O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Desarquivando o Brasil XLVI: A ditadura nas ruas da USP

O professor de ciência política Raphael Neves (@politikaetc) chamou a atenção no twitter para a moção de apoio da Congregação da FFLCH/USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) à criação de uma comissão da verdade na Universidade de São Paulo: http://twitpic.com/bnf6ft
O presidente da Congregação é ninguém menos do que Sérgio Adorno, um dos principais pesquisadores brasileiros na área de violência e direitos humanos. Sua posição em prol da responsabilização dos agentes de abusos contra esses direitos é bem conhecida: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-07-01/para-especialistas-brasil-precisa-responsabilizar-torturadores-para-evitar-repeticao-de-atos
O reitor e o Conselho Univeristário faltaram ao ato de entrega das assinaturas pela criação da Comissão da Verdade, em novembro, deixando aproximadamente cem cadeiras vazias: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2012/11/reitoria-falta-a-ato-pela-comissao-da-verdade-na-usp/
Talvez quisessem, dessa forma, homenagear os desaparecidos? Se assim foi, ocorreu um sugestivo happening que pouca gente entendeu...
No entanto, penso que a melhor homenagem, hoje, é outra: fazer-se presente nas campanhas e iniciativas pela memória e a verdade.

Já mencionei neste blogue o problema do expurgo de professores durante a ditadura militar (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/desarquivando-o-brasil-xlii.html) e a vigilância exercida sobre as aulas (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/05/desarquivando-o-brasil-xxxvi-comissao.html).
Quero agora lembrar de uma Informação de 16 de agosto de 1974, da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Educação e Cultura, na época dirigido pelo político e militar Ney Aminthas de Barros Braga, que sucedeu Jarbas Passarinho.
Na administração pública, durante a ditadura militar, proliferaram essas divisões de segurança e informações. O antigo decreto-lei n. 200 de 1967 (art. 29, inciso III) previu que os ministérios civis seriam assessorados por esses órgãos que respondiam ao SNI e ao Conselho de Segurança Nacional. Com o decreto nº 60940 de 1967, as antigas seções de segurança nacional, criadas no governo de Gaspar Dutra, com o decreto-lei nº 9775 de 1946, foram transformadas nas DSI.
A partir de 1970, essas divisões ficaram vinculadas ao SNI e duraram até a extinção desse órgão, no governo Collor, em 1990. O regulamento imposto pelo Decreto nº 37325, desse ano, previa que, por intermédio delas, a administração direta e a indireta se integrariam ao Sistema Nacional de Informações (SISNI). Por conseguinte, não se tratava apenas de  infiltrar a administração pública com espiões oficiais, e sim de subordinar as finalidades da administração à segurança do governo, tornar tal segurança na finalidade principal das instituições públicas. O decreto-lei nº 200 apontava para essa direção.
No documento que aparece na imagem, denuncia-se a formação, nos meios ligados à educação, de uma frente de "propaganda adversa" (isto é, a primeira fase da guerra subversiva, de acordo com a doutrina de segurança nacional, que se daria por meio da contestação dos valores sociais), na qual aparecia o CEBRAP, que continua sendo uma referência para a pesquisa brasileira.
Reclamava-se da venda de livros soviéticos a preços baixos:

Em si, um livro técnico russo pode possuir a mesma isenção e objetividade científica de um livro técnico de outro país qualquer. Somente adquire conotação tendenciosa em decorrência da simpatia filo-comunista que desperta, especialmente, por seu aspecto de preço acessível.
Nem todas editoras de esquerda seguem hoje essa lição. A DSI terminava o documento com uma "apreciação" da conjuntura, cujo início transcrevo:

É verdade que a propaganda adversa interna, estudantil, não é realizada pela massa de alunos e não gera efeitos na classe toda.
Entretanto, convém obsevar que ela é desenvolvida justamente por elementos líderes e sobre eles exerce influência. Sabemos que um líder é mais importante do que muitos elementos amorfos. E, a médio prazo, eles acabam influenciando a massa toda, caso não se tomem medidas oportunas.
Prova do resultado de medidas oportunas encontramo-la em algumas Universidades, onde a vigilância firme e corajosa das respectivas autoridades conseguiu reduzir, ou mesmo extinguir, os processos de propaganda adversa. As próprias autoridades universitárias da USP estão começando a tomar medidas saneadoras, cujos efeitos benéficos já se fazem sentir.

O reitor da época em que as "medidas saneadoras" estavam sendo tomadas era Orlando Marques de Paiva, professor da Veterinária, que acabou dando o nome da rua onde se situa essa faculdade. Entre as razões para merecê-lo, provavelmente está o calamitoso depoimento que deu a comissão especial de inquérito aberta na ALESP em 1977, em razão do controle ideológico sofrido pela USP, relatado em O livro negro da USP. Quem não o leu pode fazê-lo por meio desta ligação: http://www.adusp.org.br/files/cadernos/livronegro.pdf
O reitor, diante dos deputados estaduais, negou que houvesse ingerência dos órgãos de informação sobre a Universidade, tomando para si a autoria das várias arbitrariedades nas contratações. A ADUSP ressaltou nesse livro, com propriedade, o descalabro institucional por que passava a Universidade:

Assim, desconhecendo todas as evidências, contrariando o que é de conhecimento geral de toda a Universidade, o Reitor insiste em negar o controle ideológico exercido sobre o processo de contratações. Nesse processo acaba admitindo o exercício de um arbítrio pessoal absoluto sobre todas as admissões e expõe abertamente o grau de autoritarismo a que se chegou na Universidade. [p. 84]
Simpática matéria do Jornal da USP, da semana de 3 a 9 de junho de 2002, explicou como eram escolhidos os nomes das ruas no campus: "A história contada nas ruas", de Sylvia Miguel: http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2002/jusp599/pag12.htm 
Uma passagem, porém, deve ser posta entre parênteses:


Foi em 1969, no auge dos “anos de chumbo”, que o Conselho Universitário decidiu aprovar essa regra. Hoje, a resolução pode parecer um tanto anacrônica ou, talvez, restritiva. Mas há quem diga que foi uma atitude preventiva para evitar que generais “invadissem” o campus por meio de nomenclaturas de ruas. Já imaginou praças e avenidas chamadas general Golbery do Couto e Silva, Nilton Cruz, Costa e Silva...? 

Há várias dessas ruas no país (http://www.correiodeuberlandia.com.br/wp-uploads/2011/11/desvio.jpg). No entanto, a resolução não impediu as deferências à ditadura, uma vez que ela já era homenageada por diversos professores, alunos e funcionários que com ela colaboravam em seu tempo (e talvez ainda agora, se é que há quem esteja a obstruir a criação de uma comissão da verdade na instituição) e pelo antigo reitor que dá nome à rua da faculdade de Veterinária.





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