O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 29 de março de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXI: Ditadura e homossexualidade

Segundo a doutrina de segurança nacional, a primeira fase da guerra revolucionária seria a chamada guerra psicológica, que visaria destruir os valores da sociedade, de forma a torná-la indefesa contra o inimigo subversivo.
Dessa forma, a censura dos costumes, que era antiga no Brasil, tinha uma importância política  considerável para a ditadura militar: os valores tradicionais deveriam ser mantidos. As questões morais também eram objeto de controle político, o que inclui a perseguição da homossexualidade.
Já ouvi alguém ligado, de certa forma, à CNV dizer que a perseguição a homossexuais não era política, e sim motivada pelo preconceito. Essa ideia, ela mesma preconceituosa, não faz sentido algum, e, felizmente, a própria Comissão não pensa assim. Neste sábado, no Memorial da Resistência, às 14 horas, haverá uma audiência pública, "Ditadura e homossexualidade no Brasil", organizada pela CNV e pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", conforme a programação abaixo.
Estão disponíveis aos pesquisadores diversos documentos que comprovam essa perseguição aos movimentos sociais, o que inclui os que defendiam os direitos dos homossexuais. Por exemplo, uma das pastas de Ordem Política no DOPS/SP (hoje, no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo, que preserva todos os documentos que aqui cito) tinha como assunto "Homossexuais". Em um dos inquéritos feitos em Brasília que encontrei, a  "pederastia" foi enquadrada entre as formas de violação da segurança nacional: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/07/desarquivando-o-brasil-xxxviii.html
Os movimentos dos homossexuais, bem como o das feministas e dos negros tinham contra si a direita, certamente, e também boa parte da esquerda, na verdade bem conservadora para esses assuntos, com a alegação de que as lutas das minorias era algo menor ou divisionista. Vejam por exemplo, este depoimento de Maria Amélia Teles: ela trata da tortura dela mesma e de sua família, mas também o fato de ter sido expulsa do PCdoB pela direção do partido, que incluía João Amazonas e Aldo Rebelo. Qual era o seu delito político para esses comunistas? Ser feminista! Ela o diz pouco antes dos 59 minutos do vídeo, em que César Teles é o outro entrevistado: https://www.youtube.com/watch?v=OApkFxymEGU
James Green, em seu importante Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX (São Paulo: Unesp. 2000), lembra que a ditadura militar tentou fechar o jornal Lampião (disponível nesta ligação: http://www.grupodignidade.org.br/blog/cedoc/jornal-lampiao-da-esquina/), pioneiro em se dedicar às questões dessas minorias. Em 1979, houve reação dos militantes, da Associação Brasileira de Imprensa, do Sindicato de Jornalistas, e "os militares encerraram a auditoria financeira e retiraram as acusações contra os editores da publicação gay." (p. 434). Depois disso, Green afirma que "o Estado aparentemente deixou de dirigir sua atenção ao movimento após o fracasso em fechar o Lampião" (p. 435).

Nunca estudei especificamente esse tema, porém provavelmente essa suposição de Green não corresponde à verdade. Em 1980, ocorreu o I Encontro Nacional de Homossexuais em São Paulo. Na carta ao lado, do Grupo Somos, de que ele foi um dos fundadores, vemos a articulação para a preparação do evento, que foi acompanhado pelo DOPS/SP, pois ocorreu em São Paulo.







Além de documentos do Somos, temos também um relatório de espionagem feita pelos agentes do DOPS durante o próprio Encontro. Ao lado, vê-se a primeira página desse relatório, com o uma lista dos movimentos organizados. É possível que esses grupos tenham sido alvo de algum controle depois; ainda não fiz, porém, essa pesquisa. Como, mesmo assim, encontrei vários documentos a respeito, creio que muito mais deve existir e virá à tona.

Em São Paulo, os homossexuais continuavam sendo um dos alvos da violência policial, além dos  negros, das travestis e das prostitutas. Vejam, ao lado, uma chamada para o ato contra a violência policial em 13 de junho de 1980, em uma oportuna aliança desses grupos. Esse ano, de fato, é de grande importância na articulação, em São Paulo, das minorias contra a violência oficial.




Esse movimento gerou uma resposta à imprensa do DOPS/SP. Nesta nota interna, não se disfarça a discriminação. Fala-se em "degradação humana (movimento de lesbicas, travestis, etc.)", contrastando com "as famílias que representam a grande maioria, em comparação com 'as minorias oprimidas'".
O uso das aspas não disfarça que se trata realmente de uma orientação política de discriminação do Estado contra minorias.

Abaixo, transcrevo a programação do importante evento deste sábado. Vejam que a audiência contará apenas com nomes que conhecem profundamente o assunto, inclusive James Green, que viveu e militou no Brasil durante a ditadura militar.






Edição especial do Sábado Resistente, realizada em parceria com o Museu da Diversidade Sexual, receberá audiência pública organizada em conjunto pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pela Comissão da Verdade Estadual "Rubens Paiva" da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo para tratar da repressão sofrida pela militância LGBT nos anos de chumbo.
O objetivo da audiência pública é contribuir para uma análise interdisciplinar das relações entre a ditadura brasileira (1964 – 1985) e a homossexualidade. Em especial, pretende-se discutir de que maneiras a ditadura dificultou tanto os modos de vida de gays, lésbicas, travestis e transexuais, quanto a afirmação do movimento LGBT no Brasil durante os anos 1960, 1970 e 1980.
Além de apresentar informações sobre a repressão e violência dirigidas pela ditadura a esses grupos sociais específicos, a audiência também abordará as ações de resistência empreendidas por esses segmentos sociais que, apesar de terem sido alvo de políticas de repressão e de controle social, acabaram se constituindo como atores fundamentais da redemocratização brasileira.
Nesta audiência, pretende-se evidenciar as violações de direitos específicas desses grupos discriminados por conta de orientações, identidades ou práticas sexuais diferentes do que era considerado "normal" segundo os valores morais conservadores que inspiravam a doutrina de segurança nacional. Dessa maneira, será possível conferir visibilidade e o devido reconhecimento para as experiências de vida dos homossexuais e para a atuação do movimento LGBT durante essa época histórica.
Os pesquisadores participantes são autores de artigos que estarão presentes no livro coletivo: "Ditadura e Homossexualidade no Brasil: repressão, resistência e busca da verdade", que será editado por James N. Green e Renan H. Quinalha, e que deve ser lançado até o final do ano. Também participam da obra José Reinaldo de Lima Lopes e Luiz Gonzaga Morando Queiroz.


PROGRAMAÇÃO

Boas vindas
- Marcelo Araújo (Secretário da Cultura do Estado de São Paulo)
- Núcleo de Preservação da Memória Política

Mesa de abertura
- Paulo Sérgio Pinheiro (Diplomata brasileiro, membro da Comissão Nacional da Verdade)
- Adriano Diogo (Deputado estadual, presidente da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva)
- Eloísa de Sousa Arruda (Secretária de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo)
- Marcelo Araújo (Secretário da Cultura do Estado de São Paulo)

Pesquisadores presentes
- James N. Green (Brasilianista, ativista dos direitos LGBT, professor de História da América Latina na Brown University – Rhode Island, Estados Unidos)
- Renan H. Quinalha (Advogado, doutorando na Universidade de São Paulo – USP, membro da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva)
- Jorge Caê Rodrigues (Designer, doutorando na Universidade Federal Fluminense, professor da Universidade do Grande Rio – Unigranrio)
- Rita de Cassia Colaço Rodrigues (Especialista em gênero, orientação sexual e relações de poder, doutoranda em História Social na Universidade Federal Fluminense – UFF)
- Benjamin Cowan (George Mason University – Virginia, Estados Unidos)
- Marisa Fernandes (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP)
- Rafael Freitas (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP)

Os Sábados Resistentes, promovidos pelo Memorial da Resistência de São Paulo e pelo Núcleo de Preservação da Memória Política, são um espaço de discussão entre militantes das causas libertárias, de ontem e de hoje, pesquisadores, estudantes e todos os interessados no debate sobre as lutas contra a repressão, em especial à resistência ao regime civil-militar implantado com o golpe de Estado de 1964. Os Sábados Resistentes têm como objetivo maior o aprofundamento dos conceitos de Liberdade, Igualdade e Democracia, fundamentais ao Ser Humano.


Esta nota faz parte da IX Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR #50anosdogolpe, que ocorrerá de 28 de março a 6 de abril. Sua convocação pode ser lida nesta ligação: http://desarquivandobr.wordpress.com/2014/03/28/ix-blogagem-coletiva-desarquivandobr-50anosdogolpe/

sexta-feira, 28 de março de 2014

Desarquivando o Brasil LXXX: Delfim Neto, ou a política econômica como instrumento de repressão


Em curiosa entrevista dada ao jornal O Globo, "Delfim Neto sobre atuação no regime militar: 'Não tenha nada do que me arrepender'", o ex-ministro exercitou o negacionismo puro e simples, típico dos representantes (sobreviventes) de sua geração que militaram pelo autoritarismo.
Certos militares da reserva, ano passado, divulgaram um comunicado pouco antes do aniversário do golpe, muito preocupados com a apuração dos crimes da última ditadura, tentando negar-lhe seu caráter autoritário.
A entrevista revela o mesmo gesto de negação do caráter ditatorial do regime: dizer de Médici apenas que "todo governo gosta de um pouco de publicidade", em época de feroz censura, de não menos intensa propaganda governamental (o que incluía o louvor às políticas econômicas), em que o governo tinha o poder de manipular as notícias como quisesse, é de uma insensatez ímpar.
Os economistas serão os primeiros a rir da alegação de que não houve manipulação de preços pela gestão de Delfim Neto, e sim apenas uma melhoria posterior do cálculo de inflação.
A afirmação de que nunca houve interferência militar na administração civil também pode ser facilmente desmentida. O próprio desenvolvimento econômico era entendido como uma questão diretamente ligada à segurança, no âmbito da doutrina de segurança nacional.

No Conceito Estratégico Nacional, documento ultrassecreto de 1969, vemos que o desenvolvimento é justamente uma "premissa" da segurança interna: "O desenvolvimento pressupõe a manutenção da ordem e das instituições e a conseqüente criação de uma expectativa de segurança político-social para os investimentos." Governo e investigadores deveriam sentir-se seguros, num "clima de ordem interna e de estabilidade institucional".
Esse documento se encontra no Arquivo Nacional e pdoe ser consultado pela internet, bem como as atas do Conselho de Segurança Nacional, como a desta reunião, ainda anterior ao AI-5 que teve, por sinal, em Delfim Neto um dos signatários.
Longa reunião, que começou em 11 de julho de 1968, na qual se percebe o planejamento para o que haveria no final do ano.

Delfim, em certo momento, cita Lênin: "O caminho mais fácil para destruir a ordem constituída num País é destruir a sua moeda" (não sei qual é a fonte do então Ministro). O sucesso da política econômica, ele sabia, era vital para o regime.
Abaixo, refiro-me a alguns documentos que estão no acervo DEOPS/SP no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).

Os próprios militares viam essa relação profunda entre a administração civil e o êxito da ditadura; Delfim Neto foi explicar a eles seus planos de administração, convidado por coronéis do SNI, notadamente Almerindo Raposo, em cuja casa ocorriam os encontros com a "linha dura".
Costa e Silva, o ditador em plantão, teria ficado irritado, pelo que o gesto tinha de contestação a sua autoridade, e Raposo teria sido exonerado por isso, segundo Boletim do SNI ao lado, de julho de 1967.
A área econômica era vital para o sucesso da ditadura e para sua tentativa de legitimação, que não poderia se dar pela via das liberdades; poderia ocorrer por meio do crescimento econômico?
Esse caminho também era limitado. Há bastante literatura (da época e atual) sobre a questão, lembro do artigo de Luiz Carlos Delorme Prado e Fábio Sá Earp, "O 'milagre' brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973)" (publicado em O Brasil republicano 4: O tempo da ditadura, organizado por Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado), sintetiza os argumentos da época, bem como as teses de Celso Furtado e de Maria da Conceição Tavares de que a "má distribuição de renda era uma característica estrutural do sistema", diferentemente do que Delfim Neto dá a entender hoje. Tal crescimento não seria capaz de superar os problemas estruturais da economia brasileira. Não era mesmo, como bem reconhece Delfim, um "milagre"...

Em um dos exemplos das pressões dos militares na área econômica, Elio Gaspari trata do caso, afirmando que os militares queriam medidas contra o banqueiro Walter Moreira Salles, que havia sido ministro de Goulart durante o parlamentarismo, e Delfim Neto os teria aplacado mandando confiscar os bens dos diretores da Sudan, que seria uma pequena fábrica de cigarros.
O jurista Durval de Noronha Goyos Junior corrige o jornalista, afirmando que se tratou de "uma das maiores injustiças empresariais jamais praticadas em solo brasileiro", e que ela era "detentora de aproximadamente 25% do mercado de cigarros no Brasil e a maior empresa de capital nacional do setor". A prisão por crime de apropriação indébita. Foi a época em que Ives Gandra da Silva Martins foi investigado pela ditadura, pois os seus conselhos jurídicos estavam fazendo empresas como a Sudan recolher menos tributos para o governo...
 
Até mesmo o Estado de S. Paulo, insuspeito de ser acusado de esquerdismo, nessa ocasião da Sudan, afirmou que a Pasta da Fazenda estava sendo ajudada pelo SNI, criticando os privilégios dados pelo governo a certas empresas estrangeiras (tema que dá um livro, até para se explicar com que finalidades e inspirado por que razões os governos  militares favoreceram determinadas multinacionais, o que ocorreu também na Amazônia).
Essa possibilidade de prisão confirma que os poderes de Delfim não eram, de fato, iguais ao que teria um ministro da Fazenda hoje, na democracia formal que temos no Brasil, e que havia uma relação direta de sua pasta com a repressão.

Demonstra-o o relatório ao lado. Vemos, ao lado, os ministros da área econômica, Mário Henrique Simonsen, Karlos Rischbieter e Delfim, em reunião com empresários em São Paulo na sede do Banco Mercantil, em 20 de abril de 1979. Estavam lá o Unibanco, o Bradesco, Cia. Interamericana de Seguros, o Grupo Klabin, José Ermírio de Moraes, Júlio Mesquita Neto, Paulo Vilares e Gastão Vidigal.
Os ministros estavam preocupados com a situação econômica, mais do que os próprios homens de negócio. No entanto, a questão maior, a que foi discutida, era a repressão aos trabalhadores: "Os temas mais debatidos nesse encontro foi o das greves ilegais deixando bem claro a necessidade do restabelecimento do princípio de autoridade."
De fato, é um momento de ressurgimento do sindicalismo e de greves - em que um futuro presidente, Lula, despontaria.
O relatório não explica o que foi acordado a respeito. Como a compressão salarial era necessária para o tipo de política econômica que se fazia, a repressão aos trabalhadores e aos sindicatos havia se tornado em uma condição sine qua non não só para a manutenção política do governo, mas para seu êxito econômico.

Tal era o momento de Abertura. Voltemos no tempo: com o Congresso posto em recesso à força por meio do AI-5, vemos, no Boletim de SNI ao lado, o Ministro da Fazenda escolhendo o secretário de Fazenda para o Estado de São Paulo, passando por cima do princípio federal (inobstante sua previsão constitucional), no exercício dos poderes plenamente arbitrários da ditadura. Um ministro de um regime democrático, em uma federação, jamais poderia fazê-lo: teria que respeitar a autonomia dos Estados.




Como mais um exemplo das interferências militares na administração civil, lembremos que era inegável que muitos militares não apreciavam o Ministro e pressionavam para que fosse exonerado ou até mesmo preso. O Relatório ao lado é claramente partidário na questão, e afirma que Figueiredo não tinha vontade de tê-lo na sua equipe - mas sabemos que o último general-presidente acabou o nomeando. Além disso, segundo o documento ("Costa e Silva impediu Médici de prender Delfim"), Delfim Neto esteve para ser preso no governo Costa e Silva por atos de corrupção, que teriam sido descobertos pelo SNI, chefiado então por Médici. A prisão, alega-se, apenas não teria ocorrido em razão da má propaganda que geraria ao governo, e dos contatos de Delfim com "o mundo financeiro no exterior".
Médici, numa reunião da qual participava, entre outros, o general Rodrigo Otávio Jordão Ramos, afirmou enfaticamente: "No meu governo, Delfim e Mário Andreazza não tomarão parte".
Como todos sabem, ambos foram dos mais fortes ministros do governo Médici. Numa demonstração da existência de poderes mais fortes que o do presidente da República.
Tais militares, claro, não tiveram êxito nessa cruzada contra o então ministro, que acabou melancolicamente sua gestão nos tempos de Figueiredo com inflação em alta, dívida externa multiplicada e crescimento reduzido: após os choques do petróleo, haviam desaparecido as condições internacionais que favoreceram o alto crescimento dos anos anteriores.
Delfim Neto, certamente, é uma das figuras que mais tem a contar sobre a ditadura militar (e muito sobre a plutocracia de hoje, aposto). Pena que não o fará. Podemos esperar uma abertura republicana de seus papéis após sua morte?

P.S.: Esta nota faz parte da IX Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR #50anosdogolpe, que ocorrerá de 28 de março a 6 de abril. Sua convocação pode ser lida nesta ligação: http://desarquivandobr.wordpress.com/2014/03/28/ix-blogagem-coletiva-desarquivandobr-50anosdogolpe/

domingo, 23 de março de 2014

Tudo o que não presta, medicina legal, os índios


O deputado federal Luis Carlos Heinze (PP/RS) ganhou recentemente um prêmio de racista do ano pela organização Survival, de defesa dos povos indígenas. A “distinção” ocorreu em virtude de discursos proferidos em 2013, descobertos no início de 2014.
O primeiro ocorreu em 29 de novembro. Em audiência pública da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados no município de Vicente Dutra (RS), com o tema da demarcação de terras indígenas, o parlamentar atacou, diante de seu público de produtores rurais, o Secretário-geral da Presidência: “O Gilberto Carvalho também é ministro da presidenta Dilma. É ali que estão aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas. Tudo o que não presta ali está aninhado, e eles têm a direção e o comando do governo”. Outro deputado, Alceu Moreira (PMDB/RS), também aparece no vídeo, vituperando as demarcações de terras indígenas. Segundo a Constituição, deveriam ter sido realizadas até 1993, mas o parlamentar, em conflito evidente com a lógica e a linha cronológica, acha que estão sendo feitas “de repente”.
Em razão do “leilão da resistência”, que tinha como plano financiar as ações anti-indígenas dos ruralistas, Heinze voltou a discursar contra as minorias. Era 7 de dezembro, em Campo Grande (MS). O deputado novamente criticou Gilberto Carvalho e o governo de Dilma Rousseff:
Tem no Palácio do Planalto um ministro da presidenta Dilma, chamado Gilberto Carvalho, que aninha no seu gabinete índios, negros, sem terra, gays, lésbicas. A família não existe no gabinete deste senhor. Esse é o governo da presidenta Dilma. Não esperem que essa gente vá resolver nosso problema [aplausos]
Imagino que houve diversos discursos semelhantes, mas somente esses vieram à tona. Um dos pontos de insensatez, que provavelmente deve ser o que os tornam mais convincentes para o público conivente, é a ideia de que tais minorias estão sendo realmente atendidas, como se este governo federal fosse, de fato, pró-indígena... Talvez ele não seja suficientemente contrário aos índios, para tais pessoas, que provavelmente desejam ações mais radicais.
Em 27 de fevereiro deste ano, foi protocolada, por lideranças indígenas e quilombolas, bem como por indigenistas e outras organizações da sociedade civil, uma representação na Procuradoria-Geral da República contra Heinze e Moreira.
Há tantos pontos interessantes nesse desnudamento do perfil essencialmente contrário aos direitos humanos desse ruralismo brasileiro. Heinze afirmou, depois de ser flagrado, que se “excedeu” no discurso, mas é interessante ressaltar os elementos de sua lista de “tudo que não presta” (“tudo”, e não todos; não podemos dizer que ele homenageia a dignidade dessas pessoas). O que une quilombolas, índios, gays, lésbicas, negros, sem terra? Tratar-se-ia de uma lista arbitrária como a que Borges menciona em O idioma analíticode John Wilkins? Certamente que não, pois deixa de provocar o riso. E não é arbitrária: há, em certo sentido, um espaço comum onde se encontram os enumerados (lembro agora de Foucault). Todos os sujeitos invocados são o outro em relação a poderes que têm classe social, gênero e raça.
Já escrevi neste blogue ("Sexualidades que sedesviam da direita: Bolsonaro e a medicina legal"), a propósito de um deputado federal do Rio de Janeiro que, historicamente, o ensino jurídico, no Brasil, foi racista e homofóbico, doutrinando que a preferência por relações sexuais entre pessoas de etnias diferentes (chamadas, significativamente, de cromoinversão e etnoinversão), como também pelas relações entre pessoas de mesmo sexo, eram perversões.
Provavelmente o mesmo problema pode ser encontrado na história do ensino de medicina, mas não tenho elementos para afirmá-lo.
Citei o manual de medicina legal de Hélio Gomes, da edição de 1992, que explica uma das consequências terríveis que a cromoinversão geraria:
Há casais cromo-invertidos, casados há muitos anos, com filhos de epiderme diversa assim como o tipo de cabelo, analisado em sua qualidade. Esses filhos podem se constituir numa constante preocupação, pois os pais temem que a diferença de cor dos filhos tenha conseqüências graves no futuro.
A homossexualidade possuiria causas igualmente terríveis:

Perturbações e deficiências mentais, histerismo, esquizofrenia, senilidade, epilepsia, personalidade psicopática, debilidade mental, etc. A anomalia sexual é uma conseqüência, um sintoma das perturbações psíquicas.
Lembrei dos antecedentes em Nina Rodrigues. Mas tais ideias não se extinguiram de todo, infelizmente. Leiamos sobre os “transtornos de personalidade”, segundo o livro Medicina Legal de Celso Luiz Martins (5a ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2012 p. 123), que incluem tanto homossexualismo quanto a cromoinversão ("atração erótica de certas pessoas por outras de cor diferente") e a etnoinversão ("manifestação erótica por pessoas de raças diferentes").
Para não me acusarem de apontar apenas publicações do Sudeste, que seria uma região mais reacionária, lembro desta obra de professores da Universidade Federal de Alagoas, Gerson Odilon Pereira, e Luís Carlos Buarque Gusmão, Medicina LegalEntre as anomalias sexuais, estão as “inversões”, que são as relações entre pessoas do mesmo sexo, como as de raças diferentes e as de cores diferentes. Creio que Gobineau, um dos teóricos do racismo “científico” do século XIX, encontraria o que reconhecer neste livro.
Tal ex-embaixador da França no Brasil foi um dos autores que influenciaram o ditador alemão que transformou câmaras de gás em política pública. Por essa razão, destaco este exemplo de objetividade científica do livro dos professores da UFAL:
A e B homossexuais assumidos, ambos trancam-se numa sala para cometer suicídio e B, abre a torneira de gás.a - B sobrevive e A morre. Homicídiob– B morre e A sobrevive. Induzimento ao suicídio
Essas coisas são estudadas por quem deseja passar em certos concursos públicos. Deixo para outros pesquisarem as provas, que devem mostrar como essas coisas são perguntadas, em que os postulantes a cargos do Estado brasileiro devem mostrar que sabem o que o poder público deseja fazer. No submundo didático das apostilas de concurso, tais lições racistas e homofóbicas perduram, pelo que pude ver na internet.
Aqueles dois preconceitos por vezes se amalgamam ainda mais intensamente. Certa delegada de polícia em São Paulo cria uma grande categoria, “inversão ou homossexualismo”, na qual aparecem tanto práticas homossexuais quanto a cromoinversão (“prazer sexual com pessoas de outra cor”) e a etnoinversão (“prazer sexual com pessoas de outra raça”).
Escrevi acima que a lista de Heinze não era arbitrária, pois as categorias enumeradas eram o outro em relação a poderes burgueses, brancos, patriarcais. E que havia um espaço comum a elas, em certo sentido, em sua posição na relação subordinada com aqueles poderes.

No entanto, um espaço comum entre essas minorias, entendido como possibilidade de articulação e ação conjunta, é algo que ainda deve ser construído, e essa deveria ser a tarefa mais importante de uma política de esquerda.


P.S.: Ainda não tratei disto no blogue, mas estou entre vários que participam de uma mobilização nacional em prol dos direitos e terras indígenas: Índio é nós. Entre os participantes, estão vários nomes e instituições notáveis, como Manuela Carneiro da Cunha, Eduardo Viveiros de Castro, Deborah Duprat, José Celso Martinez Corrêa, Gilberto Gil, Alfredo Bosi, o CTI, o ISA, o IPMDS, a AJD e vários outros: http://www.indio-eh-nos.eco.br/apresentacao/. 
Trata-se de nomes de diferentes campos e regiões. Creio que a campanha deverá gerar espaços comuns, em que índios e não índios possam se articular contra a política e o Estado que figuras como Heinze perpetram.

Acima, vê-se a marca criada por André Vallias e Age de Carvalho.


terça-feira, 11 de março de 2014

Homenagem a Donizete Galvão, 11 de março, na Casa das Rosas



Homenagem ao poeta Donizete Galvão, falecido inesperadamente no início deste ano, na Casa das Rosas, neste 11 de março, às 19h30. Poetas e amigos lerão os poemas dele.


domingo, 9 de março de 2014

"São lixeiros ou vândalos?"

Pensei em várias coisas, mas queria dedicar isto para Renata.







I

São lixeiros ou vândalos? Pergunta
a bomba de gás ao braço fardado, e ouve
estão parados quando deveriam movimentar-se,
violam a lei geral da ação,
sinal de que não querem mais pertencer
ao mundo dos seres animados.

São lixeiros ou terroristas? Indaga
o líder sindical ao moedeiro patronal, e ouve
gritam quando deveriam calar-se
e a palavra explode sobre a ordem,
ou talvez incendeie as cédulas
e eles alimentem-se das cinzas.

São vândalos ou terroristas, afirma
o jornalista aos anunciantes, grita
agitam-se nas ruas quando deveriam se acalmar
para limpar as ruas do lixo ruidoso
deixado pelo incêndio que fala
há uma lei geral que são as praças.


II

Levantam o cartaz: não somos
lixo, mas, se o fôssemos,
contaminaríamos as ruas
e nada em teu corpo e em tua ordem
sobreviveria à infecção.


III

vi o mar vi o
rio mas era
somente o lixo
que estava limpo
pois nada nele
era querido
pelo poder

vi o mar vi o
rio mas era
somente o grito
a gerar ondas
sem ser ouvido
não eram hinos
para o poder

vi o mar vi o
rio nadei
em outro líquido
onde naufraga
quem se embriaga
do sangue tinto
pelo poder

vi o mar vi o
rio banhei-me
porém no abismo
ele transborda
do que é digno
já que aos cimos
foge o poder


IV

Nada de estimular este trabalho;
insalubre demais, paga tão pouco.
Gritas por salário, ele soa rouco.
Nada de incentivo ao que era de escravos.

Nós te pagamos entre o nulo e o menos
porque força é mudares de vida,
ficarias nesta função ainda
caso este labor rendesse dinheiro.

Ao escultor e ao faxineiro o bronze
não se molda igualmente lucrativo.
Salário, pois, não deve ser o motivo
para que cruzes os braços logo hoje.

Para teu bem, toma a vassoura e te ergue.
Empreendedores não fazem greve.


V

Não vês a cidade porque soterrada por plástico
e outros derivados,
porém vês a cidade pois avistas o lixo e,
mais do que isso,
não precisas abrir os olhos,
basta respirar
para saber que a cidade revela-se em seus sucedâneos da terra.

– Veja a foto dos garis na praça; não há nenhum branco.
– Ótimo, mais um argumento para eu dizer na tevê que a greve é criminosa.

Atividade inumerável nas ruas,
mas uma greve
é o que basta para revelar a cidade.
Isto que se impõe aos sentidos
e até aos olhos cerrados.

A greve ensina ciência política
(latas explodindo bueiros)
(bueiros amamentando ratos)
(ratos mas onde é a matéria
reinam as bactérias
que devolvem a cidade a ela mesma
fazem tudo retornar a si mesmo
como o prefeito aos protozoários)

– Vândalos picharam o muro da prefeitura, que ainda não foi limpo pelos lixeiros que voltaram da greve e tiveram suas reivindicações atendidas; agora, notícias sobre terrorismo.

A greve ensina ciência política
(vírus gigantes despertados pela fumaça
da fricção entre industriais e ministros)
ou que é o lixo
que está no poder

sexta-feira, 7 de março de 2014

Leopoldo María Panero, o ninho do nada

Morreu ontem um dos maiores poetas contemporâneos, Leopoldo María Panero (1948-2014). Um de meus preferidos de todos os tempos, de uma forma que nunca me permitiu escrever nada sobre ele. Não conseguirei fazê-lo agora, mas darei o testemunho da minha mudez de leitor.
Não falarei de sua vida, atribulada e conhecida. Todos sabem que seu pai (Leopoldo Panero) aderiu ao regime, mas ele mesmo se tornou antifranquista e foi preso por isso e por consumo de tóxicos. Diagnosticado como esquizofrênico, passou mais da metade da vida internado em instituições psiquiátricas. Sua biografia, que inclui a bissexualidade, convidaria a lê-lo como "poeta maldito". Sua poesia, que afronta os valores convencionais, autoriza essa leitura.
Gosto da obra de seu pai e da de seu irmão Juan Luis Panero (ambos já mortos; o tio, Juan, nunca o li), mas ele sempre foi meu preferido na família pela carga de delírio que sua poesia conseguia conter, alargando as fronteiras da inteligibilidade, ou simplesmente desfazendo-a, e nesse desfazimento encontrando seu sentido.
Nisso, pode-se encontrar algum paralelo com Artaud (que ele conhecia bem e citava), além da questão biográfica de ambos terem sido pacientes psiquiátricos. Mas, de resto, são muito diferentes, os temas são dissemelhantes. Não vou mencionar as notas no Estado de S.Paulo e na Folha de S.Paulo, que não dão nem de longe a ideia da grandeza do poeta. É melhor ler a matéria que Luís Miguel Queirós fez para o português O Público.
Portugal também está muito melhor do que nós em termos de tradução de sua poesia. Confirmo agora no sistema de Biblioteca Nacional que não temos nenhum de seus vários livros, tampouco uma antologia a ele dedicada (se eu estiver errado, por favor corrijam nos comentários - ver nota).


De Gólem (Barcelona: Ediciones Igitur, 2008)

Vitória pálida do papel em ruínas
What then? sang Plato's ghost, what then?*
urinar sobre a ruína
vestir-se com pano para ir ao mercado
urinando uma vez mais
sobre o pescado
onde a têmpora grita como um veado
cagando na sombra
e gritando para o Nada
e gritando para o Nada na sombra
e errando pela página
como por um bosque
como pelo bosque cálido do Nada
e o morno da morte
em que um tigre caça pássaros sobre o vazio
com um revólver.

* William Butler Yeats



De Esphera (Buenos Aires: el ángel caído, 2008)

Imitando um homem

Oh, a bunda da voz
Electroshock que destrói meus dentes
Dentadura do silêncio na flor do nada
Homem que está feito do puro nada
Espuma que cai da minha boca
Semelhante a um homem
De mãos trementes e de turvo olhar.



De Mi lengua mata (Madrid: Arena Libros, 2008)

III

Perdido para sempre no ar da maldição
Na porta que range na casa abandonada
Movida somente pelo desabitado do grito
Pelo desabitado da alma que não povoa ninguém
Vendida ao inferno do poema, ao inferno do grito
Oh lágrima do poema e tremor do Universo
Porque o mundo é só uma sombra no ácido do grito
Oh tu, LSD, espírito do grito.



De Reflexión (Madrid: Ediciones Casus-Belli, 2010)

XLII

Rei da ruína sou
Nome oculto do desastre
Esperança na privada
Moscas voando em torno do papel
"moscas, moscas sobre o plátano nas ruas"
Lowell disse
Amparando-se no catolicismo da ruína
Piscando o olho para o desastre
Que assoma sem lábios sobre o papel
E morde.


É curioso como as citações aparecem; são mais conversações do que o que se faz normalmente como intertexto.
Escolhi poemas de livros recentes, onde são comuns as repetições, os paralelismos, as anáforas, que contrastam com um pensamento que não é linear e parece que vai se extraviar a cada momento. Tal sensação perturbadora fazia com que este poeta pudesse dizer, sem pose, sem afetação alguma:

Estou acostumado a falar do nada
E falar e falar do nada
Como o pássaro de seu ninho.

É um trecho de Esphera. Agora, que ele não está mais entre nós, talvez sejamos quem esteja, de fato, no nada, mas calados, sufocados no próprio ninho. Afinal, como lemos em Mi lengua mata: "Viver é um trabalho mal pago".


Nota: Li em outro lugar que Heitor Ferraz Mello lembrou que, certa vez, a antiga revista Inimigo Rumor circulou tendo como encarte Conversações deste Panero. Fui verificar, é o número 15 da revista: http://editora.cosacnaify.com.br/Loja/PaginaLivro/10730/Inimigo-Rumor-15---revista-de-poesia.aspx