celta nas costas" (p. 50) - até a elegia da quinta parte: "será que também pergunta/ o que aconteceu// com as boas garotas/ de sodoma, essas que/ sempre// se beijavam nas escadas/ sumiam nas bibliotecas/ preferiam virar sal?" (p. 51).




quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Literatura portuguesa contemporânea e violência: Alexandre Nave, Jorge Roque e Guilherme Faria


Esta pequena resenha foi publicada no antigo K Jornal de Crítica, n. 16, de 2007. Como não está mais disponível, e os livros são muito interessantes, incluo-a aqui.
 




Literatura portuguesa contemporânea e violência: Alexandre Nave, Jorge Roque e Guilherme Faria

Pádua Fernandes

Dois livros portugueses diversos, de três autores contemporâneos diferentes (e um deles é artista plástico), em dois gêneros literários distintos. No entanto, essas dissimilitudes giram em torno de motivo semelhante: a violência. No primeiro livro, temos a violência como cenário e motivo; no segundo, a violência como fundadora do humano, que é obtido pelo combate, e não é apenas produto, mas a própria batalha.
O poeta Alexandre Nave, antes de Vão cães acesos pela noite (Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2006), só havia publicado o interessante Columbários e sangradouros (Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2003), que pecava pelo excesso expressionista de “facas repetidas nas gargantas” (p. 64). Contudo, em versos como “temos cicatrizes/ como fronteiras da pátria” (p. 47) já se podem encontrar as preocupações do segundo livro.
Em Vão cães acesos pela noite, o universo militar está presente desde a violenta capa, baseada em pintura de Ernst Ludwig Kirchner, Homens da artilharia no chuveiro. Significativamente, a epígrafe à seção central do livro, Canum more, é de Wilfred Owen, o poeta inglês quer morreu na Primeira Guerra Mundial e inspirou Britten para seu War Requiem.
Os diversos poemas seguem versificação invariável: versos livres e brancos que ficam, em geral, em torno do octossílabo, e tratam de partes do corpo (“Focinhos”, “Tórax”, “Colhões”), locais (“Quartel”, “Refeitório”, “Vestiário”), atividades e ritos (“Treino”, “Ronda”) e até pessoas (“Recruta”, “Putas”). No entanto, não há sujeito nas descrições: o humano só aparece num viés anatômico, com insistência no cheiro, no cu e na urina, típicas dos cães. Em determinado momento, lembra, embora com menos radicalidade, a teologia escatológica de Hilda Hilst: “chegam raivosos queimados nos altares,/ vão com o dia defuntos ao terço// dias inteiros// como deus caísse.// E deitam-se de peito a escutar,// descobrem no cu o buraco de Deus.” (p. 74-75).
À falta do sujeito, partes do corpo tomam a cena, ou menos do que isso: “o cheiro nos pés como memória/ do coração das raparigas.” (p. 83). As relações humanas dão-se em termos de matilha – em geral, os “camaradas” estão em grupo e sem individualidade; as relações sexuais são descritas em termos como “pelas raparigas, montadas, ermos, armas,// agudos na carne tenra das virilhas,/ esfregam as crostas dos lombos// arrastam o corpo nelas como sarna” (p. 69); “dão de bruço, dizem que se fodem/ oferecem o caralho, mijam cheios// encrespam os ossos, chifrudos perfuram/ das fardas, postos tesos nos membros// fodem ao relento nos quintais das casas/ marcam o território ao corpo,// guardam a honra no cu.” (p. 29); “trazem gumes no cheiro das virilhas,/ a urina escorrida pelas pernas,// dão o cu fechado aos cães.” (p. 31).
A masturbação é freqüente. Em “Quartel”, pode-se ler: “entre o peito e o cinto, foscos/ batem punhetas, segóvias,/ ficam entediados de esperma// uns deitados sobre o corpo, outros/ erguidos à porta, escarram pelo chão” (p. 40-41). A ejaculação e o escarro igualam-se, pois não há prazer ou júbilo, e sim o mero funcionamento de mecanismos corporais.
Essa vivência fragmentada do corpo humano, não como resultado de um evento como uma batalha, mas de uma cultura militar, com seus locais, ritos e armadilhas, corresponde à noção de violência assumida pelo autor. Não é preciso bombas para que estes corpos estejam em pedaços, não é preciso que a guerra ecloda para que todos sejam estrangeiros. Com estas vestes, a humanidade não é um fim: “a farda como saca de morte” (p. 57).
A presença da pátria é vivida no mesmo diapasão: não há, obviamente, esfera pública, o território é marcado à maneira dos cães: “urinam anônimos de cerveja,// pingam a urina quente nas botas,/ marcam a pátria no fio do mijo.” (p. 94).
Não há diferenças significativas entre as duas primeiras seções, a que leva o título do livro e a Canum more. A terceira e última, “Cânticos”, dedicada a Pasolini, encerra três cânticos, dedicados, nesta ordem, ao sangue, à merda e à pátria. O universo de Salò parece não estar distante. Assim termina o livro: “guardamos a fronteira da pátria// deitamo-nos de orelhas ao vento/ limpamos os intestinos na erva// entre arvoredo e gado,/ enterramos carne, sangue e merda.” (p. 108-109).
Neste livro, nem sempre a sintaxe é bem resolvida; por vezes, Alexandre Nave usa construções que soam desajeitadas, sem que essa falta de jeito colabore para o sentido: “morrem na vergonha do que esperam/ astutos à honra do que deixam.” (p. 44). É de pensar também que o autor encontrará novos metros e ritmos nos próximos livros de sua voz já distinta.
Senhor porco (Lisboa: &etc, 2004) com texto e pinturas de autoria, respectivamente, de Jorge Roque e Guilherme Faria, é um livro de aforismos ilustrados, com notável integração dos dois trabalhos artísticos.
O livro inicia com uma “advertência”: “Não se trata aqui do belo, mas da resistência em face da ameaça.” (p. 5). A ameaça é o porco. O animal, Jorge Roque diz expressamente, é uma metáfora (p. 16). Pode-se comparar este porco ao filho-da-puta do Discurso sobre o filho-da-puta de Alberto Pimenta, embora sem a construção e a vertigem desse livro de Pimenta. Os porcos, “Distingue-os poder, cultura, estilo. Liga-os o porco que os veste.” (p. 28); “Ajusta óculos, compõe gravata, olha em volta com olhar douto. Na pata com que vira a folha, a falta de dedos trai o porco.” (p. 44).
Trata-se do homem na cultura, e não na natureza, como talvez se pensasse devido à designação de um animal irracional: “Fato de marca, punhos dourados, gravata estudada como convém, senta-se à mesa, desdobra o guardanapo (tudo com gestos de compostura treinada). Mas ao chegar o prato, nele sorri o porco.” (p. 8).
O porco também não é simplesmente o outro, mas a si mesmo: se “O porco prolifera, as margens para que empurra o homem estreitam-se. Ser homem não é um direito, mas um combate.” (p. 20). O porco está dentro de cada um, a guerra não tem fim: “Cada vez que um porco cospe no meu nome mais eu coincido com ele.” (p. 12); “[...] todo homem tem um pouco de porco. O que faz o homem é o combate sem tréguas” (p. 47).
Para a luta pelo homem, precisamos da arte: “Toda a arte é moral (também poderia dizer política): ou implica uma construção do homem ou é decorativa.” (p. 39). Dessa forma, o livro é nostálgico da moral, do sentido, e de Deus: “[...] quanto mais porco, menos moral.” (p. 43); “O porco é um animal biológico. O homem um animal de Deus (esta diferença não é mensurável).” (p. 28). Essa nostalgia, no entanto, não se torna ingenuidade porque Jorge Roque sabe que o “combate é sem vencedor” (p. 47).
As pinturas de Guilherme Faria em geral remetem à barbárie presente na civilização, sublinhada pelas figuras dos porcos antropomorfizados. Uma das mais chocantes talvez seja a da tourada, no momento exato da morte do porco-touro, em que todos os personagens (inclusive os da plateia)  são porcos – o júbilo do público é de fato indecente. Em outra, um porco cuja metade direita difere da esquerda, senta-se, enquanto a sua própria pele, como casaco, está pendurada. Talvez ele não seja mais do que pele; mas é nesse mesmo sentido que se pode dizer que a literatura tem armas: ela tem apenas aquilo de que ela se pode descobrir, e, mesmo despindo-se, isso que a cobriu não consegue deixar de integrá-la. Não outra é a violência constitutiva da literatura.