O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Antologia de viagem: os gritos de Paris

Eu quis escrever esta nota desde que voltei da França, mas tive tanto trabalho a fazer que não consegui.
Como lá estive muito ocupado com as tarefas acadêmicas, concentrei-me em livros teóricos. Dessa forma, esta antologia não será poética como foram estas: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/07/antologia-de-viagem-argentina.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/07/antologia-de-viagem-argentina-ii.html
Tampouco será mural (como esta: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/antologia-mural-de-viagem-argentina.html), eis que os parisienses não aprovam tais práticas na paisagem urbana. No entanto, as manifestações podem ser vistas e ouvidas nas ruas da cidade. Uma das mais célebres composições de Clément Janequin (1485-1558) é justamente "Voulez ouyr les cris de Paris", de que o Ensemble que leva o nome do compositor fez uma grande gravação: http://www.youtube.com/watch?v=FiPhbS_ZlRk.
Da Renascença aos dias de hoje, os gritos de Paris continuam a se fazer ouvir. Trago aqui apenas alguns dos que pude registrar em cartazes, acompanhados de excertos de obra que lá comprei e li, Retour à Reims (Paris: Flammarion, 2010 - a primeira edição é de 2009), de Didier Eribon, um livro que transita com imaginação entre teoria e autobiografia. O sociólogo, em razão da morte do pai, com quem não falava há anos, retornou à cidade natal, motivando todo um olhar sociológico sobre o passado, a família e o meio operário em que ele foi educado.
Por sinal, será publicado novo livro dele neste ano, La société comme verdict: http://didiereribon.blogspot.com.br/2013/03/a-paraitre-le-17-avril-la-societe-comme.html
Os cartazes, fotografei-os nas duas manifestações que acompanhei. A canção de Janequin  não termina afirmando que, se se quer ouvir mais, deve-se ir para rua?
Escrevi uma nota sobre a passeata de 27 de janeiro deste ano em prol do matrimônio igualitário na França, o Mariage pour tous: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/01/matrimonio-igualitario-na-franca-ii.html

 Nela, incluí algumas fotos, porém, alguns dos cartazes mais curiosos, deixei-os para depois.Como o cartaz ao lado, que afirma que certa parte do corpo do manifestante é um local de embates (amorosos, imagino), e não assunto de debates. O trocadilho funciona em português.




Bandeiras da frente da esquerda coloriam a paisagem, bem como as do arco-íris, tipicamente presentes nas manifestações pela liberdade sexual.
Um cartaz aparece em primeiro plano, afirmando que as listas de casamentos dos homossexuais vão relançar a economia. Em vermelho, outro, ao fundo, afirma que "para nós uma criança não será nunca um acidente", valorizando a "homoparentalidade" em relação a parcela significativa dos pais heterossexuais.

Ainda a respeito de formas alternativas de "parentalidade", vemos o cartaz com sensata interpretação bíblica, "Santa Maria/ Mãe de aluguel".
É de lembrar que a prática da mãe de aluguel é ilegal na França. O governo, em 25 desse mês de janeiro, gerou uma reação raivosa da direita por decidir facilitar o reconhecimento da cidadania francesa às crianças de pai francês que nasceram no estrangeiro por meio dessa prática.
O fascismo dessa direita é tão grande que deseja negar o direito à nacionalidade, no entanto previsto pelo artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A ministra da justiça, Christiane Taubira, foi muito atacada. No entanto, sob esse aspecto, acho digna a atitude do governo de Hollande. Os deputados da UMP (o partido de Sarkozy) recorreram ao Conselho de Estado para anular a medida: http://lci.tf1.fr/france/societe/mere-porteuse-des-deputes-ump-saisissent-le-conseil-d-etat-7811258.html?xtmc=meres-porteuses&xtcr=12
Por outro lado, pode-se lembrar de uma crítica de esquerda, contrária ao casamento igualitário por considerá-lo burguês ou coisa parecida (conheço até quem seja contra cantar afinado, pois a afinação também seria burguesa...). Já escrevi sobre essa esquerda, tão conveniente para a direita. Agora, apenas cito o livro de Eribon:

Sem dúvida o sentimento de desgosto que me inspiram hoje estes e estas que tentam impor sua definição do que é um casal, do que é uma família, da legitimidade social e jurídica reconhecida a alguns e recusada a outros etc, e que invocam modelos que jamais existiram, salvo na sua imaginação conservadora e autoritária, devem muito de sua intensidade a esse passado em que as formas alternativas estavam destinadas a serem vividas na consciência de si como desviantes e a-normais e, logo, inferiores e vergonhosas. É por isso que desconfio igualmente das imposições de a-normalidade que nos são dirigidas pelos defensores – igualmente normativos, no fundo – de uma não-normalidade erigida em “subversão” prescrita, de tanto que pude constatar, ao longo de minha vida, a que ponto normalidade e a-normalidade eram realidades completamente relativas, relacionais, móveis, imbricadas uma na outra, sempre parciais... [p. 70-71]

A votação do projeto não acabou ainda. Como se sabe, o Reino Unido foi mais rápido e aprovou o matrimõnio igualitário em fevereiro deste ano. Leiam o comentário de que o casamento de Elton John aumentaria em um décimo o PIB: http://www.guardian.co.uk/society/2013/feb/05/gay-marriage-saviour-of-economy?INTCMP=SRCH
No último dia de estadia, 31 de janeiro de 2013, as minhas aulas já haviam acabado e eu havia acabado de despachar as malas. Peguei o RER para dar uma última olhada em Paris e vi no trem um passageiro com cartaz de protesto contra o governo de Hollande. Perguntei do que se tratava, e ele explicou que iria para a manifestação contra o governo que começaria às 14 horas, partindo da estação de Denfert-Rochereau.


"O voto "útil"/ Eis aonde isso leva", era uma das faces do cartaz.
Fui almoçar e acompanhei a manifestação até as 16 horas, quando ela tinha chegado no Boulevard Raspail com a Rue du Bac. Ela foi bem menor do que a do Mariage pour tous.
Nessa manifestação, a frente de esquerda não contou, logicamente, com o PS. Os comunistas lá estavam e alguns cantavam. Foi a única vez que ouvi música cubana, e em espanhol, tocando nas ruas de Paris.

Lá, os manifestantes pararam. Ao lado, podem-se ver os percussionistas e alguns dos cartazes: "O Estado enterra a Universidade", "Resistamos e salvemos nosso futuro".
"Eles disseram amém", está escrito no caixão erguido. Aqui diríamos, inspirados no governador de São Paulo, "quem não reage está morto".

Boa parte dos cartazes dizia respeito à situação da educação. Professores reclamavam que a profissão não deve ser mais um "sacerdócio". Muitos cartazes criticavam o ministro da educação, Vincent Peillon, por não escutar os professores, e por ter afirmado que havia "mais professores do que turmas". O cartaz com o acróstico do sobrenome do ministro refere-se a desigualdade entre as municipalidades (reclamação repetida diversas vezes). E termina: "SIM PARA MUDAR/ Não a esta reforma tal como ela está."

Acabei encontrando o manifestante que me alertou. Eis o verso do cartaz que carregava:"PS/ Especuladores/ Mesmo combate/ Vergonha para o PS". 
Sobre esse protesto, imagino que esta passagem do livro de Eribon fosse a mais conveniente:
[...] os partidos de esquerda e seus intelectuais de partido e de Estado pensaram e falaram desde então uma linguagem de governantes, e não mais a dos governados, exprimiram-se em nome dos governantes (e com eles), não mais em nome dos governados (e com eles) e, portanto, adotaram sobre o mundo um ponto de vista de governantes, rejeitando com desdém (com uma grande violência discursiva, sentida como tal por aqueles sobre quem ela se exerceu) o ponto de vista dos governados. [p. 130-131]
Não cai como uma luva para certa esquerda brasileira?



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