O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Alberto Pimenta: última lição na UNL e o Prêmio Diógenes


Duas notícias sobre Alberto Pimenta, nenhuma delas realmente muito nova, porém ainda oportunas, pois, na obra desse autor, tudo se torna atual: dos antigos egípcios até o (al-) facebook.
No fim de 2007, ele se aposentou na Faculdade de Letras da Universidade Nova de Lisboa, por ter completado setenta anos. Como no Brasil, trata-se da idade da aposentadoria compulsória.
Nessas ocasiões, o professor dá sua "última lição", e foi o que ele fez. Eu nunca vi uma aula de Pimenta, exceto por este vídeo, que ele me havia dado há algum tempo para colocar na internet, e somente há pouco consegui fazê-lo. "Alberto Pimenta: a última lição na UNL" pode ser visto agora nesta ligação.
A aula parte de um poema de António Botto:
Explica-me tu se podes
Num movimento de calma,
Porque razão
Se te beijo num desvairo de prazer
Às vezes sou todo corpo
E às vezes sou todo alma?
Afirma que, há muito, começou a sentir-se o interpelado pelo poema. E começa a fazer uma análise linguística do poema para chegar à conclusão de que isso não o explica, e que Botto, que não era um erudito, já teria apanhado o chapéu e ido embora, já teria percebido que todas aquelas considerações não passavam de "afetações com dois mil e quinhentos anos de idade [...] senis, e que não explicam nada"; pois a poesia tem como função dizer o indizível. Ou, então, seria apenas ele mesmo - Pimenta - que não seria capaz de explicar o poema.
Pimenta afirma, no entanto, que se pode referir à história da dualidade corpo e alma, e começa dos Salmos. A partir disso, ele passa por Lucrécio ("à minha pequena medida, sou exatamente como Lucrécio: tenho horas lúcidas"), Cervantes (especialmente), Dante, Adorno, Sêneca e termina com dois belos poemas de José Maria Fonollosa. Com a desenvoltura dos verdadeiros mestres, Pimenta discorre com a mesma facilidade sobre a literatura clássica e a teoria crítica do século XX.
Faço apenas notar que, no grande livro de ensaios A magia que tira os pecados do mundo, há uma análise detida de outro poema lírico de Botto ("Andava a Lua nos céus"). Nesse capítulo, lemos algo que é rapidamente citado e, na verdade, é pressuposto da última lição na UNL:
A ordem estética do poeta não é deduzida do repertório linguístico mas sim introduzida nele, numa autêntica re-organização de signos, e isto a todos os níveis: fonético, sintáctico, semântico. Os signos despem-se da sua função pré-estabelecida, para vestirem outra função: a estética. A dessemantização que Lessing descobre no discurso poético é um correlato deste processo.
A poética nunca entendeu isso, porque se considerou abusivamente uma extensão da semântica. Por isso nunca entendeu p. ex. que o odi et amo de Catulo não se pode descrever dizendo que é uma antítese, porque isso é um critério pré-estético, é um critério duma lógica que este enunciado justamente quer invalidar. Odi et amo é uma informação estética sobre a insuficiência da língua no tocante à classificação dos sentimentos humanos.

A própria poesia de Pimenta é rica nesse tipo de informação - e mais, julgo, do que a do outro poeta português. Trata-se, ademais, da última aula apenas na Universidade Nova de Lisboa: ele continua a ensinar-nos com seus escritos.
Não por acaso, outra notícia, mais recente, foi a de ele ter ganho o Prêmio Diógenes 2013, atribuído pela Cão Celeste, em virtude de seu último livro de poesia, De nada. Ele o aceitou. É um prêmio dado por poetas e editores comprometidos com esse gênero, e não algo como o prêmio da LER, que Vitor Silva Tavares com razão recusou.
Aqui está o anúncio; o júri, que foi unânime, compôs-se de Luís Miguel Queirós, Rosa Maria Martelo e Rui Caeiro: http://ocaoceleste.blogspot.pt/2013/11/premio-nacional-de-poesia-diogenes-2012.html
Pimenta me enviou o texto de agradecimento, que é um primor. Diógenes, por sinal, é um dos personagens preferidos de sua poesia (e que não lhe deixa de lhe estar próximo em atitude em relação ao poder), e deu as caras ainda no último livro: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/02/alberto-pimenta-e-de-nada-ou-revolucao.html
Depois das páginas de considerações sobre Diógenes, que, imagino, serão logo publicadas (na Cão Celeste, talvez?), Pimenta relativiza os prêmios, inclusive o Nobel. Em seguida, imagina esta resposta, orgânica, aos que se manifestarem, por um motivo ou outro, contra o fato de ele ter aceitado a distinção, e que bem pode se aplicar àqueles que preferem ignorar sua obra:


E agora ... agora estou a antever os blogues: "Pimenta afinal também recebe prémios, não se pode acreditar mesmo em ninguém!" Ou o contrário, que não sei bem o que é. Talvez: " Mas o raio da forma como ele agradeceu! Que é que esperavam?"
César Rendueles, no seu recente livro "Sociofobia" diz que a Internet é um zoo (isto soa-me!), um zoo em ruínas onde se conservam, já muito gastos, os velhos problemas que nos afligem, que nós achamos melhor não encarar de frente... é como os psicofármacos: ninguém confunde o bem-estar que dá o Prozac com uma vida plena, mas ele ajuda a ir aguentando, seja qual for o dano que produz.
Portanto, digo eu agora (com Vergílio, se a memória me não falha), quotquot nautae in gurgite vasto, façam o gosto ao dedo, que outra coisa é utopia.

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