O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 31 de maio de 2014

"Eu seria uma pessoa feliz/ se visse meu sangue com menos frequência?"

Para Adriano


Eu seria uma pessoa feliz 
se visse meu sangue com menos frequência?, perguntou
o tradutor, e enxugou o papel;
a tradução continuou úmida.
ela olhou para a chuva: 'é meu sangue. Mas não queria molhar as pessoas na rua', acrescentou triste.
Não sei se a felicidade
sangra mais do que eu, ponderou
o tradutor e mutilou o papel,
mas os versos se mantiveram secos.
ela contemplou a chuva: 'são minhas veias. Não queria com pessoas afogar as ruas', calou-se melancólica.
Existe a felicidade e existe o sangue,
não sei quem irriga quem, o tradutor
murmurou e começou a vasculhar com a faca
as diferenças entre o corpo e os versos.
ela ignorava a chuva: 'não chegou a menstruação. Devo estar grávida da cidade e de outros animais', cuspiu sonolenta.
As cicatrizes certamente
são mais felizes do que eu, calou
o tradutor, enquanto se enforcava
para que os versos pendidos secassem ao vento.
ela cegou a chuva: 'é meu coração. A cidade é um infarto cheio de animais carnívoros', gritou com fome.
O vento traduziu a forca
em versos e outras
precipitações atmosféricas.

A chuva, como traduzi-la?
O tradutor poderia sabê-lo, embora
sangrasse? Embora
estivesse úmido da felicidade e dos outros animais?

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXIV: Zé Celso, o RoboGolpe, a RoboCopa

Em abril, mês dos cinquenta anos do golpe de 1964, houve diversos eventos e atos sobre a efeméride. Vi apenas dois que me pareceram lamentáveis: o primeiro, palestra de um professor de filosofia de uma faculdade do interior de São Paulo que achava que Ministros do STF haviam sido cassados em 1964, que não sabia quando havia ocorrido o AI-5, e que pensava que na República de Platão tínhamos um grande modelo da nossa democracia.
Vi um Ministro do STF, Toffoli, em uma hora e quarenta minutos, gastar menos de cinco minutos com o tema da palestra e do seminário em que ela ocorria, que era o da ditadura militar, para explicar que não poderia julgar (tendo em vista a ética da magistratura!) se havia ocorrido um golpe ou uma "revolução" (tal é sua concepção de trabalho intelectual: uma função do poder político!), e que não abordaria o período porque certamente no seminário já se havia muito ouvido a respeito...
Pude assistir, no entanto, a eventos bem interessantes, o que mostra que ocorre de fato uma construção social da justiça de transição. Em termos artísticos, o que presenciei de mais impressionante, de longe, foi a peça Walmor y Cacilda 64 - O RoboGolpe, de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, no Teatro Oficina. O espetáculo tem pouco mais de duas horas e meia (curto para os padrões do Oficina) e ficará em cartaz até 29 de junho: http://www.teatroficina.com.br/menus/45/posts/791
Várias apresentações estão disponíveis no canal da companhia. No entanto, nada se compara a experimentar o Oficina ao vivo dentro do seu próprio teatro, dançar e cantar com os artistas, e participar da celebração final. 
A peça, depois da recepção do público com música indígena (o que faz todo sentido nessa abordagem antropofágica da história brasileira, e aponta para o final da peça), inicia-se com os últimos dias de Getúlio Vargas. A tradicional família brasileira aparece, bem como o embaixador dos EUA, a FIESP e outros agentes do golpe, na conspiração contra João Goulart. Temos um desfile carnavalesco-antropofágico da história brasileira, até que irrompe o RoboGolpe, simultaneamente engraçado e terrível.
A apresentação, como ocorre no Oficina, inclui música, vídeo, poesia e dança, bem como diversas alusões ao teatro, especialmente Tennessee Williams (a iguana desse autor é personificada na peça) e, em razão do monólogo final de A Tempestade, Shakespeare. Zé Celso, no poema primal que apresenta perto do fim da peça, recusa a renúncia da magia, feita pelo personagem da última peça de Shakespeare, e decide unir Próspero a Eros.

A peça não tem como foco o Teatro Oficina dos anos 1960, embora ele (parte essencial da história do teatro brasileiro) seja nela referido; como se sabe, foi um dos grupos mais perseguidos pela ditadura militar, e Zé Celso teve que sair do Brasil. O centro é, novamente, Cacilda Becker (interpretada por Sylvia Prado), desta vez na sua forte atuação de resistência contra a ditadura que se iniciava.
A cena fulcral da peça é a ida da atriz com sua colega Maria Della Costa (por Juliane Elting) ao DOPS, comandado pelo Delegado Bonchristiano (há nomes que são destino - vejam esta entrevista que o torturador deu para a Agência Pública; interpreta-o Acauã Sol), para prestar declarações, pois Cleyde Iáconis (personagem de Letícia Coura) estava lá presa.
Essa militância teatral contra a repressão política, que se dirigia contra as ideias, os livros, as peças - era tipificada oficialmente como parte do que se convencionou chamar, na doutrina de segurança nacional, de guerra psicológica, isto é, de ações contra a ideologia e os valores do regime político.
Pode-se notar que o arrazoado autoritário não mudou tanto assim, da ditadura para cá. A Federação Anarquista Gaúcha, em 2013, foi invadida pela polícia e teve livros apreendidos. Há pouco, ativistas foram presos em Goiânia, numa antecipação do que se prepara para a Copa; eles tinham panfletos contra a Copa, o que comprovaria o que o juiz Oscar de Oliveira Sá Neto escreveu sobre "poder e ascensão intelectual dos incitadores de práticas criminosas sobre os participantes de movimentos de reivindicação, ou seja, a hierarquia dos autores intelectuais". A criminalização dos movimentos sociais passa, em geral, pela criminalização da inteligência.
Essa criminalização atinge a arte, mais diretamente a arte com propósitos críticos ou emancipatórios, o que sempre foi o caso do Teatro Oficina. Nessa outra época de perseguição aos movimentos sociais, a da ditadura militar, lembro de uma das prisões de Zé Celso, em 1974.
Ele estava trabalhando para finalizar o filme O Rei da Vela, a partir da peça de Oswald de Andrade, que ele havia montado pioneiramente em 1967. Essa prisão interrompeu os trabalhos e ele acabou indo para Portugal e ficou do país, executando vários projetos (inclusive um filme sobre a independência de Moçambique para a RTP, que tenho curiosidade de ver) até 1978.
O curioso e sucinto "relatório" assinado pelo delegado Magnotti em primeiro de julho de 1974, nos autos do inquérito contra o diretor de teatro e dramaturgo, a autoridade coatora é bem clara sobre a arbitrariedade cometida.  Mantenho os erros de concordância e de pontuação do original:
A prisão do indiciado ocorreu em virtude de ter sido encontrado em sua residência, livros que fazem apologia do comunismo, livros esse estrangeiros e que deram entrada no país através do próprio indiciado.

Essa prisão de 1974 foi logo noticiada, o que gerou clamor que ultrapassou a chamada "classe teatral" e causou a irritação das autoridades policiais, que preferiam trabalhar na obscuridade, ambiente mais propício para a ilegalidade.
Veja-se, no documento ao lado, a insatisfação daquele mesmo delegado com a notícia da prisão. A publicidade sempre atrapalhava as práticas ilegais e oficializadas de tortura e desaparecimentos forçados, ou seja, o que é caracterizado no eufemismo "os serviços de investigação de interesse da segurança nacional".
Voltando à peça, sem nunca ter saído de seu assunto, destaco a total pertinência em RoboGolpe de representar carnavalescamente o golpe por uma máquina policial. O governo do Estado do Rio de Janeiro, assumindo o  seu ridículo autoritário, de fato robocopizou sua polícia: https://twitter.com/elizondogabriel/status/468807263940255744
Essa é a RoboCopa, marca dos dias de hoje, em que até palavras cotidianas da língua viraram propriedade intelectual da FIFA.
No passado recente, na época do RoboGolpe, a cultura era uma das matérias preferidas da polícia. Na peça, temos um antológico confronto dos personagens de Cacilda Becker e Maria Della Costa com o delegado, no fim do qual elas obtêm a abertura dos teatros.
Mateus Araújo, em crítica da peça, destaca que ela faz referência aos protestos contra a Copa do Mundo. Com efeito, Zé Celso sempre dialoga com as questões do presente. Se ele fosse voltar a Hamlet hoje, certamente a Copa estaria entre as coisas podres do reino da Dinamarca. Por vezes, os paralelos são gritantes, na medida em que as forças reacionárias de hoje evocam o passado ditatorial. Vejam o que o Oficina faz com as Marchas da Família (as de ontem e as de hoje) e suas músicas a partir dos 58 minutos: https://www.youtube.com/watch?v=kqJHVXqJurE


Zé Celso não escreveu uma peça sobre sua própria trajetória nesses anos, e não sei se isso lhe interessa. Se o fizesse, estaria cheia de momentos robogólpicos. Em 1978, Zé Celso voltou ao Brasil e teve que retornar ao DOPS/SP para que esclarecesse o que havia feito no exterior.
Entre outras informações, queriam saber com que artistas mantivera contato no estrangeiro, e lhe perguntaram se eles faziam campanha contra o Brasil (novamente, a tal da guerra psicológica, que visaria atingir a imagem do país).
É curioso ver como as autoridades policiais, de fato, estavam completamente afastadas desses aspectos da cultura brasileira (que eles, não por acaso, reprimiam) e não foram capazes de escrever corretamente nem o nome de Augusto Boal.
A resposta de Zé Celso foi brilhante: "Não vi campanha contra o Brasil, esses artistas ao contrário à [sic] imagem mais linda que o Brasil pode mostrar."
Hoje, além do Teatro Oficina, os que estão criando uma bela imagem do Brasil, por meio de sua ação política, são pessoas como Sonia Guajajara, da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), na Mobilização Nacional Indígena. Em Brasília, ontem, essa Mobilização foi atacada, fazendo o Estado sujar ainda mais a imagem do nosso país. Vejam as fotos:

Montagem de Rugendas com foto de Lunaé Parracho: https://twitter.com/joaofellet/status/471719961275404288
No El País: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/05/28/politica/1401233708_863738.html
Na Servindi: http://servindi.org/actualidad/105914
Há mais! https://www.facebook.com/idelber.avelar/posts/10152253495382713

Zé Celso, sempre antenado com o presente, inclui os índios desde o início da peça. Para ele, e isso é explicitado no "poema primal" que lê perto do final da peça (levanta-se nesse momento; é impactante, pois estava em cadeira de rodas até então), o núcleo do golpe é o "direito absoluto de propriedade": em nome dele, e contra as reformas da base, foi dado o golpe, em nome dele os índios são espoliados de suas terras, e o próprio Oficina está sendo ameaçado (há décadas) pelo grupo de Silvio Santos.
Já no início da peça (no vídeo, depois dos 28 minutos), os atores declamaram "Sem reintegração de posse/ A terra é de Oxóssi". Contra os "assassinos da mata selvagem, nossa mãe geratriz".
Zé Celso, o Prosperos, movido pelo Eros do teatro, conduz a peça à celebração final: o público com os autores saem para abraçar o Oficina cantando a música que Surubim Feliciano da Paixão compôs para O Rei da Vela, "Tupi or not Tupi":  http://www.teatroficina.com.br/headlines/12. Ela pode ser ouvida na Rádio Oficina: http://www.teatroficina.com.br/radio_uzonas
Isso me tocou especialmente, tendo em vista a conjuntura, como os governos reforçaram as forças da especulação imobiliária com os grandes eventos esportivos; no 19 de abril deste ano, dia da passeata Índio é nós em São Paulo, o único grupo de teatro que participou foi exatamente o Oficina, e foi genial: os artistas animaram a caminhada com cantos antropofágicos e o "Tupi or not Tupi", que recebeu mais uma estrofe, escrita especialmente para a ocasião por Fabio Weintraub: "Que nós é índio/ na cidade ou na floresta/ que demarquem nossas terras/ é o que vamos exigir." Letícia Coura, com sua potente voz, tocou (com outros músicos do Oficina) e puxou o coro por quatro horas.
Na plataforma Índio é nós ainda não se escreveu um texto sobre esse dia, mas podemos ver que Zé Celso assistiu ao lançamento da campanha e ainda se pronunciou, inesperadamente, nela, a partir da fala de Maria Rita Kehl: http://www.indio-eh-nos.eco.br/2014/05/03/os-videos-do-lancamento-paulista-de-indio-e-nos/
No dia 19, a passeata terminou no Oficina, e nele se cantaram o Choros 10 de Villa-Lobos e a música de Surubim Feliciano da Paixão, abraçando a terra do Teatro Oficina, um tekoha do teatro e de São Paulo. Zé Celso revelou que tinha acabado de receber uma ação de reintegração de posse do Grupo Silvio Santos. Falei-lhe que os índios Guarani da Terra Indígena do Jaraguá também haviam, fazia poucos dias, sido citados por causa de uma ação do mesmo tipo.
Trata-se da questão oswaldiana da posse contra a propriedade, tão urgente mas tão pouco estudada nesses termos antropofágicos (Alexandre Nodari é uma exceção). Creio que a academia, ao menos no Direito (que é a que conheço melhor), não está à altura de espetáculos como este, que conseguem operar essas sínteses entre o passado e o presente, na relação entre o Golpe e a Copa, e de ações como da Mobilização Nacional Indígena com os sem-teto, ambos alvo da repressão robocópica:  http://mobilizacaonacionalindigena.wordpress.com/2014/05/28/comite-popular-da-copa-e-mobilizacao-nacional-indigena-denunciam-violencia-policial/.

P.S.: RoboGolpe e RoboCopa, por alguma razão que me escapa, evocam-me a ideia de roubo... E não é que a filha e neta de nomes poderosos das forças RoboCópicas disse que o que havia para ser roubado já o foi? Vejo nisso mais uma confirmação do gênio de Zé Celso, uma das "antenas da raça", e também uma estratégia de despistamento feita por essas forças. A questão é mesmo a grande política, como Elaine Tavares escreveu: "a Copa é um assunto político. E o governo está fazendo política com a Copa, exatamente como os trabalhadores, os sem-teto, os indígenas. Todos estão a fazer política. Então, é preciso que a opinião pública saiba disso, e desde aí, do conhecimento, se posicione. O que não dá é para jogar um manto protetor sobre a Copa, como se fosse apenas uma linda e alegre festa popular, a qual alguns “malfeitores” estão querendo estragar." (http://eteia.blogspot.com.br/2014/05/a-copa-e-espaco-da-politica.html)

P.S. 2: Acabo de ver que foi publicado um vídeo de João Baptista Lago, filmado no Teatro Oficina no dia 19 de abril: https://www.youtube.com/watch?v=9MAnqDrIIpM

P.S. 3: O vídeo do grande sucesso #DesarquivandoBr e #NaoVaiTerCopa do Oficina, "Axé do Robocop (RoboGolpe RoboCopa)", pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=_a75ZaOCSNM

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXIII: A atualidade das lutas de Dom Tomás Balduíno

Morreu no dia 2 de maio Dom Tomás Balduíno, Bispo emérito de Goiás, aos 91 anos. No sítio da Comissão Pastoral da Terra, da qual foi um dos fundadores em 1975, pode-se ler sua biografia: http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/noticias-2/16-cpt/2052-nota-de-falecimento-dom-tomas-balduino-fundador-da-cpt-fez-a-sua-pascoa
Além disso, ele também participou da criação do Conselho Indigenista Missionário em 1972. Tendo em vista o caráter anticamponês e anti-indígena da ditadura militar, sua atuação o colocou em oposição ao regime.
Quero me referir apenas à questão do genocídio dos índios; como Maria Rita Kehl bem explicou no lançamento da campanha Índio é nós (http://www.indio-eh-nos.eco.br/2014/05/03/os-videos-do-lancamento-paulista-de-indio-e-nos/), a ditadura militar feriu gravemente os direitos não só de quem se opôs a ela, mas também de quem simplesmente estava em seu caminho. Os índios estavam no caminho dos projetos desenvolvimentistas e foram tratados pelos militares como obstáculo a ser eliminado.
A militarização da Funai fez dessa entidade, nesse período, em que foi criada em substituição ao SPI, (o Serviço de Proteção ao Índio, órgão que havia se tornado um instrumento do genocídio indígena no Brasil) mais um órgão de repressão. Sabe-se disso há tanto, mas se esquece sempre. Shelton Davis, em seu Vítimas do milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil (a Zahar o publicou em 1978, traduzido por Jorge Alexandre Faure Pontual), tratou especificamente desse desvio de rota da entidade:
O Governo brasileiro, em outras palavras, poderia ter intervindo para proteger essas áreas indígenas contra intromissões externas [...]
Durante um breve período em 1968, parecia que esta seria a política da FUNAI. Em 1970, porém, novas diretrizes de natureza integracionista e desenvolvimentista começaram a dominar a política indigenista brasileira, e várias tribos, e várias tribos, tais como os Parakanân e os Kréen-Akaróre, foram expulsas e destruídas.
Entre 1970 e 1974, a política indigenista brasileira tornou-se cada vez mais comprometida com a política global de desenvolvimento econômico do regime militar brasileiro. Durante esse período, a Fundação Nacional do Índio passou a ser a principal cúmplice nos processos de etnocídio desencadeados contra as tribos da Bacia Amazônica.
É triste que esse livro não esteja mais em catálogo: massacres, o Relatório Figueiredo, o uso de dinamite contra tribos, o conluio do governo militar com as multinacionais, prisões para indígenas, está tudo lá.

A atuação de membros da Igreja Católica como Dom Pedro Casaldáliga (outro nome do clero progressista) e Dom Tomás Balduíno não podia deixar de ser mal vista pela ditadura. Quero lembrar aqui somente de poucos exemplos. Neste Sumário Informativo sobre Comunismo Internacional do Serviço Nacional de Informações (SNI), um documento reservado, aparece Dom Tomás Balduino, em reprodução de reportagem do Jornal do Brasil de 14 de fevereiro de 1973.
Ele criticava a política indigenista do governo Médici, pois ela significava, na prática, o fim das formas de viver indígenas:
Tenho viajado por todo este Brasil  e tenho presenciado fatos entristecedores com relação à política indigenista que a FUNAI diz desenvolver e defender. Com a implantação de frentes pioneiras e a abertura de novas estradas na Amazônia, o índio vai-se transformando, virtualmente, num pobre diabo, num marginal, que vai ter que acabar pedindo esmolas, na própria casa, para poder sobreviver.  

Na mesma reportagem, Dom Tomás Balduíno conta sua visita a presos políticos, aos freis dominicanos e a não religiosos como Maurice Politi. Este documento pode ser lido no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).

Um outro documento: no Arquivo Público Mineiro (APM), pode-se encontrar a Informação n. 334/74-COSEG, da Coordenação-Geral de Segurança da Secretaria de Segurança Pública de MG. Balduíno viajava pelo Brasil para tratar da política indigenista. No "ciclo de debates nacionais", promovido pelo DCE da UFMG, Dom Tomás Balduino falou em 14 de junho de 1974.
Segundo o relatório de espionagem, além das críticas às ideias de "integração" do índio e à Transamazônica, o religioso teria feito esta denúncia:
Em torno do nosso primitivo habitante D. Tomás mais se preocupou, detendo-se maior tempo, especificando minuciosamente no campo da sociologia. Supervalorizou o nosso índio, exemplificando que alguns caciques, dotados de notáveis inteligências, superam muitos de nossos Estadistas. Que nossos indígenas, em grande número, estão sendo massacrados, subjugados por civilizados inescrupulosos. Citou, D. Tomás, como exemplo, que um funcionário da FUNAI, com a intenção de apoderar-se de terras pertencendo aos índios, cevou-os com açúcar durante um mês e depois colocou "arsênico", matando a todos.

Não é à toa que eram encontrados agentes da repressão política na Funai militarizada. Há pouco, a  antropóloga Lúcia Hussak Van Velthem, que pertencia à União da Juventude Patriótica (UJP), braço estudantil do PCdoB, contou à Comissão Nacional da Verdade que foi presa e torturada em 1972. Anos depois, recebeu um telefonema:
Depois de solta, ela conta que ficou no Rio, sob vigilância, durante 6 meses e, em 1973, mudou-se para Belém. Nos anos 80, trabalhando no Museu Goeldi, recebeu o telefonema de um ex-agente da repressão: “Joana, como vai você?”, disse o ex-agente que, àquela altura, servia na Funai. Joana era o codinome de Lúcia, informação conhecida apenas por companheiros da UJP e pelos ex-agentes.
Aqui pode ser lida a notícia, de 7 de maio: http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/482-antropologa-entrega-a-cnv-depoimento-sobre-prisao-no-doi-codi-do-rio

A Comissão Pastoral da Terra, com sua defesa dos camponeses, também era um problema para a ditadura militar. Ela foi considerada, pelos órgãos da repressão, como difusora de teses marxistas. Vejam o início desta Informação confidencial da Aeronáutica (disponível no APESP) de 1977: "O Relatório do 2o. Encontro da Comissão Pastoral da Terra/MT contém, em essência, desenvolvimento de teses marxistas sobre a propriedade, como pode ser observado nos seguintes tópicos".
Não à toa, religiosos católicos estrangeiros foram expulsos do Brasil nesse período em razão de sua defesa dos direitos humanos no interior do país.




O problema prosseguiu durante o governo Figueiredo. Em 1981, um episódio anedótico: o coronel Barbosa Lima invadiu a missa Terra sem Males, inspirada no livro de Dom Pedro Casaldáliga (por sua vez, inspirado nos mitos indígenas), organizado pelo CIMI em Cuiabá: "Não admito que a Igreja critique o Presidente Figueiredo e a Funai." Trata-se de recorte do Jornal da Tarde, feito pelo DEOPS/SP, e guardado no APESP.



Nos acervos que pesquisei, embora nunca tivesse me detido na figura deste religioso, pude ver diversos documentos em que agentes seguem e anotam as falas e rastros de Dom Tomás de Balduíno. Não pesquisei arquivos do Centro-Oeste; neles, imagino que o material seja imenso. Para terminar esta nota, faço referência a mais um, de São Paulo (no APESP). Em um "Ciclo de Debates sobre a Questão Indígena" na Federação Universitária Linense (em Lins, claro), um dos participantes foi Dom Tomás Balduíno.
O relatório, de 7 de maio de 1979, não é muito circunstanciado e traz apenas uma descrição genérica das falas dos oradores:
Os oradores fizeram severas críticas à FUNAI, taxando-a de incompetente e incapaz para solucionar os problemas dos índios. Mencionaram as construções de usinas hidrelétricas, barragens, estradas e as vendas de grandes glebas de terras, pelo Governo Federal, como meio de afugentar os índios de seus legítimos territórios, abandonando-os em seguida completamente desamparados. Opinaram, com veemência, por uma urgente demarcação dos territórios ocupados pelos índios, dando-se-lhes a segurança necessária e prevista em lei.

Os problemas não foram resolvidos até hoje! O Estatuto do Índio, de 1973, previa a demarcação das terras indígenas em cinco anos; eles passaram. A Constituição de 1988 renovou esse compromisso. A perfídia oficial não está apenas em não fazer, mas também no que se faz, as barragens, as usinas, e no que se deixa fazer: a violência e as invasões do agrobanditismo contra os povos indígenas.
Para ratificar essa mistura malfazeja de omissões com leniência e agressões, parlamentares entram em campanha de incitação de ódio contra esses povos: http://www.indio-eh-nos.eco.br/2014/04/01/indio-e-nos-na-revista-baderna/
As lutas de Dom Tomás Balduíno mantêm, pois, sua atualidade, pois também a reforma agrária foi praticamente paralisada neste atual governo.
Termino lembrando do Bispo Erwin Kräutler, presidente do CIMI, que precisa andar escoltado neste país do agrobanditismo, nesta entrevista dada a Eliane Brum, publicada pela revista Época:
Para mim, desenvolvimento é dar à população a possibilidade de viver com dignidade. Ou seja: vamos aplicar em saúde, em educação, em transporte, em habitação, em saneamento básico e em segurança. Mas, aqui, desenvolvimento é fazer dinheiro, é garantir energia para as grandes multinacionais e exportar matérias-primas. Vai beneficiar a quem esse desenvolvimento? O pessoal ainda não acordou. E esses grupos, a favor de Belo Monte e dos grandes projetos para a Amazônia, disseminam a falsa ideia de que a gente é contra o desenvolvimento, contra o progresso. Mas nós sempre lutamos pela saúde nessa cidade, pela educação, pelo saneamento básico. Esse desenvolvimento que pregam é para uns poucos, não é para o povo.
Veja-se a identidade dessas reivindicações com a dos grupos e Comitês Populares da Copa ("sem educação não vai ter copa"), que enfrentam as remoções forçadas e os megaempreendimentos. Essas lutas estão nas cidades também, e espero que cresçam.