O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXV: Lançamento do "Bagulhão", denúncia dos presos políticos contra os torturadores

Às 15 horas do dia 16 de junho, no auditório Paulo Kobayashi da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP), será lançado o livro "Bagulhão": A voz dos presos políticos contra os torturadores, pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva".
Trata-se de uma longa e notável carta de 1975 que diversos presos políticos em São Paulo conseguiram, clandestinamente, enviar para o então presidente do Conselho Federal da OAB, Caio Mário da Silva Pereira, que andava em conversas com Geisel e havia declarado que a Ordem dos Advogados não havia recebido denúncias concretas de violações de direitos humanos pelo regime.
A carta não somente as enviou, explicando os métodos de tortura, como ainda indicou 233 torturadores e assassinos.
Já escrevi sobre ela aqui: Notas de uma metodologia jurídica da ditadura. O livro traz textos do presidente da Comissão, o Deputado Estadual Adriano Diogo, de Reinaldo Morano Filho (um dos autores da carta), Maria Amélia de Almeida Teles (que era militante do PCdoB e esposa de um dos signatários, César Augusto Teles, e foi uma das pessoas que ajudou a retirar a carta do presídio) e um posfácio meu, de que transcrevo o início:
Esta carta de 1975, que não estava mais disponível em livro desde sua publicação em 1982 pelo Congresso Nacional como um dos anexos dos debates da Lei de Anistia, é um notável documento histórico. Escrito no espaço mais representativo de uma ditadura – o presídio –, revela por dentro as entranhas do poder. Como desmistificação do regime autoritário, pode ser considerada um antecessor do Nunca más argentino, porém com importantes diferenças.
O célebre informe argentino foi fruto do trabalho da Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas estabelecida por Raúl Alfonsin, o primeiro presidente civil após o golpe militar de 1976, e precedeu o Brasil: Nunca mais. Tratou-se de importante medida de justiça de transição, apoiada pelo governo nacional, que resultou em extenso levantamento dos crimes dessa última ditadura naquele país.
Em condições muito diversas foi escrita esta carta (apelidada pelos militantes de “bagulhão”) para o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Caio Mário da Silva Pereira, em 23 de outubro de 1975. Em primeiro lugar, seus autores foram os próprios presos políticos do Presídio da Justiça Militar de São Paulo, que acabaram por constituir algo como um antecedente das comissões da verdade. Em segundo, eles o fizeram em plena vigência da ditadura, que durava mais de uma década e só daria lugar a um governo civil nove anos depois. Em terceiro, se se trata de um trabalho que não pode ser comparado ao Nunca más em extensão e alcance, tendo em vista as condições adversas em que foi elaborado, essas mesmas condições tornam ainda mais surpreendente que ele exista, pois teve que ser feito em segredo e, naturalmente, sem nenhum apoio oficial e sem poderes ou recursos para investigação.
No meu breve texto, faço referência a documentos do Alto Comando das Forças Armadas, do SNI, do Ministério do Exército, da Embaixada dos EUA, do DOPS/SP, da Diffusion de l’information sur l’Amérique Latine e do Acervo de Luís Carlos Prestes. E comento a exatidão da análise feita na carta dos procedimentos jurídicos da repressão:
A partir da denúncia da adoção da prática dos desaparecimentos forçados pelo governo, e citando o compromisso com os direitos humanos assumido por outro jurista, Seabra Fagundes, os signatários assumiram explicitamente seu lugar de sobreviventes e testemunhas não só dos crimes da ditadura militar, como também da impunidade dos torturadores, inobstante as denúncias feitas desde 1964. Em seguida, recordaram o uso da greve de fome como forma de protesto dos presos políticos contra as indignas condições do encarceramento e apresentaram a divisão temática da carta: descrição dos modelos e técnicas de tortura (assunto em que o Brasil destacava-se, acertaram os militantes ao escrevê-lo, “no plano internacional”); “apresentação das irregularidades jurídicas”, pois nem mesmo o direito de exceção da ditadura era cumprido pelas autoridades; “narração dos casos de presos políticos assassinados ou mutilados em virtude de torturas”.
No final da primeira parte, lê-se a impressionante (e incompleta) lista de 233 acusados de torturar.  A segunda distingue as fases policial-militar, judicial e o cumprimento da pena. O minucioso levantamento das ilegalidades, a cada passo dos inquéritos e dos processos, é exemplar, desde o momento da prisão, que, em regra, descumpria os requisitos constitucionais e do Código de Processo Penal Militar (o CPPM era aplicável aos civis nos crimes contra a segurança nacional). Na prática, o que as autoridades realizavam eram sequestros.

P.S.: O livro já pode ser baixado integralmente a partir desta ligação: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ustra-lidera-primeira-lista-publica-de-denuncia-contra-torturadores-9465.html/pdf-bagulhao

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