O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 30 de março de 2013

Desarquivando o Brasil LIV: Negacionismo de reserva no Brasil e no Chile



Com o que Carlos Fico chamou de "comunicado patético" (https://twitter.com/brasilrecente/status/317394150507044864),  os presidentes dos Clubes Naval, Militar e de Aeronáutica divulgaram um manifesto, em 28 de março de 2013, com a data de 31 de março (certamente em alusão ao golpe de
de abril de 1964), para criticar a Comissão Nacional da Verdade, cujos membros seriam "totalitários".
Qual é a preocupação aparente desses militares da reserva? Que haja uma nova versão dos fatos ocorridos durante a ditadura. Por essa razão, preocupado com a investigação sobre os crimes cometidos pelos agentes do Estado, seus colaboradores e financiadores, em fevereiro último, o presidente do clube de Aeronáutica, o brigadeiro Ivan Frota, havia entregue a Cláudio Fontelles, da CNV, documentos, principalmente o ORVIL, livro sobre as organizações clandestinas de esquerda elaborado a partir das informações obtidas por meio da tortura: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,militares-criticam-comissao-da-verdade-e-homenageiam-golpe-de-64,1014395,0.htm 
O próprio documento entregue, pois, depõe contra aqueles que o entregaram...
Esse tipo de reação negacionista contra mecanismos de justiça de transição também ocorreu em outros lugares. No Chile, o General Manuel Contreras Sepúlveda entregou documentos à Justiça, com um manifesto, de 12 de maio de 2005, "Introducción a la entrega de documentos que demuestran las verdaderas responsabilidades de las instituciones de la defensa nacional en la lucha contra el terrorismo en Chile", que li na Biblioteca de Nanterre (e pode ser baixado aqui: http://www.latinamericanstudies.org/chile/contreras-2005.pdf). Ele dirigiu a DINA (Direção da Inteligência Nacional), uma das peças fundamentais da repressão política e do terror de Estado durante a ditadura de Pinochet.
Contreras já havia sido condenado pelo assassinato do oposicionista Orlando Letelier nos EUA, e sofreria nova pena neste processo: http://www.latinamericanstudies.org/operation-condor.htm



O curioso documento admite o desaparecimento de vários oposicionistas (e deixa clara a resposabilidade de Pinochet, que tentava jogar toda a culpa sobre seu subordinado), mas quer demonstrar que a esquerda inventava acusações contra a DINA, Contreras e o ditador Em seu insistente negacionismo, chega a afirmar que o Chile havia sido o "único país no mundo" a derrotar o "terrorismo" com um "mínimo de baixas humanas": 

[...] nuestra Patria ha sido el único País en el mundo que ha derrotado al terrorismo con un minimo de bajas humanas, en relación a la criminalidad y violencia con la cual esta especie violentista ha demonstrado producir a lo largo de su accionar en tantos lugares del planeta.
 

A afirmação negacionista, que minimiza a violência da repressão chilena, é acompanhada da defesa da negação dos direitos humanos pela repressão política: "vincular a luta contra o terrorismo aos direitos humanos" seria um "grave erro de incalculáveis consequências".
Nesse ponto, como também ocorreu no Brasil (o script da doutrina de segurança nacional apresentava semelhanças nos dois paises), a direita armada associa os direitos humanos ao marxismo, pois permitiria que os marxistas fossem considerados "vítimas":

Vincular la lucha contra el terrorismo com los DD.HH. es un grave error de incalculables consecuencias. Este peligroso error queda palmariamente demostrado por cuanto los DD.HH., como concepto universal, fue apropriado por los marxistas y tuvo como principal escenario de aplicación y desarollo a nuestro País, traduciéndose em que los terroristas fueran considerados “las víctimas” y, los Militares que derrotaron al terrorismo en Chile fueran catalogados como “victimarios”.
Nesse ponto, Contreras acaba por admitir o caráter criminoso do regime de Pinochet na violação institucionalizada dos direitos humanos pelos órgãos de repressão. Entende-se, portanto, que Contreras lamente a democratização; com ela, "Queda la impresión que la Historia, en este caso, ha variado trágicamente su rumbo". Felizmente, o curso da história virou... É o mesmo lamento daqueles militares da reserva brasileiros, com a significativa diferença de que estes não foram condenados nem processados.


Já que esses militares estão preocupados com a CNV (julgando-a mais efetiva do que boa parte dos militantes de esquerda), poderiam, quem sabe, colaborar com ela procurando, por exemplo, descobrir o que o tenente-coronel Sergio Arredondo, encarregado da DINA no Brasil, oficialmente adido militar, fazia neste país. Ele participou da Caravana da Morte em 1973 (http://epoca.globo.com/edic/20010129/mundo1a.htm). 
Teria ele entrado em contato com os torturadores brasileiros que estiveram presentes no Chile desde o início da ditadura de Pinochet? Qual foi seu papel na cooperação entre as duas ditaduras no âmbito da Operação Condor? Ele teria participado do possível assassinato de Juscelino Kubitscheck, como já se suspeitou: http://www2.uol.com.br/JC/_2001/2703/po2703_11.htm?


P.S.: Esta nota integra a VII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, cuja chamada pode ser lida nesta ligação: http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/03/24/vii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/

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