O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Hamlet Molotov, ou Julián Axat, poesia e história

Esta tradução foi escrita para a VII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, cuja chamada pode ser lida no blogue da jornalista Niara de Oliveira: http://pimentacomlimao.wordpress.com/2013/03/24/vii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/ Dela já estão a participar a jurista Maria Carolina Bissoto (http://entrepasadoyelfuturo.blogspot.com.br/2013/03/45-anos-da-morte-do-estudante-edson.html) e  a jornalista Suzana Dornelles (http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/03/24/nao-passara/).
Gosto muito da poesia argentina e da forma como autores contemporâneos tratam as questões da história e da política.
Um dos principais nomes da poesia argentina de hoje é Julián Axat, que é um dos poetas que tenho estudado mais regularmente. Depois de lê-lo, traduzi-lo e resenhá-lo, acabamos nos tornando amigos. Em seu livro de 2012, Neo (Buenos Aires: El Suri Porfiado), ele avança ainda mais no diálogo entre poesia e história.
O amplo espectro do peronismo cobre da direita à esquerda. A parte IX alude à volta de Perón em 1973 e ao episódio do massacre de Ezeiza; no palco onde discursaria o ex-exilado estavam homens armados de Osinde, da direita do peronismo, que atiraram nos grupos de esquerda, em um conhecido e não apurado episódio de massacre da história argentina. Antonio Cafiero, social-democrata, perdeu a disputa pelo controle do peronismo para Menem (ver este artigo da professora Marcela Ferrari: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-33522012000200005&script=sci_arttext&tlng=pt).
Há outras alusões. Kafka, o caudilho Facundo Quiroga, Ginsberg, Shakespeare, o genocida Videla, o Pai - encarnando a figura do desaparecido pelo terror de Estado - e outros nomes circulam neste caleidoscópio, cujo centro é a ditadura militar argentina.
Vejam como o crânio que Hamlet, o vingador de seu pai, segura, torna-se em um coquetel molotov na parte VI. Não conheço nada de equivalente a essa combinação de militância e memória na poesia brasileira, a essa imaginação literária da justiça.





Antologia 2020

a Juan Diuzeide


1

Montar uma bicicleta coxal / sair a passeio / levar
as medulas pelo DNA
extraído da irmã que busca poeta / não Tinajero
/ Evas / muitas Evas /
apropriadas / re-tratadas ou próximas a sê-lo
guidão em suas vértebras do dizer


2

Armar uma biblioteca sobre o golpe de 76 / fazê-la
arder ao agregar
a versão “40 anos depois, as causas do golpe
foram...”


3

Procurar o filho idiota de Videla / convidá-lo a
participar de Hijos com coletes.


4

Pre mortem: encontrar radiografia de fêmur 1973: chumbo de 22 intacto no fêmur esquerdo / Ezeiza / disparada enquanto / do palco Osinde lê Uivo de Ginsberg / alguém (ainda não sabemos) / lhe faz manicure.


5

Posmo-rtem: Caminhante de sombras / resto abatido entre tiras e ladrões exige devolução de seu olho azul / para buraco teia aranha em calota perfurada / “O tempo dos ossos é o tempo do vazio ou das pistas” (Franz Kafka. Diários).


6

Depois de vinte anos encontram o crânio de seu pai / só o crânio / por fim era seu / o apoiou sobre a mesa de luz para quando se desvelasse / diante do espelho falou o monólogo do Príncipe da Dinamarca / usou-o como cinzeiro / envolve-o em papel de jornal da época e até lhe desenhou um sorriso / em 2001 encheu-o de benzina e pano úmido lançou-o molotov em um tira / nele escreveu versos de Maiakóvski na frente onde mais tarde escondeu uma tiara com gravata nomenclatura / hoje limpo de novo na mesa de luz


7

Sonho com o ataúde do ex-presidente / Regresso à praça nessa tarde de outubro / volto à mesma fila / na sala, se abre o caixão / saem vários John Malkovich interpelando-me / queres ser a mim ou a nós? /A resposta vem da fila no fundo, onde outros Malkovich gritam: Acabou-se Hamlet, agora Hécuba!  


8

É necessário submergir nas profundidades e salvar o pai para converter-se em um menino real?


9

Antologia peronista 2020 / sonho que o General me encarrega de fazer a lista que vai trazê-lo de volta da Espanha / passo a colocar companheiros nas filas dos assentos do avião / poetas de uma futura antologia neo-urondiana / então o General exige paridade e não esqueça os neo-cafieristas / que esses têm que estar de qualquer jeito na comitiva de regresso / desperto quando recordo que meu pai estará esperando a chegada do avião / vão atirar nele do Palco / e ali está Osinde vociferando Howl / e um neocafierista que faz as mãos com uma lixa / enquanto / pensa em um poema para minha antologia 2020.    


10

Armar o arquivo das organizações revolucionárias / o museu mais completo da guerrilha armada / de todas as guilhotinas em que a palavra fraternidade tenha sido cortada / como margarita ou porco / arremessada sua cabeça de coágulo com pétalas de sujeira & sangue / um Facundo bárbaro e civilizado / operação saciedade ou a impossibilidade de sua leitura / para novas gerações adivinhas-tesouras / as que visitem o museu.

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