O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Desarquivando o Brasil LVIII: O Primeiro de Maio

Para o primeiro de maio, achei que seria oportuno recordar algumas notas que escrevi sobre os trabalhadores durante a ditadura militar e indicar mais alguns documentos.
Um caso emblemático foi o do trotskista Olavo Hanssen, que foi preso em uma invasão policial durante uma comemoração do Dia do Trabalho. Torturado por alguns dias e envenenado, acabou falecendo. Seu caso gerou uma primeira condenação do Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e um procedimento na Organização Internacional do Trabalho. A justiça brasileira aceitou a versão oficial de que ele poderia ter se suicidado. Eis um trecho do início dessa nota de 2011:

Desarquivando o Brasil V: o assassinato de Olavo Hanssen: comunismo e insuficiência renal aguda (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/04/desarquivando-o-brasil-v-o-assassinato.html)

Ele era um sindicalista ligado ao Sindicato dos Metalúrgicos e um dirigente do PORT – Partido Operário Revolucionário Trotskista. Ele havia sido aluno de Engenharia na Universidade São Paulo, mas deixou os estudos para se engajar na política sindical. Em 1970, trabalhava em uma indústria química em Santo André.
Em 1º. de maio de 1970, ele foi preso com outros sindicalistas, enquanto distribuía panfletos, por policiais militares, na praça de esportes da Vila Maria Zélia, na cidade de São Paulo, durante uma comemoração autorizada do dia do trabalho. Hanssen foi torturado até o dia 5 de maio. Apesar dos protestos de outros presos políticos no DEOPS/SP, ele não recebeu assistência médica adequada e foi levado ao Hospital do Exército em Cambuci somente em 8 de maio, quando já estava em estado de coma. Em 13 de maio, sua família foi avisada que ele teria se suicidado no dia 9, e que seu corpo teria sido encontrado perto do Museu do Ipiranga.

Tendo em vista isso que é a Justiça brasileira, quase um oximoro, é comum que os conservadores sejam, em termos de fontes jurídicas, isolacionistas. Afinal, para esses senhores, trata-se de uma grande garantia que o Brasil tenha um Judiciário que considera, na sua mais alta instância, que os banqueiros são o lado mais fraco da sociedade (http://www.asmpf.org.br/ler_noticia.php?noticia=647).


Outro caso, que foi a gota d'água que levou à demissão do general Ednardo d'Ávila Melo, que estava à frente do II Exército, foi o do operário Manoel Fiel Filho. O inquérito acabou concluindo pelo suicídio:

Desarquivando o Brasil XI: Manoel Fiel Filho e o Ministério Público Federal, Direito e negacionismo (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/06/desarquivando-o-brasil-x-manoel-fiel.html)
O operário Manoel Fiel Filho, militante do PCB, foi morto há 35 anos, em 17 de janeiro de 1976 no DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações e Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo. Era um momento difícil da lentíssima abertura política. Os agentes da repressão política, para sobreviver institucionalmente, precisavam perpetuar o regime e sabotavam a democratização.
Quanto estive na EHESS no início do ano, expliquei que limitar a análise aos processos da Justiça Militar não era suficiente para sugerir um quadro mais completo do direito como instrumento de repressão. As questões trabalhista e sindical são essenciais para tanto - e, sem isso, boa parte do evidente caráter de classe da ditadura é mal compreendido. Por isso, a Lei de Greve era considerada pelas autoridades militares um dos instrumentos jurídicos básicos da segurança nacional, e a vigilância sobre os sindicatos era essencial para o regime autoritário: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/04/desarquivando-o-brasil-lvii-vigiando-os.html
Exemplo recente, em dezembro de 2012, a Comissão de Anistia resolveu o caso dos militantes da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo, que foram anistiados pela perseguição durante a ditadura: 
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/12/desarquivando-o-brasil-xlv-perseguidos.html

Um dos trabalhos da polícia política era impedir greves. Apenas para citar um dos documentos que ainda não incluí neste blogue, veja-se este elogio, encaminhado em 14 de abril de 1970 pelo então delegado titular da ordem política, Alcides Cintra Bueno Filho, aos investigadores da polícia Humberto Quaglio Filho, José Lebrum, Celso Pereira de Aguiar e Ubiracir P. da Silva por terem prevenido greve e agitações na Faculdade de Engenharia Industrial de São Bernardo do Campo.O elogio havia sido feito pelo diretor da instituição de ensino, o "Prof. Dr. Henrique S. de Almeida".
Parte da correspondência da polícia política, com efeito, vem dos patrões e das empresas solicitando tais ações repressivas.
No entanto, já encontrei também o oposto: sindicato que pede ciência e providências da polícia a respeito de irregularidades patronais, o que mostra como as questões trabalhistas haviam sido tomadas pela ideologia (e pela prática) da segurança nacional.
Independentemente dessas solicitações, principalmente patronais, o Primeiro de Maio era uma data sensível para as autoridades. Pode-se ver também nesta nota o início de um "plano de policiamento", de 28 de abril de 1970, também da Delegacia de Ordem Política, das "várias festividades em comemoração do Dia do Trabalho". A operação começou em 29 de abril e terminou em 2 de maio. Ele incluiu o "setor estudantil", compreendido pela USP, a Universidade Católica e Mackenzie (note-se especialmente as unidades de cada instituição que foram destacadas pela polícia) e, no "setor político", incluiu a sede da ARENA, partido de sustentação da ditadura militar.
Lemos que "Esse policiamento preventivo tem o objetivo de evitar inscrições murais e pixamento nas ruas, monumentos e próprios Federais, Estaduais e Municipais. Impedir a colagem de cartazes ou a distribuição de volantes e panfletos subversivos. Impedir ainda comícios relâmpagos nos Ginásios, Colégios, Institutos de Educação e Faculdades, assim como outras agitações."
O assassinato de Olavo Hanssen deu-se nesta operação.

Tratava-se de orientação nacional, e não apenas paulista. O "Sumário Informativo" do Comunismo Internacional, periódico do SNI, em seu "Calendário dos principais eventos comunistas", destacava o Primeiro de Maio como uma das datas da "maior importância [...] para os Órgãos da Segurança Nacional". Além do Dia do Trabalho, comemorava-se também nesse dia a proclamação do socialismo em Cuba.
Os outros dias críticos para o SNI, em maio e junho, eram o nascimento de Marx, o dia da luta pelo reconhecimento da República Democrática Alemã (a Alemanha comunista), o dia de solidariedade aos povos do Vietnã, Laos e Camboja, o do sequestro do embaixador alemão no Brasil, o nascimento de Che Guevara e o dia da Jornada contra a Penetração Imperialista nas Universidades (da Organização Continental Latinoamericana e Caribenha de Estudantes).
Algumas dessas questões foram superadas, mas não o Dia do Trabalho, especialmente em um país em que as ilegalidades trabalhistas são tão presentes, e se tornam agudas, com a cumplicidade das autoridades, nessas obras para os grandes eventos esportivos e outros grandes projetos governamentais. Belo Monte, palco de sucessivos protestos de trabalhadores, é um desses casos.

P.S.: A ortografia do nome de Olavo Hanssen foi corrigida segundo esta nota: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/05/ato-em-memoria-de-olavo-hanssen-e.html

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