O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Eribon sobre a homofobia de Supiot, ou o século XXI atualizado pelo Concílio de Trento

Didier Eribon criticou a escolha de Alain Supiot para o Collège de France, indagando se se criou uma cátedra de homofobia: "Une chaire d'homophobie au Collège de France??" (http://didiereribon.blogspot.com.br/2013/07/une-chaire-dhomophobie-au-college-de.html).
Na crítica, lembra da ligação de Supiot com Pierre Legendre e da coincidência de seus argumentos com o da direita homofóbica que se manifestou na França contra o casamento igualitário.
Penso que Eribon está certo. Acho que o sociólogo citou uma entrevista que o jurista concedeu à revista Esprit em 2001, e outras podem ser encontradas na obra do jurista. Gostaria de acrescentar algumas.
Como é comum nesses casos, as roupagens cientificistas desnudam o corpo do dogma. Em curioso artigo sobre o PACS ("Les mésaventures de la solidarité civile (Pacte civil de solidarité et systèmes d'échanges locaux)", http://adonnart.free.fr/doc/citoy/supiot.pdf), de 1999, o jurista assume o fundamento religioso de sua argumentação:

La revendication d'un statut pour les couples homosexuels oblige à poser crûment cette question, qui nous replace devant l'alternative formulée avant le Concile de Trente par Gratien et Lombard : est-ce la  copula  carnalis, l'union des chairs, ou bien « la volonté et la charité » l'engagement réciproque, qui instituent le couple?
O Concílio de Trento, segundo Supiot, é o parâmetro do estatuto do casamento! É necessário ter boa vontade para levar Supiot a sério e ler o resto da argumentação: a "união da carne" poderia ser entendida de duas maneiras: o da simples sexualidade, que não presta como base de reivindicação de direitos no ordenamento francês, ou o da geração de filhos, o que não é o caso dos casais homossexuais. No tocante à "vontade e caridade", trata-se da questão da solidariedade recíproca no casal, que deve gerar direitos securitários; a lei teria todo o interesse de favorecer a solidariedade civil para evitar que a solidariedade social sucumba ao "individualismo radical". No entanto, dessa forma, a solidariedade civil não teria sentido se limitada a um tipo determinado de pessoas (como os homossexuais ou os concubinos de qualquer sexo). Disso, o jurista concluía que não se deveria instituir o PACs na órbita do direito de família, e sim no das obrigações. Dessa forma, os casais homossexuais deveriam ser tratados juridicamente não como famílias, e sim como partes de um simples contrato de solidariedade...
Com a coerência dos dogmas religiosos, pôde então manifestar-se contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, afirmando que o casamento não é um contrato (http://www.mafr.fr/spip.php?article3091)!
Em Homo juridicus, já traduzido no Brasil, há uma passagem quase igual a outra que Eribon cita: "L'égalité algébrique autorise l'indifférentiation: si je dis < a+b = a+a = b+b > , il s'en déduit que partout où se trouve a, je pourrai poser indifférement b [...] Appliqué à l'égalité entre les sexes, cela voudrait dire qu'un homme est une femme et réciproquement." (A igualdade algébrica autoriza a indiferenciação: se eu digo < a+b = a+a = b+b > , disso se deduz que, em todo lugar onde encontro a, posso colocar indiferentemente b [...] Aplicado à igualdade entre os sexos, isso quereria dizer que um homem é uma mulher e vice-versa."
Logo depois, nas páginas 11 e 12:
Or l'égalité entre hommes et femmes ne signifient pas que les hommens soient de femmes, même s'ils peuvent en rêver parfois. Le principe d'égalité entre hommes et femmes est l'une des conquêtes les plus précieuses et les plus fragiles de l'Occident. Il ne pourra prendre durablement racine si cette égalité est entendue sur le mode mathématique, c'est-è-dire si l'on traite l'être humain sur un mode purament quantitatif. [...] Légalité fait l'objet d'interprétations folles lorsque, sous l'empire de la quantité, nous sommes conduits à croite en l'abstraction du nombre indépendamment de la qualité des être dénombrés.
"Ora, a igualdade entre homens e mulheres não significa que os homens sejam mulheres, mesmo que, às vezes, possam sonhar com isso. O princípio da igualdade entre homens e mulheres é uma das conquistas mais preciosas e mais frágeis do Ocidente. Ele não poderá enraizar-se se essa igualdade é percebida do modo matemático, isto é, se se trata o ser humano de um modo puramente quantitativo. [...] A igualdade é objeto de interpretações loucas quando, sob o império da quantidade, somos levados a acreditar na abstração do número independentemente da qualidade dos seres enumerados."
Esse modelo "algébrico", "matemático" seria próprio do capitalismo, em que a quantidade prevalece sobre a "diversidade das coisas", o que faz com que a igualdade receba "interpretações loucas", que mais adiante, ele qualifica de "messianisme" dos direitos humanos, comparando as teorias de gênero com a ideia de loucura como direito inalienável.

Sua crítica ao capitalismo, portanto, tem o mesmo fundamento de sua crítica às aspirações de igualdade das pessoas homossexuais; o matrimônio igualitário seria uma forma de neoliberalismo...
Eu diria que essa é a sanidade deste jurista do século XXI, atualizado pelo Concílio de Trento.

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