O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 30 de junho de 2013

Desarquivando o Brasil LXIII: Descartes subversivo: livros proibidos, ontem e hoje


Preâmbulo: Somente depois de ter escrito esta nota, li que a polícia gaúcha aprendeu livros anarquistas na Federação Anarquista Gaúcha, e que o delegado Ranolfo Vieira Jr., chefe da polícia civil, ainda em liberdade, ressaltou que "foi apreendida vasta literatura, eu diria assim, a respeito dos movimentos anarquistas", em razão dos protestos e manifestações que ocorrem no país. Fica muito bem em um Estado governado por um ex-ministro da justiça, Tarso Genro. Elio Gaspari noticiou o ocorrido, mas a Federação traz mais detalhes: http://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2013/06/24/o-enredo-de-uma-farsa-a-tentativa-de-criminalizacao-da-federacao-anarquista-gaucha/
Nesta nota, tendo em vista a atual atividade de polícia do pensamento das forças públicas de segurança no Brasil, que chafurdam furiosamente na ilegalidade, somente me referi a obras teóricas e técnicas. A censura que recaiu sobre obras de ficção poderá ser objeto de outro pequeno texto.



Uma vez que a imaginação autoritária brasileira é de um ridículo ímpar, a polícia mineira incluiu o leite de magnésio entre as substâncias proibidas (http://www.hojeemdia.com.br/minas/manifestante-e-detido-com-leite-de-magnesio-durante-protesto-1.140083).
E os livros? A apreensão, pela polícia civil do Rio de Janeiro, de obra sobre o movimento punk junto com marretas, facas e soco inglês, serviu, de acordo com declaração do delegado Mario Andrade, o livro, com as fotos e cartazes "demonstram o perfil" do foragido, e o livro, em especial, foi apreendido "para demonstrar a ideologia dele frente a nação brasileira, de defesa da anarquia". Podem-se ler as declarações na reportagem de Ítalo Nogueira na Folha de S.Paulo em 26 de junho, "Polícia apreende armas brancas e livro na casa de suspeito de vandalismo": http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1301767-policia-apreende-armas-brancas-e-livro-na-casa-de-suspeito-de-vandalismo.shtml
Note-se ainda que os autores da série de vandalismos de Estado que vem sofrendo aquela região do país ainda não foram incomodados pela polícia.
Em outra época histórica, durante a ditadura militar, os livros eram um dos objetos de preocupação da doutrina de segurança nacional. Há bastante literatura sobre o assunto. Já no governo Castello Branco, temos o caso da prisão de Ênio Silveira, editora da Civilização Brasileira (hoje, apenas um selo da editora Record), que publicou diversas obras de esquerda. Castello Branco, segundo Elio Gaspari em A ditadura envergonhada, teria ficado constrangido com a prisão e com a apreensão de diversos livros, por causa da repercussão negativa para o governo.
Com repercussão negativa ou não, Ênio Silveira foi processado, logrando vitórias no Judiciário. No entanto, Michele Rossoni Rosa, em "Os livros na ditadura militar: as ações criminais contra a editora Civilização Brasileira (1965-1972)" , explica que as formas de pressão do governo não se limitavam ao campo judicial. Afinal, tratava-se de uma ditadura.
Basicamente, houve pressões sobre bancos para que não financiassem as edições (segundo o editor, o maior problema envolvendo a cassação dos seus direitos políticos foi a impossibilidade de continuar fazendo financiamentos através do Banco do Brasil, agente financeiro oficial para o setor livreiro), apreensões em quantidades suficientes para causar prejuízos significativos (acrescidas das perdas com o incêndio na sede da empresa) e, aspecto determinante na opinião de Ênio, a intimidação de livreiros para que não vendessem os livros da empresa.

Afinal, tratava-se de uma ditadura, não se poderia esperar que o governo agisse dentro da legalidade.
Diversos documentos do DEOPS/SP, hoje guardados no Arquivo Público do Estado de São Paulo (onde pesquisei os que incluo neste pequeno texto),  demonstram essa mesma preocupação com os livros. Em outra nota, mencionei o problema com os autores Celso Furtado e Josué de Castro, ambos cassados: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/05/desarquivando-o-brasil-xxxvi-comissao.html

Documento do Exército, de 1969, registra o alarme com Meu amigo Che, de Ricardo Rojo, lançado pela Civilização Brasileira: "Há, livremente vendidos nas livrarias, da cidade de São Paulo, diversos livros que fazem abertamente proselitismo das idéias de esquerda em constante e atuante guerra psicológica."
Segundo a doutrina de segurança nacional, a guerra psicológica corresponderia ao primeiro estágio da guerra subversiva do comunismo internacional, com o fim de minar os costumes e os valores burgueses de uma nação, que, dessa forma, se tornaria presa fácil para os comunistas.
A censura política aos meios de comunicação era feita com essa justificativa; a censura de "costumes" era bem mais antiga e tinha aceitação em boa parte da população, como lembra Carlos Fico em Além do golpe. Juridicamente, esta outra censura tinha uma base muito mais sólida. Já a censura política dependia dos poderes dos atos institucionais, pois a própria Constituição de 1967 somente a previa esse tipo de ação contra a imprensa no estado de sítio. O caso, que chegou ao Supremo Tribunal Federal, do jornal Opinião bem o mostrou: para reverter decisão desfavorável da justiça em 1973, Médici e seu ministro da justiça, Alfredo Buzaid, forjaram retroativamente uma determinação supostamente de 1971 de "censura de imprensa, das telecomunicações e das diversões públicas, com base no artigo 9 do Ato Institucional n. 5" (p. 89 de Além do golpe).
No entanto, no parágrafo oitavo do artigo 150 da Constituição de 1967, junto com a liberdade de pensamento, e a previsão de que a publicação de "livros, jornais e periódicos independe de licença de autoridade", afirmava-se que não seria "tolerada a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe." Com o que foi, na prática, uma nova Constituição em 1969, previsão semelhante se deu no parágrafo oitavo do artigo 153, acrescentando-se o preconceito "de religião".
A publicação de livros poderia, pois, dentro desse quadro institucional, ser enquadrada na tipificação altamente arbitrárias das leis de segurança nacional do crime de "incitar publicamente" "à guerra ou à subversão da ordem político-social", "à desobediência coletiva às leis", "à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis" etc. O decreto-lei n. 314, de 11 de março de 1967, previa-o com aumento de pena em metade se praticado "por meio de imprensa, panfletos, ou escritos de qualquer natureza, radiodifusão ou televisão". O decreto-lei n. 898, de 29 de setembro de 1969, previa os livros como um dos meios do crime de "propaganda subversiva".
Com a atual lei de segurança nacional, a 7170 de 14 de dezembro de 1983 (um dos legados subsistentes do governo do general Figueiredo), deixou de ser considerada propaganda "criminosa a exposição, a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas." (parágrafo terceiro do art. 22).
Não é este o foco de minha pesquisa, mas não pude deixar de ler documentação, já na década de 1960, sobre "batidas" para apreender livros "subversivos". Em um documento de 1969, relata-se que, de uma só vez, foram apreendidos cinco mil exemplares, segundo o DOPS/GB.
No entanto, livros marxistas, e outros de esquerda, foram publicados, porque, em geral, não havia tanto controle sobre a literatura científica (houve exceções, como mencionei nesta nota: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/12/desarquivando-o-brasil-xlvi-ditadura.html). Manoel Gonçalves Ferreira Filho, outro dos juristas comprometidos com a ditadura militar (trabalhou com Buzaid no Ministério da Justiça e também foi, como ele, professor da faculdade de direito da USP; hoje, está aposentado), bem expressa a questão ao afirmar, em seu A democracia possível (uma defesa do regime militar, com significativos erros de ciência política, publicada inicialmente em 1972), que "se o ensino deve ser ortodoxo, o Estado deve estimular a heterodoxia no nível da ciência. Cabe a ele manter centros de estudo, em nível de pós-graduação, onde tenham livre curso todas as idéias, todas as dúvidas. Tais centros constituirão o foco da inovação e, portanto, do progresso."
É evidente o caráter antidemocrático, elitista, de uma liberdade de pensamento que só pode ser exercida por pós-graduados, um exemplo hipertrofiado dos devaneios autoritários do bacharelismo brasileiro. De qualquer forma, a proposta do jurista fica completamente deslocada em um sistema em que a academia era fortemente cerceada, e em que vários professores foram presos, processados e afastados de suas funções em razão de sua atuação política. Caio Prado Jr. cumpriu pena pelo crime de incitação a subversão. Em razão do AI 5, nomes como Mário Schenberg e Emília Viotti foram afastados.

Além desses documentos oficiais de perseguição a livros e seus autores, há outros que mostram a produção teórica das próprias organizações clandestinas de esquerda durante a ditadura militar, e servem para que se tenha uma ideia dos autores que fundamentavam a práxis desses militantes, e de suas divergências teóricas, relacionadas ao grande fracionamento desses grupos.

Gorender, em Combate nas trevas, escreveu sobre isso, apontando a influência dos escritos de Che Guevara e do "entusiasmo instantâneo" suscitado por Régis Debray, bem como a influência do maoísmo. Os documentos reunidos e comentados por Daniel Aarão Reis e Jair Ferreira de Sá em Imagens da revolução revelam as diferentes análises e fundamentos teóricos daqueles grupos. Uma das lições de Marx seria a de que, para transformar o mundo, é necessário tê-lo compreendido...
A Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), organização a que, entre outros, Dilma Rousseff pertenceu, propunha um programa de formação com quatro temas: sistema capitalista, situação internacional, situação nacional e análise de classes, estratégia. Na bibliografia básica, de leitura obrigatória, vê-se no documento apreendido, havia Mao, Marx, Lênin, Bukharin... Autores brasileiros perseguidos pela ditadura, Fernando Henrique Cardoso, Caio Prado Jr., Octavio Ianni e Theotonio dos Santos apareciam no terceiro tema ao lado de Marx. Stálin e Mao eram dois dos autores para estratégia. Fernando Henrique Cardoso era estudado também no tocante à situação internacional na América Latina. Há pequenos erros no documento, como o nome de Ramón Losada Aldana, que são compreensíveis na difícil situação de clandestinidade.


Veja-se que boa parte das obras era publicada no Brasil, inclusive o Dialética do subdesenvolvimento, de Losada, por uma das editoras que se destacou na bibliografia de esquerda no Brasil, a Paz e Terra. No entanto, a mera posse dessas obras já se tornava algo altamente suspeito - e a polícia mineira de hoje o confirmaria.
Um dos casos que li nos documentos do DEOPS/SP foi o de assistente social que, depois de deixar o Hospital São Paulo, foi denunciada pelos seus substitutos ao diretor administrativo por ter deixado "livros de filosofia política de esquerda" no trabalho. Ela foi presa em 14 de julho de 1970, mas acabou sendo libertada porque não foi apurada "nenhuma atividade subversiva da custodiada".

Outro tipo de documento que indica as leituras da esquerda clandestina brasileira eram as listas de material apreendidos em aparelhos, que, em geral, incluíam livros. Por vezes, a referência é genérica: "livros subversivos". Apesar disso, podemos ter uma ideia da biblioteca desses militantes. Deixo aqui apenas uma pequena seleção.
Marx, como era de esperar, estava presente. De militante do Movimento Revolucionário Marxista (MRM), o 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, apreendido em 23 de março de 1971. É possível que se trate da edição da Paz e Terra, que foi lançada em 1969, com tradução de Leandro Konder e Renato Guimarães.
No tocante à literatura, um exemplo é a poesia (fraca) engajada de esquerda da coleção Violão de Rua; no documento, de uma militante da Ação Libertadora Nacional (ALN, fundada por Marighella), que teve seus pertences aprendidos em 22 de março de 1970.

De outro militante da ALN, cujo aparelho foi invadido em 23 de julho de 1970, vemos um estudo sobre Debray, autor francês, e as Cartas de Havana, de Marighella (que não era lido apenas no Mini-manual do guerrilheiro urbano), em que ele solidarizou-se com a Revolução Cubana, rompeu abertamente com o PCB e propôs para o Brasil a luta de guerrilhas.
No Combate nas trevas, Gorender explica (p. 201) que as Considerações sobre as teses de Regis Debray foram elaboradas pelo Movimento de Libertação Popular (MOLIPO), rejeitando o foquismo e adotando a linha da guerrilha rural.

Vi mais de uma vez Ferreira Gullar contar que levaram de sua casa, depois do golpe, uma pasta com o título "Do Cubismo à Arte Neoconcreta". Possivelmente os policiais pensaram que ela escondia mensagens subversivas, mas talvez, como o poeta e então militante do PCB conjecturou, talvez tivessem julgado que o assunto era Cuba...

Em razão da formação dos militares e dos policiais no Brasil, é provável que os agentes da repressão nem sempre soubessem o que estavam apreendendo. Stanislaw Ponte Preta registrou no Febeapá a célebre tentativa de prisão de Sófocles pelo DOPS/SP por causa da peça Electra, frustrada pela morte do autor milênios antes.
Lembro, por fim, de livros de um professor que mantinha relações com a ALN e a VPR. Notável que, em primeiro lugar entre as obras apreendidas em primeiro de dezembro de 1970, dentro de uma "mala cheia de livros subversivos" (descreve o auto de apreensão), que inclui Barthes, Heidegger, Thomas Morus, fosse aberta pelo aparentemente insuspeito Descartes e seu Discurso do método!
Pode ter sido apenas ignorância, ou - quem sabe? - medo das possibilidades emancipatórias do conhecimento, ou até mesmo de poucas passagens diretamente jurídico-políticas como esta: "[...] a multidão de leis fornece frequentemente desculpa aos vícios, de maneira que um Estado é melhor regrado quando, tendo poucas, elas são nele ainda mais estritamente observadas [...]".
Para Descartes, sob esse aspecto, teríamos o pior no Brasil, país em que há leis em demasiado, e que, ademais, não são observadas, especialmente em relação aos vícios do poder. Para constatá-lo, não precisamos lembrar da multiplicação de decretos-lei da ditadura e da ilegalidade da prática repressiva mesmo diante dos padrões jurídicos daquele regime. Basta a polícia de hoje, como se fez em Minas com a "criminalização" do leite de magnésio, do anarquismo e dos livros sobre movimento punk, para confirmar que o filósofo francês continua subversivo.

P.S. Sobre vandalismo em 1968 e hoje, é interessante ler o texto de Bessa Freire, "Em defesa dos vândalos". Ele foi processado por supostos danos ao patrimônio público durante a ditadura militar: http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1039

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Universos paralelos da educação XI: Ficções em torno de trabalhos de conclusão de curso


"- É um absurdo jovem de 16 anos poder votar e não poder ir pra cadeia.
- E a Constituição, permite isso?
-  Se a gente pesquisar, a gente vai ver que tem gente que diz que sim e tem gente que diz que não. Mas, no meu entender, não faz sentido um jovem de 16 anos votar pra senador e não poder ser preso. E é melhor estar preso do que estar aqui fora, aqui."


"Na lei é o contrário? É? Mas estou seguindo minha religião."


"A vida é atemporal. Você não sabe onde começa, onde vai nem onde termina. No meu entender, o anencéfalo não traz risco de vida à mãe."


"- Mas esta discussão está superada por uma lei de 2011.
- É?"


"No meu entender, acho que sim."


"Foucault, em Vigiar e Punir, defende que não é a severidade da pena, mas a certeza da punição que vai fazer o indivíduo se afastar desse caminho criminoso."


"Prezado orientando, qual é mesmo o seu nome e o título de seu trabalho?"


"- Tem muito preconceito contra a religião.
- Não entendi sobre o que você escreveu, não percebi o foco de seu trabalho. Você fez algum estudo de caso?
- Sim. Escrevi que tem muito preconceito contra a Religião Protestante e contra a Religião Afro-brasileira. A Constituição diz que o Estado é laico. No meu entender, acho que é assim."


"Defendi que o júri ao longo da história foi tendo alterações. E que pra ser jurado, acho que tem que ser no mínimo baxaréu em direito. Tem que ter conhecimento."


"O código diz isto: .............. Depois, diz isto:............. E mais isto: ........................... Concluí que é assim mesmo."


"Prezada orientanda, qual é mesmo o seu nome e o título de seu trabalho?"


"- Mas esta lei que serviu de base para o seu trabalho foi revogada.
- Quando?"


"- Mas professor [diz a funcionária], não podia fazer pergunta não. É pra acabar tudo em 10 minuto."

...............................................................................................................

"Esse aluno que é a favor dos presos? Dou meio."

"Imagina se tem infiltrados nestas arruaças! Claro que não, é baderna mesmo."

"- E a aluna...?
- Qual é essa mesmo?
- A aluna que fala grosso? Dá o mínimo."

"Já demos as notas destes aqui. Agora, vamos chamar o próximo rodízio de alunos!"

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Desarquivando o Brasil LXII: Os infiltrados, ontem e hoje

Li recentemente o belo romance de Bernardo Kucinski, K. (São Paulo: Expressão Popular, 2011), fortemente decalcado na realidade, particularmente na história de Ana Rosa Kucinski, militante da ALN que foi presa com o marido e correligionário Wilson Silva em 1974. Continuam desaparecidos: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/12/desarquivando-o-brasil-xxiii-wilson.html
A USP demitiu-a, provavelmente quando já estava morta, por abandono de emprego. Recentemente, essa instituição de ensino recusou-se a mandar um representante para a sessão da Comissão da Verdade Rubens Paiva, da ALESP, que abordaria o caso da ex-professora e de Wilson Silva. A família pediu, por esse motivo, a suspensão da sessão, e foi atendida.
No caso de Ana Rosa Kucinski, a Comissão Estadual e a CNV enviaram ofício ao reitor João Grandino Rodas para reparar a memória de Kucinski (http://www.adusp.org.br/index.php/comissao-da-verdade/1503-cnv-requisita-ao-reitor-dossie-sobre-ditadura-e-pede-justica-para-ana-rosa). A USP mantém-se inerte, o que gerou este protesto de Bernardo Kucinski: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=1&id_noticia=215919
Em um dos capítulos, temos a voz de um infiltrado na organização de esquerda, que faz relatórios para a polícia. Ele havia mudado de lado após ser preso. Essa prática realmente ocorria. Entre os militantes que se tornaram espiões, o caso mais célebre é o de Cabo Anselmo, que ajudou a desmantelar a esquerda guerrilheira no Brasil.
Havia também agentes que eram infiltrados nos movimentos sociais e nas organizações. Neste outro texto, "Desarquivando o Brasil LXI: Polícia ontem e hoje, o milagre do vinagre" lembrei dos infiltrados na campanha pela anistia, e da preocupação, expressa em documento confidencial do Ministério da Aeronáutica, com o fato de o Comitê pela Anistia, na unidade de Curitiba, ter idealizado "um esquema para identificação dos agentes dos órgãos de segurança da área que estejam infiltrados ou agindo juntos aos meios estudantil, político, operário e artístico', em conjunto com jornalistas." (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/06/desarquivando-o-brasil-lxi-policia.html).
Já escrevi algumas notas a respeito, inclusive incluí parte do relatório de um espião na faculdade de direito da USP, incomodado com as críticas ao governo, em aula de Fábio Konder Comparato: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/05/desarquivando-o-brasil-xxxvi-comissao.html

Os relatórios vêm de muitos lugares, e nem sempre são muito conclusivos. Às vezes, os próprios agentes percebiam a falta de sentido de seu trabalho, em uma época em que qualquer engajamento social era, de antemão, suspeito.
Um exemplo típico foi uma infiltração feita pelo DOPS/SP na Igreja Nossa Senhora da Esperança de Cidade Dutra, da ordem dos Oblatos. A razão? Cursos profissionalizantes, de orientação vocacional, criatividade... Os próprios infiltrados pediram para sair da operação. No que erraram, do ponto de vista do regime, porquanto a FASE, que ministrava cursos especiais, realmente defendia bandeiras contrárias à ditadura: http://www.fase.org.br/v2/pagina.php?id=10
Em vez de incluir outro dos inúmeros relatórios desse tipo da época da última ditadura, resolvi escolher algo anterior. Os sindicatos e até mesmo a Justiça do Trabalho, por exemplo, já eram espionados, tendo em vista a vigilância sobre os comunistas e o controle das pautas reivindicatórias, dois assuntos que, por sinal, interessavam aos patrões.

Não foi um erro a competência da CNV estender-se a período anterior a 1964, pois certas práticas do regime autoritário foram concebidas ou já existiam em germe antes do golpe.
Neste documento, também do DOPS/SP, vemos o papel de informantes sobre o IV Encontro Sindical Nacional, realizado de 17 a 19 de agosto de 1962 em São Paulo. No dia 20 daquele mês, na Delegacia Regional do Trabalho, foram assinados acordos coletivos com, entre outras empresas, Texaco, Esso e Shell. Nesses acordos, a maior parte das reivindicações dos trabalhadores foi atendida.
Quando falei na EHESS, no início deste ano, que a repressão política não poderia ser bem compreendida tendo como fonte apenas os processos na Justiça Militar, e que a questão trabalhista e sindical tinha que ser considerada, as pessoas ficaram surpresas, mas concordaram.
No entanto, deve-se dizer que a vigilância já ocorria desde os tempos de democracia formal. Neste caso, o problema é que o acordo, com reajuste salarial, adicional de tempo de serviço, salário-família, férias de 30 dias era um precedente para outros sindicatos e categorias.

Diz a fonte, [sic] que a vitória dos Trabalhadores em Empresas do Comércio de Minérios e Combustíveis do Estado de São Paulo será, sem dúvida alguma, um caminho aberto para as demais categorias profissionais, as quais, em futuras lutas reivindicatórias, irão reivindicar e exigir dos empregadores as mesmas vantagens hoje obtidas pelos Trabalhadores no Comércio de Minérios e Combustíveis, principalmente no que se refere ao salário-família, férias de 30 dias e, em alguns casos, o adicional por tempo de serviço. Portanto, finaliza a fonte, acha-se em aberto mais uma questão na luta reivindicatória do proletariado brasileiro.
A própria capa do documento, reservado, é reveladora. Ele foi classificado como "Sindicalismo, Movimentos reivindicatórios". Trata-se de algo, de fato, tão suspeito e indesejável, para esta lógica policial, que trabalhadores reivindiquem que o seu trabalho gere direitos...
Depois de 1964, tal lógica tornou-se, de forma abrangente, uma política de Estado.

Tais práticas de espionagem são anteriores à ditadura militar e prosseguiram após o fim daquele regime.

Pode-se lembrar que o governo federal está monitorando as redes sociais por causa das grandes manifestações que vêm ocorrendo no Brasil desde a semana passada: http://oglobo.globo.com/pais/planalto-monitora-mobilizacoes-em-todo-pais-nas-redes-sociais-8738133
Alguns testemunhos falam de infiltrados nessas multidões. Estes movimentos ocorrem mais ou menos como nesta famosa charge: http://9gag.com/gag/aVOOMPv 
A jornalista Monica Bergamo, da Folha de S.Paulo, acompanhou a invasão na Prefeitura de São Paulo em 18 de junho e atestou que não foi realizada pelos integrantes do Movimento Passe Livre, "que tentaram inclusive impedir confusão" (https://twitter.com/monicabergamo/status/347136658103205888) e o que "fazem aqui na porta do prédio não tem nada a ver com o q mostrou ontem a maioria" (https://twitter.com/monicabergamo/status/347137202800713728). Tentaram invadir o Teatro Municipal, e Bergamo percebeu que não havia nenhum policial à vista: https://twitter.com/monicabergamo/status/347150360172953600
O Estado de S.Paulo publicou no dia 19 que se tratava de um grupo anarquista irritado com o movimento. O movimento negou. Um dos atacaram a Prefeitura foi identificado como um estudante de arquitetura, filho de empresário e sem ligações com o MPL e a partidos políticos - estava a exercer sua "revolta dos corpos"... http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1297767-estudante-de-arquitetura-e-detido-sob-suspeita-de-apedrejar-prefeitura.shtml
É necessário investigar, mas a polícia será capaz de fazê-lo? O jornalista Renato Rovai verificou que a tropa de choque, no dia 18, em São Paulo, demorou duas horas para chegar ao centro da cidade e reprimir o vandalismo: https://twitter.com/renato_rovai/status/347160671693197312
Para isso, a polícia aparentemente não funciona bem, como constatou o jornalista Bob Fernandes: https://twitter.com/Bob_Fernandes/status/347138671268462592, embora servisse para atirar em quem filmava a manifestação, escreveu o jornalista Bruno Torturra: https://twitter.com/torturra/status/347172397780172800
Nesse mesmo dia em São Paulo, enquanto ladrões saqueavam lojas do centro, policiais foram filmados pegando mercadorias que estavam com pessoas em situação de rua e, depois, indo para a direção oposta à que estavam ocorrendo os saques, o que parece indicar um problema grave de orientação espacial, incompatível com o combate ao crime: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/19/pm-rasga-barraca-de-moradora-de-rua-enquanto-saques-ocorriam-a-150-metros-no-centro-de-sp.htm

Em Belo Horizonte, algo de parecido ocorreu, de acordo com o Comitê dos Atingidos pela Copa: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=151094365079967&set=a.151094361746634.1073741828.150997365089667&type=1&theater
No jornal O Tempo, publicou-se sobre documento que comprovaria que a Polícia Mineira resolveu não cumprir suas funções institucionais nesse dia: http://www.otempo.com.br/cidades/documento-comprovaria-que-pol%C3%ADcia-militar-tinha-ordens-para-n%C3%A3o-intervir-na-a%C3%A7%C3%A3o-de-v%C3%A2ndalos-1.666907
Essa omissão, além de documentada por escrito, foi filmada: http://www.bhaz.com.br/manifestantes-suspeitam-da-origem-de-atos-de-vandalismo-em-bh/. Resta saber a razão dela.

Deve-se notar que, em movimentos tão difusos quanto estes, com bandeiras diversas e bases sociais heterogêneas, a simples presença de grupos com reivindicações diversas não pode ser encarada como infiltração, que só se configura se houver, de fato, uma corrente clandestina, um serviço de inteligência que busque manipular esses movimentos ou distorcer-lhes a imagem. Deve-se desconfiar muito se a coerência ou um pensamento único se estabelecerem.

Carlos Latuff entendeu a infiltração em outro sentido, como a direita tentando tomar conta do movimento (http://latuffcartoons.wordpress.com/2013/06/19/charge-brasil247-os-infiltrados-no-movimento-passe-livre/). Há tentativas disso, inclusive de quem nem mesmo chegou perto das ruas, como um jornalista simultaneamente membro da ABF e da ABL que, no dia 19, publicou uma coluna paternalista e oportunista querendo ensinar aos manifestantes o verdadeiro sentido de seus atos - que são o da agenda desse jornalista "filósofo" e do oligopólio de comunicações para o qual presta serviços.
Essa agenda pareceu no dia 20 de junho; Raphael Tsvakko relatou aqui como militantes de esquerda foram hostilizados em São Paulo: http://www.tsavkko.com.br/2013/06/e-no-setimo-grande-protesto-contra-o.html
No dia 18, a TV Record afirmou, com todas as letras, que "infiltrados" incendiaram seu carro de transmissão em frente à prefeitura: http://rederecord.r7.com/video/infiltrados-no-protesto-incendeiam-unidade-de-transmissao-da-rede-record-em-sp-51c0ed5c0cf26f34e02642cd/ O jornalista explica que o fogo veio depois que os manifestantes foram embora, "os mesmos vinte que tocaram pedra na prefeitura" foram culpados do incêndio. E aduz: "isso confirma o que nós estamos dizendo desde a primeira manifestação: tem gente infiltrada".
No dia 20, os abusos policiais continuaram em algumas cidades, como Rio de Janeiro (https://fbcdn-sphotos-e-a.akamaihd.net/hphotos-ak-prn1/922677_535456753181044_1682982568_n.jpg); houve relatos pacíficos em João Pessoa e Florianópolis; em Brasília, revolta e vidros rachados (depois da restauração) da catedral. Nesse mesmo dia, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiu nota demonstrando preocupação com a  violência, instando "o Estado do Brasil a garantir e proteger a integridade física e a segurança dos e das manifestantes e jornalistas durante as manifestações": http://www.oas.org/pt/cidh/centro_midia/notas/2013/044.asp
No entanto, a garantia é muito seletiva; neste texto de Leonardo Sakamoto, temos um dos casos de dois pesos e duas medidas do Estado: espancado e preso o jornalista que poderia denunciar a violência policial (o Ministério Público do Estado de São Paulo, previsivelmente, queria lá deixá-lo), solto o filho de empresário, que depredou a prefeitura: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/06/20/jornalista-fica-tres-dias-preso-bad-boy-chora-e-e-liberado/.


P.S. A jurista Sonia Rabello fala de algo no Rio de Janeiro que podemos chamar de "vandalismo de Estado", em analogia ao terrorismo de Estado, "Vandalismo oficial contra o patrimônio público: Célio de Barros e Júlio Delamare". Trata-se da destruição de patrimônio em nome das obras da Copa. O prefeito Eduardo Paes agiu com o IPHAN: 
E o IPHAN ensina, em seus cursos e em várias ações judiciais, que a proteção da ambiência/vizinhança é para conservar o simbólico do lugar. E alguém tem alguma dúvida que a ambiência do Maracanã se explica e se justifica com o restante do complexo esportivo?
Pois bem: ignorando toda a sua tradição e todos os seus fundamentos teóricos e práticos, e de ofício, a chefia da Superintendência do Rio (cargo em comissão), sem parecer técnico, por meio de um simples memorando, recomendou à Presidência do órgão a concordância para a demolição daquele patrimônio cultural reconhecido.

Maria Cristina Lodi Vereza Lodi foi a superintendente. Ler aqui mais este capítulo do desastre (reeleito) que acomete o Rio de Janeiro: http://www.soniarabello.com.br/vandalismo-oficial-contra-o-patrimonio-publico-o-caso-do-celio-de-barros-e-do-julio-delamare/


P.S. 2: Se houve infiltrados, certamente não foram os monarquistas, que não desrespeitariam uma ordem deste naipe: http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/,ece6304611e5f310VgnVCM10000098cceb0aRCRD.html

P.S. 3: Sugiro a leitura de reportagem da Agência Pública  sobre como a Polícia Militar da Bahia infiltra-se hoje nos movimentos: http://www.apublica.org/2013/06/inteligencia-da-pm-na-bahia-infiltra-agentes-nos-movimentos-revela-capitao/

sábado, 15 de junho de 2013

Desarquivando o Brasil LXI: Polícia ontem e hoje, o milagre do vinagre

A lista é uma forma literária. Portanto, isto é só literatura:



Mais vídeos:

Algumas notícias de veículos estrangeiros:


A antropóloga Artionka Capiberibe (https://twitter.com/Artionka/status/345390036478484480) comparou a situação com o DOPS, extinto em São Paulo antes da posse do governador Franco Montoro, do PMDB, após as eleições diretas de 1982.
As épocas são diferentes, mas é realmente interessante verificar as continuidades e estabelecer comparações. Em outra nota, "Desarquivando o Brasil IX: dizendo o incomunicável", escrevi como se mantinham os procedimentos tantas vezes ilegais das detenções feitas pelas polícias brasileiras: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/06/desarquivando-o-brasil-ix-dizendo-o.html
O caráter ilegal dos procedimentos policiais em treze de junho, envolvendo crimes contra o patrimônio público e abuso de poder, foi denunciado por diversos advogados. E, certamente, ele ocorreu devido ao caráter contestatório do movimento. Curiosa instituição de segurança, eficaz apenas no abuso do poder. Se a polícia não cumpre nem de longe suas atribuições constitucionais ("Delegacias fazem, em média, 3 prisões para cada 100 crimes violentos na capital"), em revanche tem servido eficazmente para o controle social dos pobres e das minorias, o que inclui o massacre e a destruição de moradias e de propriedade desses grupos marginalizados. Em um Estado marcado pelo abuso, trata-se deveras de um órgão de segurança, mas do poder.


O que é mais seguro para esse poder público? Que se busque manter o mito, tão politicamente significativo quanto historicamente falso, de uma população inerte, como se não houvesse ocorrido a Cabanagem, o Contestado, Canudos - apenas para mencionar três casos de genocídio impetrados pelas autoridades constituídas - e outras revoltas na história do Brasil. É mais seguro que permaneça tal mito, simbolicamente simpático ao poder, e que se proíbam as manifestações. Em outro texto, escrevi sobre recente decisão liberticida do Judiciário paulista, tomada a partir de pedido do Ministério Público Estadual, contra a marcha da maconha. Ela serviria para proibir qualquer tipo de manifestação, tendo em vista sua fundamentação radicalmente inconstitucional e inimiga da esfera pública (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/desarquivando-o-brasil-viii-e.html)
Isso, de fato, ocorria na ditadura militar, sob o manto da doutrina de segurança nacional. O sucesso da repressão política havia sido tão grande que, em 1976, dizia-se que, em São Paulo, estava "desaparecendo até mesmo a lembrança" dos comícios políticos, segundo o Secretário de Segurança dessa época, o coronel Erasmo Dias, e a lenta abertura da esfera pública inquietava o militar. O então diretor do DOPS do Estado de São Paulo, Tácito Pinheiro Machado, mostrava-se mais preocupado com as grandes cidades, devido a aglomeração de pessoas, e afirmava que seriam objeto de policiamento os detalhes da propaganda eleitoral.
Essa prática encontrava consonância no pensamento oficial da época. No "Ensaio sobre a doutrina política da Revolução", que cito da Revista Mensal da Polícia de SP, n. 18, de abril de 1969, o general Meira Mattos, um dos ideólogos brasileiros da segurança nacional, cometeu, entre outras, esta passagem:

É a democracia, antes de tudo, uma concepção existencial de teto, não um instrumento de ação política. Numa tentativa de comparação, diríamos que a democracia, assim como o marxismo e o nacional-socialismo, aquecem as mentes, mas são insuficientes para mover, desembaraçadamente as pernas e os braços de seus adeptos.
Passemos por cima da equiparação entre democracia (provavelmente a parlamentar), marxismo e nazismo, cuja modéstia teórica equivale ao peso intelectual da doutrina pensada pelo general, e pela estranha cegueira histórica de imaginar que tais doutrinas não inspiraram a ação política. Como a liberdade é uma prática, a dissociação entre democracia e ação somente faz sentido se se deseja coibir a democracia - ela existirá apenas na ação e nas possibilidades por esta abertas. Para mantê-las fechadas, o controle dos movimentos sociais era vital.




As operações, anteriores à última ditadura, de infiltração nos movimentos sociais, sindicatos e instituições de ensino continuavam. No exemplo que selecionei, o Ministério da Aeronáutica, em informe de 1979 (ano em que o projeto de anistia do governo federal receberia aprovação por um Congresso Nacional submisso), preocupava-se com a iniciativa do Comitê pela Anistia, na unidade de Curitiba, ter idealizado "um esquema para identificação dos agentes dos órgãos de segurança da área que estejam infiltrados ou agindo juntos aos meios estudantil, político, operário e artístico", em conjunto com jornalistas.
Vejam-se os meios que eram considerados mais sensíveis e, dessa forma, espionados mais de perto pela polícia política. É interessante que, na identificação dos agentes, o CBA, segundo o informe, contaria com a colaboração de jornalistas de O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, o Estado do Paraná e Gazeta do Povo.
Quanto aos patrões, trata-se de outra coisa, como escreverei talvez ainda este mês, lembrando da adesão de grandes veículos de comunicação a diversas políticas do governo ditatorial.
Nisso, vemos outra continuidade: tem razão Lino Bocchini ao apontar que O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo, em seus editoriais, chamaram a repressão policial contra as manifestações. Ela veio.
E as manifestações continuarão, pois a insatisfação - com os rumos das cidades, com a devastação da natureza, os megaeventos esportivos, o Brasil, o sistema político (veja-se que o prefeito e o governador, embora de partidos rivais, têm sido alvo da mesma indignação) continua.
E, para sublinhar as continuidades com o passado recente da ditadura militar, nada melhor do que a poesia da época. Em homenagem ao desenvolvimentismo setentista, de caráter autoritário, ressuscitado pelo atual governo federal, lembro, de Cacaso, "Reflexo condicionado":

pense rápido:
Produto Interno Bruto
                 ou
brutal produto interno
                  ?
E, nesta época em que a polícia militar criminalizou ilegalmente o porte de vinagre, mostra-se mais atual do que nunca esta segunda estrofe do primeiro dos "Jogos florais", do mesmo poeta:

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.


Triste época, em que não é nem mesmo necessário atualizar a poesia de protesto escrita durante a ditadura militar.

P.S.: Estão sendo marcados em cidades estrangeiras atos de protesto em solidariedade aos manifestantes brasileiros. Em São Paulo, nova manifestação ocorrerá na próxima segunda-feira, a partir das 17 horas, no Largo da Batata.

P.S.2: Alguns nomes da chamada geração de 68, entre eles Paulo Vannuchi, recentemente eleito para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e ex-ministro de Lula, também viram paralelos entre os protestos de hoje e os daquele ano; para Vannuchi, o cenário é o mesmo: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2013-06-16/cenario-e-o-mesmo-de-68-diz-ex-ministro-sobre-violencia-da-pm-em-protesto.html


Nota: As duas primeiras fotos são da Alameda Santos e da Rua da Consolação, no dia 13 de junho; tirei a primeira após as 21:30h e a segunda, após as 23:30h. Os documentos estão no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Desarquivando o Brasil LX: Com Gorender, contra Gorender, pela justiça de transição

Morreu ontem, 11 de junho de 2013, Jacob Gorender. Não há quem pesquise o período da ditadura militar no Brasil sem que estude Combate nas trevas (sua última edição, esgotada, saiu pela Ática; esperamos que os herdeiros logo encontrem nova casa editorial). Com sua morte, não saberemos se e como revisaria novamente o livro para comentar informações novas que estão sendo reveladas por outros pesquisadores e pelas comissões da verdade. De qualquer forma, na sua edição atual, o livro, além de uma importante análise, é um documento imprescindível de um militante que se dedicou a refletir sobre sua própria trajetória e a da esquerda brasileira.

A trajetória deste historiador marxista e não acadêmico cruzou-se dolorosamente como autoritarismo no Brasil, e teve que incluir a superação do stalinismo (http://blogdaboitempo.com.br/2011/10/21/jacob-gorender/).  Ele também se dedicou aos temas da escravidão e do racismo no Brasil. Não li O escravismo colonial, que alguns apontam como sua obra mais importante.
Escrevo esta nota apenas, pois, para lembrar da sua importância para a questão do direito à memória e à verdade e da justiça de transição.
Recomendo revê-lo nesta entrevista ao Roda Viva em 2006: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/526/entrevistados/
Ele aponta a falsidade de importar as teorias dos dois demônios para o Brasil, a falácia, invocada pela direita menos informada ou menos honesta, da pretensa simetria dos "dois lados":

No meu livro Combate nas trevas, eu procurei ser fiel aos fatos, mostrar por que a esquerda foi derrotada, porque ela não conseguiu os resultados que esperava e alguns de seus líderes perderam a vida, como foi Marighella, Câmara Ferreira e vários outros. Procurei mostrar isso. E mostrar também os pecados, os crimes da própria esquerda. Mas eu só identifiquei, no caso de militantes da própria esquerda, quatro justiçamentos, não mais do que isso.
E a própria resistência à ditadura não pode ser combatida: "Apaziguamento, conciliação, capitulação, pacifismo incondicional - estas são posições que ajudam a ditadura a se consolidar e a prolongar sua sobrevivência." (Combate nas trevas, 6a. ed., 2003, p. 290).
Veja como esse Gorender vai contra o argumento dado por ele mesmo, mais tardiamente, nesta entrevista dada a Folha de S.Paulo em 2012 (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1293767-em-entrevista-inedita-jacob-gorender-diz-ser-contra-punicao-a-torturador-e-lei-da-anistia.shtml), de que a CNV não deve ter como foco os crimes praticados pela repressão.
O primeiro documento aqui destacado, oriundo do II Exército, está guardado no Arquivo Público do Estado de São Paulo. As autoridades militares queriam saber da existência de um grupo de dissidentes do PCB com a presença de Gorender e de Marighella, grupo que teria "uma ligação em bases operacionais" com os guerrilheiros do Caparaó. No entanto, a capacidade para fracionamento da esquerda era maior do que o imaginado, pois se tanto Gorender quanto Marighella deixaram o PCB para lutar contra a ditadura militar, fizeram-no com caminhos diversos: Marighella, com a Aliança Libertadora Nacional (ALN), buscou a ação armada sem a intermediação de partidos e foi morto em 1969; Gorender ajudou a fundar o pequeno Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), e foi preso em 1970.
No documento Linha política, de abril de 1968 (incluído em Imagens da revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971, organizado por Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá), o PCBR mostrava-se consciente desse estado de coisas "as forças de esquerda revolucionária, no Brasil, estão hoje dispersas em várias organizações"; no entanto, apostava que diversos "elementos e grupos [...] evoluem para o marxismo-leninismo", e que seria "possível atingir a unidade ideológica, política e orgânica, nas fileiras do partido". Isso não ocorreu.

Os órgãos de segurança, porém, temiam que isso ocorresse, como mostra este Boletim do SNI, de 30 de julho de 1968, que traz notícia de declaração da Ação Popular alinhando-se às posições do PCBR.
Outros documentos, do próprio PCBR, mostram profundas divisões no seio da esquerda, como diferenças entre esse partido e o PC do B, acusado de repetir os erros do PCB.
Em Combate nas trevas, Gorender, mostra-se sensível à relação entre direito e esfera pública. No capítulo "A guerrilha abafada", afirma que o governo Médici decidiu que a "a guerrilha do Araguaia não devia produzir efeitos judiciais, precisamente a fim de evitar repercussões públicas" (p. 239).
De fato, judicializar um conflito (se isso não é feito para realizar a censura judicial) pode significar trazê-lo ao conhecimento e à discussão públicos. No caso, do Brasil, a judicialização do combate a oposicionistas significou, em geral, uma chance de sobrevivência: era o sinal de que aquela prisão havia ocorrido, de que aquela pessoa estava nas mãos das autoridades. Houve quem fosse assassinado mesmo assim; no entanto, já se pode afirmar que onde a repressão foi realizada sem judicialização, como foram os casos da Guerrilha do Araguaia, das mortes de camponeses e do genocídio indígena, a quantidade de vítimas foi muito maior. Essa foi uma das razões da importância do direito e dos advogados de presos políticos no combate à ditadura.
Esse livro de Gorender também mostra a continuidade institucional da tortura a presos políticos e a presos comuns. No capítulo "Vivências do DEOPS e do Presídio Tiradentes", lembra que as prisões dos presos comuns eram, como a dos presos políticos, em grande maioria ilegais, havia quem fosse preso porque era negro, porque não estava bem vestido, porque não tinha dinheiro para satisfazer às extorsões policiais... E, no presídio Tiradentes, essas pessoas eram torturadas. Gorender conta (p. 253) como os presos políticos protestaram contra o que era feito contra esses outros, e que ele mesmo discursou diante de familiares, delegados do DOPS e do diretor da instituição penitenciária, o que logrou bom resultado.
Na mencionada entrevista ao Roda Viva, ele chega a falar de "câncer social":
Bom, tortura continua a existir hoje. Relatos de tortura não são, infelizmente, coisas do passado. É claro que militantes políticos não são mais torturados. Mas os acusados de crimes comuns, acusados verdadeiros ou falsos, continuam a sofrer. Nesse meu último livro, Direitos Humanos, tem um capítulo que é intitulado “Violência policial, um câncer social”. É realmente um câncer social no Brasil. O que a polícia militar, sobretudo, mas também a civil, fazem em nosso país é algo que não acontece em países civilizados.

Ao menos no sentido de que as forças de segurança continuam a agir sistematicamente contra o estado de direito, pode-se afirmar que, nos dias de hoje, continua a haver uma polícia política. Para apenas um exemplo, vejam este atentado contra a liberdade de imprensa na repressão às manifestações contra o aumento da passagem de ônibus em São Paulo; ou os crimes impunes que motivaram a campanha das Mães de Maio: http://maesdemaio.blogspot.com.br/.
Por isso, é estranho o argumento, dado na entrevista de 2012, de que não se deve punir os agentes da repressão por crimes cometidos, como declarou, "há trinta anos". O historiador não menciona o fato de que há uma obrigação internacional do país em fazê-lo, reafirmada na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia. Embora sua opinião careça de fundamento jurídico (bem como o pífio argumento contra a indenização das vítimas da repressão: "sofreu, acabou"), creio que seu principal problema é político: a pretendida punição, além de reafirmar princípios que estão na base do chamado estado de direito, afetado em seus próprios fundamentos pelos crimes da repressão política, teria um efeito largamente benéfico, exatamente por causa da vinculação entre direito e esfera pública, sobre os crimes de hoje. Pois a tortura, os desaparecimentos forçados e até mesmo o genocídio continuam a existir.
E, ao contrário do que o historiador declarou na entrevista, de que a Argentina seria "diferente", aqui também a repressão matou "inocentes". Por sinal, quem era culpado? Todas as execuções feitas no Brasil foram ilegais. As poucas condenações à morte judicialmente determinadas foram revistas. Ninguém foi morto no Brasil com base na legalidade, mesmo suspeita, das leis de exceção. O que ocorreu, nas milhares de execuções (cujo total ainda desconhecemos), foi terrorismo de Estado, criminoso até mesmo diante da legislação da ditadura. E disso Gorender, em Combate nas trevas, estava perfeitamente consciente ao escrever que, após 1968, "O terrorismo de direita se oficializou. Tornou-se terrorismo de Estado, diretamente praticado pelas organizações militares institucionais." (p. 165).
Aproveitemos, pois, as lições de Combate nas trevas para a campanha para a justiça de transição, e o façamos contra os argumentos em prol da impunidade desposados por tantos, e até mesmo pelo velho historiador na entrevista do ano passado.

Lembro ainda que parte da pesquisa de O escravismo colonial foi feita na prisão; se dependesse da ANPUH de hoje, nem mesmo nessas condições ele poderia ter pesquisado, tendo em vista o projeto de reserva de mercado para historiadores com diplomas. Intelectuais como Gorender, que nunca terminou um curso superior, são um dos alvos que a ANPUH (que realizaria, assim, algo que a ditadura militar não chegou a fazer) deseja calar: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/memoria-como-reserva-de-mercado-v.html).
Devo lembrar que ele também foi um jornalista sem diploma, o que parecerá escandaloso para certos jornalistas e políticos "democráticos": http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/policia-do-pensamento-e-reserva-de.html... 

quinta-feira, 6 de junho de 2013

EUA e as leis antiterroristas, base legal para o terrorismo de Estado

O jornal The Guardian revelou o aberto segredo de que o governo dos EUA vigia indiscriminadamente seus cidadãos:

http://www.guardian.co.uk/world/2013/jun/06/nsa-phone-records-verizon-court-order?CMP=twt_fd

Al Gore, que conhece seu partido e o governo, afirmou que se trata de algo "obscenamente ultrajante":

http://www.washingtonpost.com/blogs/post-politics/wp/2013/06/05/al-gore-calls-obama-administrations-collection-of-phone-records-obscenely-outrageous/

Talvez operações com cartões de crédito (afinal, deve lembrar-se que tais empresas, no caso Wikileaks, mostraram-se braços financeiros da política dos EUA) incluam-se no panóptico: http://online.wsj.com/article/SB10001424127887324299104578529112289298922.html
No entanto, trata-se simplesmente de como é aplicado o "Ato patriótico", legislação antidemocrática que o governo de Obama conseguiu estender por mais quatro anos, algo a ser estudado à luz de Foucault - um belo exemplo de vigiar e punir... E, mais do que isso, de biopolítica, que se serve desse aparato de controle e vigilância. A plutocracia estadunidense é exemplo de regime para o qual "os massacres tornaram-se vitais", como escreve Foucault em A vontade de saber.
A ideia, no melhor das hipóteses ingênua, de que se pode ter um governo democrático com leis antidemocráticas, que mencionei há pouco sobre a Argentina (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/06/antologia-mural-de-viagem-argentina.html), só poderia fazer sentido para um lunático que achasse que o direito não tem importância ou, ao menos, não tem importância para a política.
O exemplo dos Estados Unidos, importante precedente para a legislação congênere no Chile, no Equador e na Argentina (nestes países sul-americanos, direcionada contra os índios e os movimentos sociais), mostra como as leis antiterroristas não são outra coisa senão a base legal para o terrorismo de Estado.
Talvez alguns cidadãos dos EUA tivessem a esperança racista e etnocêntrica de que seu governo fosse vigiar, prender, torturar e matar apenas estrangeiros. Afora a incompatibilidade dessa posição com o direito internacional e com os direitos humanos, devemos ressaltar sua completa ingenuidade. Pois há o que Hannah Arendt chamou, brilhantemente, de efeito bumerangue: uma política externa contrária aos direitos humanos acaba por surtir efeitos também no plano interno. No meu livrinho Para que servem os direitos humanos?, escrevi, às páginas 32 e 33:


Na sua análise sobre Kosovo[31], Virilio defendeu a existência de um “putsch mundialista”, na sequência do qual um “grupo armado” fugiu ao controle das Nações Unidas[32]. Previu também que os Estados Unidos, libertos da ONU, agiriam dispensando o manto da NATO em busca da sua “dimensão solitária e hegemónica”[33] - foi o que ocorreu na guerra do Afeganistão, quando os EUA exigiram uma coligação global, à revelia de ambas as organizações. O mesmo se verificou no Iraque em 2003, ocasião em que não se formou coligação alguma e a NATO foi deixada de lado para isolar a França e a Alemanha. A política externa imperialista precisou de se apoiar na limitação doméstica dos direitos fundamentais, o que foi realizado através do USA Patriot Act. Estamos perante um “efeito bumerangue”, segundo Hannah Arendt: a dominação externa acaba por gerar dominação também no plano interno[34].
A afirmação kantiana de que um Estado republicano seria menos dado à guerra, pode, portanto, ser revertida desta forma: uma política externa violadora dos direitos humanos acaba por gerar violações a esses direitos também internamente, o que revela a importância do controle social da política exterior.


[31] Análise bem diversa da que Habermas expôs em «Bestialidade e Humanidade. Uma guerra no limite entre direito e moral», in Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, no. 5, p. 77-87, 1999.
[32] VIRILIO, Paul. Estratégia da Decepção. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 85.
[33] Op. cit, p. 55.
[34] Crises da República. 2. ed., São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 131.



Esse efeito não pode mais ser escondido. Nessa falta de controle social na plutocracia dos EUA, temos a irresponsabilidade jurídica dos governantes pelos seus crimes. Se os membros do governo do último Bush, e ele mesmo, saíram ilesos, por que imaginar que atividades criminosas cessariam no governo de seu sucessor, Obama? A impunidade em relação aos abusos cometidos na "guerra contra o terrorismo", devo lembrar, foi defendida até mesmo por um jurista cujo falecimento recente gerou notas de louvores quase onipresentes, Ronald Dworkin. Ouçam-no nesta interessante entrevista dada à BBC em 25 de janeiro de 2010 (http://www.bbc.co.uk/programmes/p005vc49).
Pouco antes dos vinte minutos, ao ser perguntado se membros da administração federal do governo do último Bush deveriam ser processados em razão da "guerra contra o terrorismo", tendo em vista as mentiras, torturas, sequestros e assassinatos que viraram política pública nos EUA, ele responde que não. Dworkin afirma que se lançaria um precedente para que uma administração processasse membros da anterior, o que seria típico de uma "república das bananas".
O lamentável arrazoado do filósofo mostra-o inferior como pensador político, nessa questão, a Woody Allen. Como se sabe, a origem desse tipo frutal de repúblicas está em uma companhia multinacional apoiada pelo governo dos EUA, United Fruit (hoje, Chiquita Brands), que fomentou diversos golpes de Estado na América Central, e foi um dos braços estadunidenses de combate à democracia no continente. O grande cineasta, em um de suas comédias de juventude, mostra bem que a verdadeira república das bananas era os EUA. Quem não conhece Bananas, pode ver esta cena de julgamento, em que, depois de cantar "O mio babbino caro", a testemunha (Miss America) diz que o réu é um traidor do país porque não concorda com os pontos de vista do presidente da república: https://www.youtube.com/watch?v=sYp9WtbMo2k
Dworkin, apesar de não cantar Puccini, é bem mais sofisticado do que ela, mas não nesse ponto da entrevista. O curioso é que ele apoiou a justiça de transição na Argentina e escreveu a introdução do Nunca más na edição em inglês. cito-a do espanhol:
No consideraban a los terroristas de izquierda meramente como criminales -que debían ser perseguidos y castigados con el poder de policía-, sino como una amenaza letal e inmanente  a la civilización argentina; un ejército del mal, al que tenían la misión de destruir, en lo que llamaron "guerra sucia". No obstante, los militares no consideraban que esta amenaza estuviera limitada a las guerrillas, ni a los terroristas en sí mismos sino que también incluía, más profundamente, aquello que el General Jorge Videla (el representante del Ejército en la Junta inicial) denominó "pensamiento subversivo" y que implicaba cualquier tipo de disenso.
O texto pode ser lido na Revista Argentina de Teoría Jurídica: http://www.utdt.edu/ver_contenido.php?id_contenido=2935&id_item_menu=5858.
Note-se que os argumentos dos generais argentinos são parecidos, na sua invocação do mal, com os da "guerra contra o terror". Ademais, no tocante ao controle do pensamento, há também paralelos: o alinhamento forçado da imprensa à invasão do Iraque já prefigurava tudo o que ocorreria depois. Faço coro com Idelber Avelar: "não resta fiapo de credibilidade à ideia da imprensa 'mais livre do mundo', com que tantos brasileiros à direita do espectro político se referem aos conglomerados de mídia norte-americanos".
Voltemos a Dowrkin, que morreu pouco antes de ver mais este passo do declínio dos EUA. Processar ex-membros do governo é bom no país dos outros, não é isso? Fica feio no excepcionalismo estadunidense... Que deve ser ressignificado: temos que entendê-lo não mais como expressão de uma terra de liberdade, e sim como de um regime de leis de exceção.
Dworkin, no seu último livro, Justice for hedgehogs, escreveu que  "George W. Bush was one of the most unpopular presidents in history [ao autor nem ocorre acrescentar "dos Estados Unidos" porque o capítulo não enxerga realmente além-fronteiras], but he remained adamant in pursuit of the policies that made him unpopular. The majoritarian conception of democracy might suppose, as I said it did, that politicians will always be anxious to do what the majority wants. But history teaches otherwise."
A ideia de que políticos em uma democracia representativa manter-se-iam fiéis aos interesses da maioria era uma esperança que estava presente em O Federalista, no final do século XVIII, e ela foi uma das bases do sistema político dos EUA. Dworkin, no começo do XXI, poderia ter ido muito além. Teria sido interessante acrescentar que muitas dessas políticas eram, além de impopulares, inconstitucionais e contrárias ao direito internacional; mas, nesse ponto, o filósofo teria que criticar radicalmente a falha de muitos dos juristas daquele país e o próprio Estado. A esse ponto, no entanto, ele não pôde chegar; vejam esta candura, no mesmo livro: "The recent reactions of both the United States and the United Kingdom to terrorist threats illustrates a failure of nerve and honor in both theses somewhat different political cultures, for instance."

P.S.: Nicholas Thompson, de The New Yorker, resumiu no twitter, comparando as posições opostas de Bradley Manning e do governo dos EUA, o atual quadro político-juridico daquele país: "Bradley Manning: government shouldn't keep secrets from the people. NSA: people shouldn't keep secrets from the gov." https://twitter.com/nxthompson/status/342809027308310528