O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 31 de maio de 2014

"Eu seria uma pessoa feliz/ se visse meu sangue com menos frequência?"

Para Adriano


Eu seria uma pessoa feliz 
se visse meu sangue com menos frequência?, perguntou
o tradutor, e enxugou o papel;
a tradução continuou úmida.
ela olhou para a chuva: 'é meu sangue. Mas não queria molhar as pessoas na rua', acrescentou triste.
Não sei se a felicidade
sangra mais do que eu, ponderou
o tradutor e mutilou o papel,
mas os versos se mantiveram secos.
ela contemplou a chuva: 'são minhas veias. Não queria com pessoas afogar as ruas', calou-se melancólica.
Existe a felicidade e existe o sangue,
não sei quem irriga quem, o tradutor
murmurou e começou a vasculhar com a faca
as diferenças entre o corpo e os versos.
ela ignorava a chuva: 'não chegou a menstruação. Devo estar grávida da cidade e de outros animais', cuspiu sonolenta.
As cicatrizes certamente
são mais felizes do que eu, calou
o tradutor, enquanto se enforcava
para que os versos pendidos secassem ao vento.
ela cegou a chuva: 'é meu coração. A cidade é um infarto cheio de animais carnívoros', gritou com fome.
O vento traduziu a forca
em versos e outras
precipitações atmosféricas.

A chuva, como traduzi-la?
O tradutor poderia sabê-lo, embora
sangrasse? Embora
estivesse úmido da felicidade e dos outros animais?

Nenhum comentário:

Postar um comentário