O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A polícia invadindo debates, debatedores que se evadem da polícia

O tema da violência policial e o da repressão política mantém-se na ordem do dia, e não sairá dela tão cedo, por conta da Copa do Mundo e das eleições. Sobre isso, falei no Vandaleando, "Criminalização dos protestos", no último 11 de março, com a internacionalista Deisy Ventura e os organizadores Pedro Moraes e João Rafael. Mencionei o Derecho a la protesta, livro do constitucionalista argentino Roberto Gargarella. Ao que falei nessa ocasião, devo acrescentar que a OAB-SP felizmente desautorizou os seus membros que tentaram atrapalhar os Advogados Ativistas.
No dia 27 de março, fui falar sobre tema semelhante em debate promovido pelo Comitê Popular da Copa e pelo Comitê pela Desmilitarização da Polícia e da Política, no Espaço Latino-Americano (ECLA). A Mídia Negra transmitiu e gravou o evento; pouco antes dos 24 minutos, começa a tentativa de policiais militares de invadirem o evento. Falava, nesse momento, a advogada e mestranda em Ciências Sociais Juliana Britto, que fazia um panorama das leis e projetos de repressão.
A Agência Pública fez uma nota sobre o ocorrido no facebook, mas vocês mesmos podem ver aos quatro minutos e meio desta parte do vídeo: http://twitcasting.tv/midianegra/movie/49579464
Os policiais, pois, vieram involuntariamente corroborar a análise que estava sendo exposta...
Que a polícia tenha tentado interromper um debate porque supostamente ele seria "uma atividade política", ou um "evento contra a polícia", segundo o que disseram, é um dos sinais do desacerto de análises como a do professor Samuel Rodrigues Barbosa, da faculdade de Direito da USP, em resposta a um artigo provocador de Vladimir Safatle, da FFLCH/USP, "A ditadura venceu". O professor de filosofia e colunista da Folha constatou continuidades da ditadura, não só no tocante à memória coletiva, mas na permanência até de nomes como Sarney e Delfim, além de atitudes de empresas como o Itaú.
Samuel Barbosa reduz o debate à dimensão da memória e lê muito literalmente o artifício retórico de Safatle, que não é sinal de "bloqueio" ou, como quis outro autor, na revista Baderna, "capitulação".
Idelber Avelar logo apontou diversos problemas do texto desse professor de Direito; um deles é o de que não está realmente acompanhando os jornais.
Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo publicaram recentemente editoriais em que se negaram até mesmo a fazer o mea culpa de O Globo. Não só publicaram editoriais comprometidos com a herança de 1964, como deram abrigo às vozes dos nonagenários e de seus seguidores mais jovens. Por que deram tanto espaço a passeatas de três, nove, vinte pessoas, como foram as tentativas farsescas de repetir as marchas pela família (exceto no Rio e, principalmente, em São Paulo, onde houve mais gente, contanto nada que se comparasse às marchas da maconha - para não falar as LBGT)?
Acrescento que é curioso que Samuel Rodrigues Barbosa mencionasse as Jornadas de Junho sem a lembrança de que nenhum policial foi punido, até agora, pela violência usada contra os direitos democráticos de manifestação e expressão. Para o Estado brasileiro, pelo que parecem demonstrar os projetos legislativos sobre terrorismo, o escândalo não é a violência e a repressão política em tempos de democracia formal, e sim que o povo vá as ruas, se manifeste. A materialização da democracia, pois, é o verdadeiro motivo de terror para as autoridades, e os projetos novos de repressão, em um país que afirma não ter terroristas, mal conseguem esconder seu verdadeiro alvo: os movimentos sociais e os manifestantes, mesmo não organizados em torno de uma bandeira única, mesmo sem pertencer a entidades específicas, como foi o caso de boa parte das passeatas do ano passado.
Outra deficiência do texto do professor Samuel Rodrigues Barbosa está no campo jurídico: Idelber Avelar bem lembra da lei de anistia, monstrengo jurídico que é só um dos elementos do entulho autoritário que resta da ditadura: "A ditadura militar cometeu crimes de lesa-humanidade que não foram sequer julgados, que dirá condenados, e o Prof. Barbosa quer nos convencer que ela foi derrotada porque o Estado brasileiro pagou indenizações!"
Escrevi em mais de um texto como o julgamento da ADPF 153, em que o STF considerou que a lei de anistia (que teria sido "constitucionalidade" pela emenda 26 de 1985) era superior à Constituição de 1988, foi uma negação da transição democrática. Em um texto no número 30 do  Sopro, que tem a vantagem de ser mais breve do que os outros que escrevi, afirmei que "A posição do STF, de que a emenda da Constituição da ditadura militar é superior à Constituição da democracia, significa, politicamente, que não houve justiça de transição porque a transição jamais ocorreu: as normas superiores continuam a ser, segundo o Supremo Tribunal Federal, aquelas emanadas pelo velho poder autoritário oriundo do golpe de 1964."

Escrevi acima que Samuel Rodrigues Barbosa errava em reduzir o debate à questão da memória. Idelber Avelar apontou esse mesmo problema e não deixou de lembrar das práticas autoritárias de hoje, contra os moradores de favelas e contra os povos indígenas. Egydio Schwade é um dos que apontam a permanência de moldes da ditadura na política indigenista de hoje.
Eu gostaria de acrescentar que uma mesma nova norma antiga faz o papel de fundamento jurídico nos dois casos: a Portaria do Ministério da Defesa da Garantia de Lei e Ordem, sobre que falei no Vandaleando e no debate que policiais tentaram interromper. Na minha fala, gravada pela Mídia Negra (http://twitcasting.tv/midianegra/movie/49574216), explico a identidade da Portaria de 2013 (revogada em 2014) com a doutrina de segurança nacional: também temos nisso uma continuidade da ditadura!
Meu amigo Murilo Duarte Costa Corrêa escreveu um belo texto, "Cinquenta anos depois", incluído na IX Blogagem Coletiva DesarquivandoBR (que segue até 6 de abril), sobre a recente morte de Cláudia da Silva Ferreira, tratada acintosamente pela polícia e por sua porta-voz, a grande mídia, que a chamava de "arrastada": "É preciso dizê-lo sem temor, e jamais como signo de nossa impotência, mas da consciência de nossa tarefa política por vir: a ditadura militar brasileira matou Cláudia Silva Ferreira 50 anos depois."
Creio que Safatle não escreveu aquele texto com outro propósito. A constatação da continuidade não é uma confissão de impotência, e sim uma necessária demarcação de nossa tarefa política. É o que tenho tentado fazer com meus limitados meios, principalmente nos textos relacionados à justiça de transição.
Crer, por exemplo, que a polícia dos EUA mata menos do que a do Brasil, ou que essa questão não importa para a democracia, é não ter a mínima ideia do que está em jogo. Não ver nada de alarmante na Lei Geral de Copa, uma lei de caráter evidentemente autoritário e inconstitucional, como lembrou, entre outros, Alexandre Morais da Rosa, é estar fora do jogo. Ou querer dele evadir-se, enquanto as forças de repressão cercam o campo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário