O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Desarquivando o Brasil LXX: Ana Rosa Kucinski de volta à USP


Em 29 de outubro de 2013, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" fez uma audiência pública sobre o caso de Ana Rosa Kucinski, professora do Instituto de Química e membro da ALN que foi sequestrada e morta durante a ditadura militar.
O espaço em que ocorreram os trabalhos, apelidado de "Queijinho", foi posto à disposição pelo Centro Acadêmico de Química. O deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão, abriu os trabalhos às 17 horas. Rosa Cardoso, membro da Comissão Nacional da Verdade, compôs a mesa e elogiou a iniciativa. O deputado anunciou a presença de outra conselheira da CNV no recinto, Maria Rita Kehl, e de Vera Paiva, filha de Rubens Paiva.
Foram lidos trechos do Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos sobre os casos da professora, de seu marido e membro da ALN, Wilson Silva, e do estudante Issami Nakamura Okano, que foi aluno da faculdade de Química, também militou na ALN e foi sequestrado em 1974 e se tornou um desaparecido político.

Em seguida, foi transmitido um vídeo produzido pela Comissão, em que Fernanda Azevedo interpretou (muito bem) Kucinski. Adriano Diogo pediu que os professores Fábio Konder Comparato e Maria Vitória Benevides compusessem a mesa.
Bernardo Kucinski, irmão da professora desaparecida (na primeira foto, o segundo à esquerda; o primeiro é Comparato; depois de Kucinski, estão Diogo, Cardoso e Benevides), começou dizendo que estava "exausto" de todos esses anos de busca de informações. Contou que, ao lançar K na Alemanha, viu naquele país, ao lidar com o passado nazista, "um contraste absoluto com a forma como nós estamos lidando com a nossa história", pois, no Brasil, ainda há quem justifique a ditadura, afirmando que "o outro lado" fazia a "mesma coisa".

Colegas de Ana Rosa Kucinski no Instituto, hoje aposentados, deram seus testemunhos. Em comum, rememoraram a sensibilidade artística e social da professora, afirmaram que desconheciam sua afiliação à ALN, e que desconheciam se ela havia sido presa ou se tinha fugido. Neste caso, denunciar sua ausência teria atrapalhado os planos. Na foto, de pé, vê-se o professor Sérgio Massaro contar algumas das passagens que foram incluídas neste depoimento: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2012/08/perfil-ana-rosa-kucinski/

O assessor da Comissão Estadual Renan Quinalha, a falar na foto ao lado, explicou como a atual administração da USP vem se negando a reconhecer o erro da universidade no caso de Kucinski. Quinalha ratificou o que Bernardo Kucinski já havia denunciado em carta para Adriano Diogo: "não iniciou bem o Magnífico Reitor sua participação no esforço nacional de busca da verdade. Anoto também que o longo parecer da Assessoria Jurídica da Universidade, emitido em julho de 95 em resposta ao meu pedido de anulação da demissão (Processo 74.1.17459.1.7), embora recomendasse ao Magnífico Reitor a aceitação do meu pedido, camufla e absolve por trás de uma obscura linguagem jurídica o nefasto papel de coadjuvantes de um crime, desempenhado pela instituição USP nesse episódio, em especial por essa mesma Assessoria Jurídica à época. Não há uma palavra de autocrítica.". A carta pode ser lida nesta ligação: http://ronaldmansur.blogspot.com.br/2013/06/irmao-de-professora-da-usp-desaparecida.html

O professor Comparato discursou de pé, como é de seu feitio, e criticou as classes dominantes: "o sistema jurídico encobre todos os horrores que se passam por trás". Com o fim do "regime empresarial-militar", "a classe política gozou a anistia" pois "queria voltar ao negócio de sempre". Acusou todos os governos civis após a ditadura: "todos os governos deram mão forte aos militares criminosos e viveram de mãos dadas aos grandes empresários". Criticou as recentes afirmações de Lula, sem mencionar seu nome (vê-se que a desilusão ainda é grande), sobre a Constituição. Lembrando da ação do Conselho Federal da OAB contra a lei de anistia (que ele patrocinou) e, em contraste, da decisão contra o Brasil da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), falou de sua proposta, que será apreciada no Conselho Federal da OAB em 26 de novembro, de apresentar nova arguição de descumprimento de preceito fundamental ao Supremo Tribunal Federal. Desta vez, se atacaria o fato de o Estado brasileiro (por meio de seus três Poderes) ter descumprido a sentença internacional. Toda sua fala durou meros oito minutos, porém foi o discurso mais marcante; ao fim, ainda pediu para que as famílias dos mortos e desaparecidos compareçam à distribuição da ação, caso ela seja aprovada pela OAB, e expressou sua "quase veneração" pelos jovens que fizeram escrachos nas residências de torturadores. Trata-se do Levante Popular da Juventude: http://levante.org.br/tag/escrachos/

Lembremos que Comparato foi insultado com a  professora Maria Victoria Benevides pelo jornal Folha de S.Paulo no episódio do editorial "ditabranda".  Ela foi a próxima a falar e afirmou que era "absolutamente intolerável" (qualificação que ratificou mais de uma vez para tratar da atitude da USP no caso) que "até hoje persista a marca da covardia e da indignidade da Congregação do Instituto de Química". Sérgio Massaro havia contado que membros do Instituto teriam ficado "com mágoa" do que Bernardo Kucinski teria inferido e escrito em K. Maria Victoria Benevides não poupou o Instituto e denunciou também a Comissão de Ética, que não teria avançado "um milímetro", e a Comissão da Verdade da USP, presidida por Dalmo Dallari, porque dos trabalhos desse órgão (que ainda não possui regimento) nada se sabia. O assunto deveria entrar em sala de aula "em qualquer área do ensino", seguindo o exemplo de Kucinski, que soube comemorar o Primeiro de Maio, no Instituto de Química, com imagens artísticas do cotidiano do trabalho.
Adriano Diogo, ao fechar os trabalhos, pouco antes das 19 horas, lamentou que, dos três eixos da justiça de transição, verdade, memória e justiça, somente o segundo estivesse sendo realizado, de forma que se deveria rebatizar a Comissão como de Memória, simplesmente. Lembrando do ato que será realizado no Cemitério do Araçá em 2 de novembro em homenagem aos mortos e desaparecidos, acusou o governo de falta de autoridade para determinar a abertura dos arquivos dos "ministérios militares".

No evento, destacava-se a ausência da chamada Comissão da Verdade da USP, que não participou da organização, tampouco da mesa, da Reitoria da instituição, e da direção do Instituto de Química. Logo após o evento, conversei com Renan Quinalha, que me explicou que o espaço onde havia ocorrido a audiência fora obtido por meio do Centro Acadêmico de Química.

Uma aluna que pertencia ao C.A. explicou que o diretor do Instituto havia aparecido no queijinho, mas havia deixado o local cinco minutos antes de os trabalhos começarem.
Essa diminuta ou nula disposição oficial para os trabalhos da justiça de transição e do direito à memória fez-me lembrar do estado do monumento em homenagem aos membros da USP que foram vítimas da ditadura militar. Escrevi em outra nota que "no fim de 2012, a USP fez uma homenagem envergonhada a seus mortos pela repressão, o Monumento em Homenagem à Vítimas da Repressão Política Promovida pela Ditadura Militar (1964-1985), concluído durante as férias, sem inauguração ou discurso".
Lembremos que, originalmente, o monumento referia-se à "revolução de 1964", o que só não ocorreu devido à denúncia da iniciativa negacionista (do caráter ditatorial) da reitoria; a solução, "regime", é neutra e não traduz o autoritarismo do período.

A homenagem envergonhada, no momento quase oculta pela enorme tenda que foi construída perto do anfiteatro, foi pichada, e nela acumularam-se lixo e entulho. Tirei as fotos ao lado em 18 de setembro - e o monumento ainda não completou um ano.
O nome de Ana Rosa Kucinski é um dos primeiros a aparecer na homenagem-quase-ruína. A sua história continua a exemplificar o monumental descaso da Universidade com a justiça de transição.

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