O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 15 de junho de 2013

Desarquivando o Brasil LXI: Polícia ontem e hoje, o milagre do vinagre

A lista é uma forma literária. Portanto, isto é só literatura:



Mais vídeos:

Algumas notícias de veículos estrangeiros:


A antropóloga Artionka Capiberibe (https://twitter.com/Artionka/status/345390036478484480) comparou a situação com o DOPS, extinto em São Paulo antes da posse do governador Franco Montoro, do PMDB, após as eleições diretas de 1982.
As épocas são diferentes, mas é realmente interessante verificar as continuidades e estabelecer comparações. Em outra nota, "Desarquivando o Brasil IX: dizendo o incomunicável", escrevi como se mantinham os procedimentos tantas vezes ilegais das detenções feitas pelas polícias brasileiras: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/06/desarquivando-o-brasil-ix-dizendo-o.html
O caráter ilegal dos procedimentos policiais em treze de junho, envolvendo crimes contra o patrimônio público e abuso de poder, foi denunciado por diversos advogados. E, certamente, ele ocorreu devido ao caráter contestatório do movimento. Curiosa instituição de segurança, eficaz apenas no abuso do poder. Se a polícia não cumpre nem de longe suas atribuições constitucionais ("Delegacias fazem, em média, 3 prisões para cada 100 crimes violentos na capital"), em revanche tem servido eficazmente para o controle social dos pobres e das minorias, o que inclui o massacre e a destruição de moradias e de propriedade desses grupos marginalizados. Em um Estado marcado pelo abuso, trata-se deveras de um órgão de segurança, mas do poder.


O que é mais seguro para esse poder público? Que se busque manter o mito, tão politicamente significativo quanto historicamente falso, de uma população inerte, como se não houvesse ocorrido a Cabanagem, o Contestado, Canudos - apenas para mencionar três casos de genocídio impetrados pelas autoridades constituídas - e outras revoltas na história do Brasil. É mais seguro que permaneça tal mito, simbolicamente simpático ao poder, e que se proíbam as manifestações. Em outro texto, escrevi sobre recente decisão liberticida do Judiciário paulista, tomada a partir de pedido do Ministério Público Estadual, contra a marcha da maconha. Ela serviria para proibir qualquer tipo de manifestação, tendo em vista sua fundamentação radicalmente inconstitucional e inimiga da esfera pública (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/desarquivando-o-brasil-viii-e.html)
Isso, de fato, ocorria na ditadura militar, sob o manto da doutrina de segurança nacional. O sucesso da repressão política havia sido tão grande que, em 1976, dizia-se que, em São Paulo, estava "desaparecendo até mesmo a lembrança" dos comícios políticos, segundo o Secretário de Segurança dessa época, o coronel Erasmo Dias, e a lenta abertura da esfera pública inquietava o militar. O então diretor do DOPS do Estado de São Paulo, Tácito Pinheiro Machado, mostrava-se mais preocupado com as grandes cidades, devido a aglomeração de pessoas, e afirmava que seriam objeto de policiamento os detalhes da propaganda eleitoral.
Essa prática encontrava consonância no pensamento oficial da época. No "Ensaio sobre a doutrina política da Revolução", que cito da Revista Mensal da Polícia de SP, n. 18, de abril de 1969, o general Meira Mattos, um dos ideólogos brasileiros da segurança nacional, cometeu, entre outras, esta passagem:

É a democracia, antes de tudo, uma concepção existencial de teto, não um instrumento de ação política. Numa tentativa de comparação, diríamos que a democracia, assim como o marxismo e o nacional-socialismo, aquecem as mentes, mas são insuficientes para mover, desembaraçadamente as pernas e os braços de seus adeptos.
Passemos por cima da equiparação entre democracia (provavelmente a parlamentar), marxismo e nazismo, cuja modéstia teórica equivale ao peso intelectual da doutrina pensada pelo general, e pela estranha cegueira histórica de imaginar que tais doutrinas não inspiraram a ação política. Como a liberdade é uma prática, a dissociação entre democracia e ação somente faz sentido se se deseja coibir a democracia - ela existirá apenas na ação e nas possibilidades por esta abertas. Para mantê-las fechadas, o controle dos movimentos sociais era vital.




As operações, anteriores à última ditadura, de infiltração nos movimentos sociais, sindicatos e instituições de ensino continuavam. No exemplo que selecionei, o Ministério da Aeronáutica, em informe de 1979 (ano em que o projeto de anistia do governo federal receberia aprovação por um Congresso Nacional submisso), preocupava-se com a iniciativa do Comitê pela Anistia, na unidade de Curitiba, ter idealizado "um esquema para identificação dos agentes dos órgãos de segurança da área que estejam infiltrados ou agindo juntos aos meios estudantil, político, operário e artístico", em conjunto com jornalistas.
Vejam-se os meios que eram considerados mais sensíveis e, dessa forma, espionados mais de perto pela polícia política. É interessante que, na identificação dos agentes, o CBA, segundo o informe, contaria com a colaboração de jornalistas de O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, o Estado do Paraná e Gazeta do Povo.
Quanto aos patrões, trata-se de outra coisa, como escreverei talvez ainda este mês, lembrando da adesão de grandes veículos de comunicação a diversas políticas do governo ditatorial.
Nisso, vemos outra continuidade: tem razão Lino Bocchini ao apontar que O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo, em seus editoriais, chamaram a repressão policial contra as manifestações. Ela veio.
E as manifestações continuarão, pois a insatisfação - com os rumos das cidades, com a devastação da natureza, os megaeventos esportivos, o Brasil, o sistema político (veja-se que o prefeito e o governador, embora de partidos rivais, têm sido alvo da mesma indignação) continua.
E, para sublinhar as continuidades com o passado recente da ditadura militar, nada melhor do que a poesia da época. Em homenagem ao desenvolvimentismo setentista, de caráter autoritário, ressuscitado pelo atual governo federal, lembro, de Cacaso, "Reflexo condicionado":

pense rápido:
Produto Interno Bruto
                 ou
brutal produto interno
                  ?
E, nesta época em que a polícia militar criminalizou ilegalmente o porte de vinagre, mostra-se mais atual do que nunca esta segunda estrofe do primeiro dos "Jogos florais", do mesmo poeta:

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.


Triste época, em que não é nem mesmo necessário atualizar a poesia de protesto escrita durante a ditadura militar.

P.S.: Estão sendo marcados em cidades estrangeiras atos de protesto em solidariedade aos manifestantes brasileiros. Em São Paulo, nova manifestação ocorrerá na próxima segunda-feira, a partir das 17 horas, no Largo da Batata.

P.S.2: Alguns nomes da chamada geração de 68, entre eles Paulo Vannuchi, recentemente eleito para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e ex-ministro de Lula, também viram paralelos entre os protestos de hoje e os daquele ano; para Vannuchi, o cenário é o mesmo: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2013-06-16/cenario-e-o-mesmo-de-68-diz-ex-ministro-sobre-violencia-da-pm-em-protesto.html


Nota: As duas primeiras fotos são da Alameda Santos e da Rua da Consolação, no dia 13 de junho; tirei a primeira após as 21:30h e a segunda, após as 23:30h. Os documentos estão no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

2 comentários:

  1. Padua, praticamente esgotando o q havia para ser dito até dois dias passados. Sem computador, perco um pouco desse caudal sempre lúcido. Abr, Adriana.

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    1. Muito obrigado. O interessante é que o fluxo continua, e há tentativas, subterrâneas ou não, de várias faixas do espectro político para controlá-lo.

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