O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 30 de junho de 2013

Desarquivando o Brasil LXIII: Descartes subversivo: livros proibidos, ontem e hoje


Preâmbulo: Somente depois de ter escrito esta nota, li que a polícia gaúcha aprendeu livros anarquistas na Federação Anarquista Gaúcha, e que o delegado Ranolfo Vieira Jr., chefe da polícia civil, ainda em liberdade, ressaltou que "foi apreendida vasta literatura, eu diria assim, a respeito dos movimentos anarquistas", em razão dos protestos e manifestações que ocorrem no país. Fica muito bem em um Estado governado por um ex-ministro da justiça, Tarso Genro. Elio Gaspari noticiou o ocorrido, mas a Federação traz mais detalhes: http://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2013/06/24/o-enredo-de-uma-farsa-a-tentativa-de-criminalizacao-da-federacao-anarquista-gaucha/
Nesta nota, tendo em vista a atual atividade de polícia do pensamento das forças públicas de segurança no Brasil, que chafurdam furiosamente na ilegalidade, somente me referi a obras teóricas e técnicas. A censura que recaiu sobre obras de ficção poderá ser objeto de outro pequeno texto.



Uma vez que a imaginação autoritária brasileira é de um ridículo ímpar, a polícia mineira incluiu o leite de magnésio entre as substâncias proibidas (http://www.hojeemdia.com.br/minas/manifestante-e-detido-com-leite-de-magnesio-durante-protesto-1.140083).
E os livros? A apreensão, pela polícia civil do Rio de Janeiro, de obra sobre o movimento punk junto com marretas, facas e soco inglês, serviu, de acordo com declaração do delegado Mario Andrade, o livro, com as fotos e cartazes "demonstram o perfil" do foragido, e o livro, em especial, foi apreendido "para demonstrar a ideologia dele frente a nação brasileira, de defesa da anarquia". Podem-se ler as declarações na reportagem de Ítalo Nogueira na Folha de S.Paulo em 26 de junho, "Polícia apreende armas brancas e livro na casa de suspeito de vandalismo": http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1301767-policia-apreende-armas-brancas-e-livro-na-casa-de-suspeito-de-vandalismo.shtml
Note-se ainda que os autores da série de vandalismos de Estado que vem sofrendo aquela região do país ainda não foram incomodados pela polícia.
Em outra época histórica, durante a ditadura militar, os livros eram um dos objetos de preocupação da doutrina de segurança nacional. Há bastante literatura sobre o assunto. Já no governo Castello Branco, temos o caso da prisão de Ênio Silveira, editora da Civilização Brasileira (hoje, apenas um selo da editora Record), que publicou diversas obras de esquerda. Castello Branco, segundo Elio Gaspari em A ditadura envergonhada, teria ficado constrangido com a prisão e com a apreensão de diversos livros, por causa da repercussão negativa para o governo.
Com repercussão negativa ou não, Ênio Silveira foi processado, logrando vitórias no Judiciário. No entanto, Michele Rossoni Rosa, em "Os livros na ditadura militar: as ações criminais contra a editora Civilização Brasileira (1965-1972)" , explica que as formas de pressão do governo não se limitavam ao campo judicial. Afinal, tratava-se de uma ditadura.
Basicamente, houve pressões sobre bancos para que não financiassem as edições (segundo o editor, o maior problema envolvendo a cassação dos seus direitos políticos foi a impossibilidade de continuar fazendo financiamentos através do Banco do Brasil, agente financeiro oficial para o setor livreiro), apreensões em quantidades suficientes para causar prejuízos significativos (acrescidas das perdas com o incêndio na sede da empresa) e, aspecto determinante na opinião de Ênio, a intimidação de livreiros para que não vendessem os livros da empresa.

Afinal, tratava-se de uma ditadura, não se poderia esperar que o governo agisse dentro da legalidade.
Diversos documentos do DEOPS/SP, hoje guardados no Arquivo Público do Estado de São Paulo (onde pesquisei os que incluo neste pequeno texto),  demonstram essa mesma preocupação com os livros. Em outra nota, mencionei o problema com os autores Celso Furtado e Josué de Castro, ambos cassados: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/05/desarquivando-o-brasil-xxxvi-comissao.html

Documento do Exército, de 1969, registra o alarme com Meu amigo Che, de Ricardo Rojo, lançado pela Civilização Brasileira: "Há, livremente vendidos nas livrarias, da cidade de São Paulo, diversos livros que fazem abertamente proselitismo das idéias de esquerda em constante e atuante guerra psicológica."
Segundo a doutrina de segurança nacional, a guerra psicológica corresponderia ao primeiro estágio da guerra subversiva do comunismo internacional, com o fim de minar os costumes e os valores burgueses de uma nação, que, dessa forma, se tornaria presa fácil para os comunistas.
A censura política aos meios de comunicação era feita com essa justificativa; a censura de "costumes" era bem mais antiga e tinha aceitação em boa parte da população, como lembra Carlos Fico em Além do golpe. Juridicamente, esta outra censura tinha uma base muito mais sólida. Já a censura política dependia dos poderes dos atos institucionais, pois a própria Constituição de 1967 somente a previa esse tipo de ação contra a imprensa no estado de sítio. O caso, que chegou ao Supremo Tribunal Federal, do jornal Opinião bem o mostrou: para reverter decisão desfavorável da justiça em 1973, Médici e seu ministro da justiça, Alfredo Buzaid, forjaram retroativamente uma determinação supostamente de 1971 de "censura de imprensa, das telecomunicações e das diversões públicas, com base no artigo 9 do Ato Institucional n. 5" (p. 89 de Além do golpe).
No entanto, no parágrafo oitavo do artigo 150 da Constituição de 1967, junto com a liberdade de pensamento, e a previsão de que a publicação de "livros, jornais e periódicos independe de licença de autoridade", afirmava-se que não seria "tolerada a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe." Com o que foi, na prática, uma nova Constituição em 1969, previsão semelhante se deu no parágrafo oitavo do artigo 153, acrescentando-se o preconceito "de religião".
A publicação de livros poderia, pois, dentro desse quadro institucional, ser enquadrada na tipificação altamente arbitrárias das leis de segurança nacional do crime de "incitar publicamente" "à guerra ou à subversão da ordem político-social", "à desobediência coletiva às leis", "à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis" etc. O decreto-lei n. 314, de 11 de março de 1967, previa-o com aumento de pena em metade se praticado "por meio de imprensa, panfletos, ou escritos de qualquer natureza, radiodifusão ou televisão". O decreto-lei n. 898, de 29 de setembro de 1969, previa os livros como um dos meios do crime de "propaganda subversiva".
Com a atual lei de segurança nacional, a 7170 de 14 de dezembro de 1983 (um dos legados subsistentes do governo do general Figueiredo), deixou de ser considerada propaganda "criminosa a exposição, a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas." (parágrafo terceiro do art. 22).
Não é este o foco de minha pesquisa, mas não pude deixar de ler documentação, já na década de 1960, sobre "batidas" para apreender livros "subversivos". Em um documento de 1969, relata-se que, de uma só vez, foram apreendidos cinco mil exemplares, segundo o DOPS/GB.
No entanto, livros marxistas, e outros de esquerda, foram publicados, porque, em geral, não havia tanto controle sobre a literatura científica (houve exceções, como mencionei nesta nota: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/12/desarquivando-o-brasil-xlvi-ditadura.html). Manoel Gonçalves Ferreira Filho, outro dos juristas comprometidos com a ditadura militar (trabalhou com Buzaid no Ministério da Justiça e também foi, como ele, professor da faculdade de direito da USP; hoje, está aposentado), bem expressa a questão ao afirmar, em seu A democracia possível (uma defesa do regime militar, com significativos erros de ciência política, publicada inicialmente em 1972), que "se o ensino deve ser ortodoxo, o Estado deve estimular a heterodoxia no nível da ciência. Cabe a ele manter centros de estudo, em nível de pós-graduação, onde tenham livre curso todas as idéias, todas as dúvidas. Tais centros constituirão o foco da inovação e, portanto, do progresso."
É evidente o caráter antidemocrático, elitista, de uma liberdade de pensamento que só pode ser exercida por pós-graduados, um exemplo hipertrofiado dos devaneios autoritários do bacharelismo brasileiro. De qualquer forma, a proposta do jurista fica completamente deslocada em um sistema em que a academia era fortemente cerceada, e em que vários professores foram presos, processados e afastados de suas funções em razão de sua atuação política. Caio Prado Jr. cumpriu pena pelo crime de incitação a subversão. Em razão do AI 5, nomes como Mário Schenberg e Emília Viotti foram afastados.

Além desses documentos oficiais de perseguição a livros e seus autores, há outros que mostram a produção teórica das próprias organizações clandestinas de esquerda durante a ditadura militar, e servem para que se tenha uma ideia dos autores que fundamentavam a práxis desses militantes, e de suas divergências teóricas, relacionadas ao grande fracionamento desses grupos.

Gorender, em Combate nas trevas, escreveu sobre isso, apontando a influência dos escritos de Che Guevara e do "entusiasmo instantâneo" suscitado por Régis Debray, bem como a influência do maoísmo. Os documentos reunidos e comentados por Daniel Aarão Reis e Jair Ferreira de Sá em Imagens da revolução revelam as diferentes análises e fundamentos teóricos daqueles grupos. Uma das lições de Marx seria a de que, para transformar o mundo, é necessário tê-lo compreendido...
A Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), organização a que, entre outros, Dilma Rousseff pertenceu, propunha um programa de formação com quatro temas: sistema capitalista, situação internacional, situação nacional e análise de classes, estratégia. Na bibliografia básica, de leitura obrigatória, vê-se no documento apreendido, havia Mao, Marx, Lênin, Bukharin... Autores brasileiros perseguidos pela ditadura, Fernando Henrique Cardoso, Caio Prado Jr., Octavio Ianni e Theotonio dos Santos apareciam no terceiro tema ao lado de Marx. Stálin e Mao eram dois dos autores para estratégia. Fernando Henrique Cardoso era estudado também no tocante à situação internacional na América Latina. Há pequenos erros no documento, como o nome de Ramón Losada Aldana, que são compreensíveis na difícil situação de clandestinidade.


Veja-se que boa parte das obras era publicada no Brasil, inclusive o Dialética do subdesenvolvimento, de Losada, por uma das editoras que se destacou na bibliografia de esquerda no Brasil, a Paz e Terra. No entanto, a mera posse dessas obras já se tornava algo altamente suspeito - e a polícia mineira de hoje o confirmaria.
Um dos casos que li nos documentos do DEOPS/SP foi o de assistente social que, depois de deixar o Hospital São Paulo, foi denunciada pelos seus substitutos ao diretor administrativo por ter deixado "livros de filosofia política de esquerda" no trabalho. Ela foi presa em 14 de julho de 1970, mas acabou sendo libertada porque não foi apurada "nenhuma atividade subversiva da custodiada".

Outro tipo de documento que indica as leituras da esquerda clandestina brasileira eram as listas de material apreendidos em aparelhos, que, em geral, incluíam livros. Por vezes, a referência é genérica: "livros subversivos". Apesar disso, podemos ter uma ideia da biblioteca desses militantes. Deixo aqui apenas uma pequena seleção.
Marx, como era de esperar, estava presente. De militante do Movimento Revolucionário Marxista (MRM), o 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, apreendido em 23 de março de 1971. É possível que se trate da edição da Paz e Terra, que foi lançada em 1969, com tradução de Leandro Konder e Renato Guimarães.
No tocante à literatura, um exemplo é a poesia (fraca) engajada de esquerda da coleção Violão de Rua; no documento, de uma militante da Ação Libertadora Nacional (ALN, fundada por Marighella), que teve seus pertences aprendidos em 22 de março de 1970.

De outro militante da ALN, cujo aparelho foi invadido em 23 de julho de 1970, vemos um estudo sobre Debray, autor francês, e as Cartas de Havana, de Marighella (que não era lido apenas no Mini-manual do guerrilheiro urbano), em que ele solidarizou-se com a Revolução Cubana, rompeu abertamente com o PCB e propôs para o Brasil a luta de guerrilhas.
No Combate nas trevas, Gorender explica (p. 201) que as Considerações sobre as teses de Regis Debray foram elaboradas pelo Movimento de Libertação Popular (MOLIPO), rejeitando o foquismo e adotando a linha da guerrilha rural.

Vi mais de uma vez Ferreira Gullar contar que levaram de sua casa, depois do golpe, uma pasta com o título "Do Cubismo à Arte Neoconcreta". Possivelmente os policiais pensaram que ela escondia mensagens subversivas, mas talvez, como o poeta e então militante do PCB conjecturou, talvez tivessem julgado que o assunto era Cuba...

Em razão da formação dos militares e dos policiais no Brasil, é provável que os agentes da repressão nem sempre soubessem o que estavam apreendendo. Stanislaw Ponte Preta registrou no Febeapá a célebre tentativa de prisão de Sófocles pelo DOPS/SP por causa da peça Electra, frustrada pela morte do autor milênios antes.
Lembro, por fim, de livros de um professor que mantinha relações com a ALN e a VPR. Notável que, em primeiro lugar entre as obras apreendidas em primeiro de dezembro de 1970, dentro de uma "mala cheia de livros subversivos" (descreve o auto de apreensão), que inclui Barthes, Heidegger, Thomas Morus, fosse aberta pelo aparentemente insuspeito Descartes e seu Discurso do método!
Pode ter sido apenas ignorância, ou - quem sabe? - medo das possibilidades emancipatórias do conhecimento, ou até mesmo de poucas passagens diretamente jurídico-políticas como esta: "[...] a multidão de leis fornece frequentemente desculpa aos vícios, de maneira que um Estado é melhor regrado quando, tendo poucas, elas são nele ainda mais estritamente observadas [...]".
Para Descartes, sob esse aspecto, teríamos o pior no Brasil, país em que há leis em demasiado, e que, ademais, não são observadas, especialmente em relação aos vícios do poder. Para constatá-lo, não precisamos lembrar da multiplicação de decretos-lei da ditadura e da ilegalidade da prática repressiva mesmo diante dos padrões jurídicos daquele regime. Basta a polícia de hoje, como se fez em Minas com a "criminalização" do leite de magnésio, do anarquismo e dos livros sobre movimento punk, para confirmar que o filósofo francês continua subversivo.

P.S. Sobre vandalismo em 1968 e hoje, é interessante ler o texto de Bessa Freire, "Em defesa dos vândalos". Ele foi processado por supostos danos ao patrimônio público durante a ditadura militar: http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1039

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