O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Paulo Ferraz, a rua em torno e a poesia sem centro


Ontem, no dia 14, estive na defesa de tese de Fabio Weintraub, O tiro, o freio, o mendigo, o outdoor: representações do espaço urbano na poesia brasileira pós-1990, orientada por Iumna Maria Simon, na FFLCH/USP. Na tese, o poeta e ensaísta discordou desta resenha sobre os dois livros de Paulo Ferraz publicados em 2007.
Como ela não está mais disponível (foi publicada no antigo K Jornal de Crítica, São Paulo, n. 13, junho 2007, p. 7), e houve quem se interessasse em lê-la (e até quem concordasse), achei que talvez não fosse má ideia incluí-la aqui.
Por sinal, em diversos debates sobre poesia a que pude assistir em São Paulo, os livros de Paulo Ferraz estavam no centro. Creio que ele é uma referência importante para os poetas mais jovens desta cidade.


A rua em torno e a poesia sem centro: dois lançamentos de Paulo Ferraz


Simultaneamente, o poeta Paulo Ferraz lançou, em junho de 2007, dois livros: De novo nada e Evidências pedestres (São Paulo: Selo Sebastião Grifo). O primeiro corresponde  a um poema longo; o segundo, a uma coletânea de poesias mais curtas. Apesar de serem estruturalmente diferentes,  parecem pertencer  a um só projeto: uma tentativa de apreensão das experiências urbanas que evoca o soneto "A uma passante" de Baudelaire.
O poema de Baudelaire, central em De novo nada, episódico em Evidências pedestres (por exemplo, “Violão (bossa nova) de rua”, p. 20 a 22; “Veja esta dama”, p. 58 a 59) é muito conhecido: a mulher passa pelo poeta na rua e se vai, fazendo com que ele imagine o amor que poderia ter ocorrido entre ambos – notável exemplo da experiência urbana, segundo Walter Benjamin. Em De novo nada, a mulher multiplica-se em várias figuras femininas. A primeira é a quiromante que diz "Deixa ler sua sorte". Logo após o primeiro verso, o pórtico "SÓ O IMPENSÁVEL É IMPOSSÍVEL".
A imagem feminina também se manifesta em outdoor, em jornais, na balconista suburbana e em referências clássicas, como Antígona (verso 140) e Eurídice (verso 262). Enquanto a quiromante tenta ler a mão, o locutor devaneia a respeito dos assuntos os mais diversos – sociedade de consumo, a mulher, a vanguarda, a língua, a infância – até que, no fim, sem nada entender, ela declara, sentenciosa: "só o impensável é impossível". O locutor fica "sem eira nem beira" e vê alguém dormindo no chão da praça, "trajando/ papel e plástico", com o rosto coberto da imagem da "mulher que estava no outdoor".
Na metamorfose das imagens da mulher, que é a língua e a cidade, Paulo Ferraz não se contenta em repetir a passante baudelairiana e concebe uma atualização consequente e audaz das experiências urbanas. Não se trata de simples paráfrase do poeta francês, ou de uma releitura contemporânea como já fez um poeta como Carlito Azevedo no livro Collapsus linguae (“A uma passante pós-baudelairiana”); trata-se de motivo gerador do discurso poético. O malogro ocorre, contudo, por causa dos problemas de dicção, de intertextualidade e de estrutura mal resolvidos.
A estrutura, em certo sentido, devido à forma da ocorrência de vozes, lembra Eliot (que é destacado na orelha do livro, escrita por Viviana Bosi, e é citado nos versos 300 a 307) e, pela alternância de reminiscência e reflexões, um pouco o “Poema Sujo” de Ferreira Gullar (que é citado nos versos 367 a 369). No entanto, o poeta não consegue disfarçar o caráter episódico da estrutura, com transições gratuitas como a dos versos 296 e 297, e a tentativa forçada de recapitulação a partir do verso 560 – os fios do poema permanecem soltos.
A intertextualidade maníaca, defeito de certa poesia brasileira atual, pesa no lado negativo da balança: Joyce, Drummond, a “Tristeza do Jeca”, Mallarmé e outros surgem muitas vezes de forma gratuita ou ornamental, o que acarreta problemas de dicção – boa parte das diferentes vozes tem um tom sentencioso que soa idêntico e deslocado, mesmo nas falas da quiromante "menos cigana/ que mendiga", embora o problema seja mais frequente nas manifestações em caixa alta – e também de ironias mal resolvidas. Se a referência a "Haroldo, O/ Que Sabe" (a partir do verso 252) é deliciosamente crítica ("Sua Eurídice foi o novo", verso 260), por vezes o poema não consegue ultrapassar o caricatural (versos 219 a 236), o que impede, a meu ver, que as reflexões sobre a arte tenham mais profundidade.
A forma do poema longo acabou por superar o fôlego construtivo do poeta, que se mostra mais feliz nos poemas curtos de Evidências pedestres. Eles, se partem da modernidade inaugurada por Baudelaire (o flâneur), também não se limitam a repetir o modelo oitocentista e logram mostrar-se contemporâneos. Aqui, pode-se ler o mélange adultère de tout – verso do “Epitáfio” de Corbière, que Ferraz cita logo no primeiro poema, cortando porém a palavra adultère, sutilmente legitimando as misturas.
A inspiração em boa parte do livro é plástica: “Basta,/ todavia, ficarmos/ sós para buscar o/ cômodo equilíbrio/ das curvas, o frouxo/ das fibras e, dentes/ à mostra, comermos/ com os cotovelos/ simetricamente/ plantados na mesa.” (“Ainda barrocos”, p. 25) – e o tema da arte é um dos principais, muitas vezes de forma irônica (“Tragédia urbana”, p. 9, “Da utilidade da poesia (e do poeta)”, p. 19, “História literária particular”, p. 40 e 41, o divertido “De uma crítica publicada num suplemento cultural de domingo”, p. 32 a 35) e também de forma séria, como o drummondiano “Canteiro” (p. 18), espécie de Elefante que começa a ser montado a partir do esqueleto, e “Lembra” (p. 36), tributo a Gullar. Poemas líricos de amor e sexo predominam na segunda metade do livro.
Evidências pedestres revela heranças como a de Cabral (“É ou não”, p. 16 e 17, evoca “Dois Parlamentos”) e, às vezes, evoca um Nelson Ascher que não rimasse (“A um salva-vidas amador”, p. 63).
Apesar de esse livro ser formalmente mais bem resolvido, não é o mais interessante: em De novo nada a aposta é mais alta: busca-se fazer um poema sem centro[1], recorrendo a vozes alheias e ao descentramento do sujeito; a técnica do motivo gerador, muito mais frequente em música, também encerra muito interesse.
O descentramento, contudo, ainda não é suficiente, o que atrapalhou a manifestação da alteridade nesta poesia e, por conseguinte, a sua vocação social. Essa vocação é reivindicada também em Evidências pedestres, no entanto, só consegue realmente aparecer em uma agenda negativa, pela ironia contra uma arte alienada ou alienante. Caso interessante dessa ironia ocorre em “De uma crítica publicada num suplemento cultural de domingo”: encena-se a pobreza como obra de arte, providenciada, porém, a “completa assepsia de todos/ logo que se sai da sala” (p. 35).
Deve-se esperar mais de Paulo Ferraz: sob a imagem da mulher do outdoor, fim de De novo nada, nenhum sem-teto ainda consegue despertar.



[1] Dessa forma interpreto o “nada” do título, talvez a contrapelo do autor, que escreveu: “Mas num mundo em que novidades surgem a cada instante (e não raro desistoricizadas, o que não se confunde com o que escrevia acima, pois não adianta pôr cadáveres nas ruas), num mundo em que o que vai por fora (design) é mais importante que o vai dentro (conteúdo), num mundo que cada vez mais se constitui de abstrações, de imagens que não mimetizam o real, de fantasmagorias históricas, de superfícies espelhadas, num mundo em que tudo é comercializável, em que tudo existe para acabar numa tabela de preços, apregoar que a arte é um nada é uma forma de resistência, de lutar com palavras e imagens.” (http://denovonada.zip.net/arch2005-11-20_2005-11-26.html)
 


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