O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXVIII: o TRE-RJ cancela “Memórias do Autoritarismo – 50 anos do golpe militar”

Soube disto por meio de Renata Lins e Eduardo Sterzi, que retransmitiu a notícia dada pela economista. No dia 30 de julho, ocorreria o lançamento da exposição “Memórias do Autoritarismo – 50 anos do golpe militar” no TRE-RJ, com palestras de dois nomes da Escola da Comunicação da UFRJ, Ana Paula Goulart Ribeiro e Igor Sacramento. Duraria um mês este evento da Escola Judiciária Eleitoral, como foi noticiado.
O presidente do Tribunal, no entanto, resolveu impedi-lo; o despacho de indeferimento da cerimônia de abertura foi assinado no dia 24 e publicado no Diário do dia 28 de julho.
Não sei se a exposição foi proibida também, embora o teor do despacho leve a crer que ela não poderia encontrar abrigo naquele Tribunal. A palestra ocorrerá no IAB-RJ (Instituto dos Advogados Brasileiros), também no dia 30, às 10 horas, contando com um membro do Instituto, Flora Strozenberg, e a abertura por um Desembargador federal, André Fontes.
Memorado nº 50/2014 - Protocolo nº 89.608/14
Interessado: Escola Judiciária Eleitoral
Assunto: Cerimônia de abertura da exposição “Memórias do Autoritarismo – 50 anos do golpe militar”.
Despacho: Indefiro qualquer manifestação cujo tema seja "golpe", "autoritário", "guerrilha" ou atividade político partidária. O TRE e seus órgãos não podem manifestar simpatia ou oposição a regimes que, certo ou erradamente, refletiam a Constituição então vigente. Comunique-se esta decisão. Publique-se. Rio, 24/07/2014. (a) Desembargador Bernardo Garcez – Presidente do TRE/RJ.
O interessante e sumário despacho coaduna-se com diversos outros exemplos atuais, no meio jurídico brasileiro, contrários ao direito à memória e à verdade. Eis uma pequena seleta dessa infinidade reacionária:


Lembro que o caráter negacionista da decisão de 2010 do Supremo Tribunal Federal está justamente na invenção de um passado inexistente no tocante à lei de anistia, como se o projeto aprovado tivesse vindo da sociedade, e não houvesse ocorrido censura, vigilância e prisões contra os movimentos pela anistia. Creio que essa negação judicial da história brasileira tem ligação com a tese de Rebecca Atencio em Memory's Turn, mas ainda vou fazer uma nota sobre esse livro.
Que a interdição imposta pelo presidente do TRE-RJ colide com os esforços de recuperar a verdade e a memória, parece-me que é simples de ver. Parece-me também que se trata de um ato discricionário, que não poderia ser desfeito judicialmente. O que me chama a atenção é outra coisa, a justificativa: "O TRE e seus órgãos não podem manifestar simpatia ou oposição a regimes que, certo ou erradamente, refletiam a Constituição então vigente."
A ideia de que as palestras seriam uma atividade político-partidária parece-me apenas absurda. Mais substanciosa, intelectualmente falando, é a tese de que o golpe militar, tema das palestras, refletia a Constituição vigente.
A substância, porém, logo se evapora. Bem, se assim fosse, não teria sido um golpe... Tampouco uma revolução, qualificação (errônea) que é usualmente defendida por outro tipo de negacionista.
O despacho invoca imparcialidade (nem simpatia nem oposição...), porém em nome de uma paixão, a da positividade histórica, e ela não é neutra politicamente, muito pelo contrário. Ela está ao lado do status quo. O Desembargador, se português, proibiria palestras que criticassem o fascismo, eis que ele era o regime vigente. Sendo brasileiro, e sendo a história do Brasil o que conhecemos...
Entre a dignidade humana e a decorosa e silenciosa homenagem ao legado histórico do autoritarismo, parece que o magistrado já fez sua escolha (e que é a do Tribunal, ao menos enquanto ele o presidir) que, curiosamente, vai de encontro ao regime formalmente instituído hoje...
Inconsistências do despacho à parte, merece ser analisada a tese garceziana de que a instauração do "regime militar" foi um simples reflexo da Constituição de 1946. É verdade que seria inútil procurar alguma previsão constitucional que previsse derrubar à força o presidente da república. No entanto, houve, na época, quem ousasse dizer que o golpe não violara a Constituição, e um deles foi a OAB: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/01/desarquivando-o-brasil-xlviii.html
Eis uma razão por que digo que os formados em direito não detém e não deveriam deter o monopólio do saber jurídico... Os militares que lideraram o golpe, por exemplo, possuíam uma noção de constitucionalismo mais fina do que a Ordem dos Advogados e precisaram do saber jurídico de Francisco Campos, ex-ministro da ditadura anterior, a de Vargas, para criar um instrumento que legitimasse juridicamente o regime que, sabidamente, nascera em ruptura com a Constituição de 1946. Assim nasceram os atos institucionais, como já contei em outros textos.

Essa ignorância do constitucionalismo pela OAB, talvez inspirada pelo amor ao poder, não se encontrava nos melhores juristas engajados na ditadura que, se não eram amigos da Constituição, e também amavam o poder, ao menos detinham o saber técnico mínimo para saber que não a estavam aplicando, e sim a uma outra coisa, ao direito de exceção, ele mesmo, deve-se lembrar, também sistematicamente violado pelo regime.
Miguel Reale, um desses juristas, bem o sabia. Em palestra comemorativa do "II Ano da Revolução", proferida em Osasco, em 31 de março de 1966, "Revolução e normalidade constitucional", ele explicou claramente que houvera, de fato, uma ruptura com a Constituição vigente, e que o regime não deveria ser culpabilizado por isso:
[...] devemos abandonar a noção, ainda imperante, de "normalidade constitucional", que às vezes traduz uma espécie de complexo de culpa, como se, com a fratura revolucionária, houvéssemos praticado um ato censurável que nos obrigasse a reconstruir imediatamente as paredes fendidas ou abaladas pelos acontecimentos "anormais" de março.

Dever-se-ia criar um novo ordenamento constitucional, tendo como orientação o primeiro Ato Institucional, a partir do trabalho dos juristas colaboracionistas. Nada de uma Assembleia Constituinte. Reale escreve que nem o povo nem as "elites nacionais" tinham a "convicção" de que é necessário mudar a "fisionomia do Estado brasileiro". Quem deveria impor essa mudança, de cima para baixo, à sociedade? O governo militar.
Nas atuais conjunturas da vida nacional, inclusive pela falta de agremiações partidárias constituídas segundo centros programáticos definidos, penso que nada seria tão abstrato e ilusório como uma Assembleia Constituinte, nascida de um falso complexo de culpa e destinada a repetir os mesmos erros de 1934 e 1946.
Para conseguir-se a "normalidade constitucional", autenticamente vinculada às nossas circunstâncias, o Ato Institucional de 1964, aponta o caminho certo, que é o da proposta constitucional [grifo do original] a ser submetida, pelo Presidente da República, ao exame do Congresso Nacional, com a colaboração de juristas atualizados [...]

O governo enviou ao Congresso a Carta de 1967 e o Legislativo, que já havia sofrido diversas cassações, somente pôde dizer sim. Tal foi a sistemática do Ato Institucional número 4:

Art. 1º - É convocado o Congresso Nacional para se reunir extraordinariamente, de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967.
§ 1º - O objeto da convocação extraordinária é a discussão, votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República.
[...]
Art. 8º - No dia 24 de janeiro de 1967 as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal promulgarão a Constituição, segundo a redação final da Comissão, seja a do projeto com as emendas aprovadas, ou seja o que tenha sido aprovado de acordo com o art. 4º, se nenhuma emenda tiver merecido aprovação, ou se a votação não tiver sido encerrada até o dia 21 de janeiro.

Vejam o tempo mínimo, humilhantemente imposto pelo AI-4, que o Congresso dispunha para analisar a proposta governamental, e durante as festas de fim de ano. Nesse procedimento autoritário, tivemos mais um caso do emprego do instrumento do Ato Institucional para romper com a constitucionalidade - e, de fato, ele continuou sendo usado mesmo sob a égide das Constituições de 1967 e 1969, tão adversa que era aquela forma política à forma jurídica constitucional.
Ainda nos tempos anteriores AI 5, que certos negacionistas caracterizam como democráticos, tivemos casos como o do jornalista Hélio Fernandes, que, após a morte de Castelo Branco, criticou o ditador e foi, por isso, confinado em Fernando de Noronha em julho de 1967. Tratava-se do governo de Costa e Silva. O ministro da justiça, Gama e Silva, utilizou para tanto o Ato Institucional n. 2, que, no entanto, não era mais válido (seu artigo 33 previa que ele vigoraria até 15 de março de 1967).

A ruptura com a ordem constitucional por meio dos Atos Institucionais não significava, evidentemente, respeito a esses Atos. A arbitrariedade do regime autoritário não era muito compatível com a forma jurídica, mesmo com a do direito de exceção fabricado pelo próprio regime.
Não há que se falar em constitucionalismo nessa época, muito menos em reflexo da Constituição vigente, que garantia a liberdade de imprensa... No trecho ao lado de Boletim Informativo do SNI, temos esta posição do Ministério da Justiça: "Ainda sobre GAMA E SILVA, a respeito da punição de HÉLIO FERNANDES: o governo não poderá ficar de braços cruzados caso JÂNIO e JUSCELINO comecem uma pregação nacional, só porque a Constituição não prevê isso." (grifos do original).
O que representa, enfim a decisão do magistrado Bernardo Garcez de cancelar as palestras “Memórias do Autoritarismo – 50 anos do golpe militar” alegando que o Tribunal não poderia se insurgir contra os regimes que refletem as Constituições vigentes? Mais um exemplo de negacionismo, sendo, enfim, mais realista do que o rei, pois chegou ao ponto de negar que o primeiro de abril de 1964 tivesse resultado em alguma ruptura política e jurídica, como se nada de novo tivesse nascido, nenhuma besta tivesse se arrastado a Brasília para nascer (quem não conhece, veja este poema de Yeats, "A segunda vinda").
Evidentemente, se não houve ruptura ou golpe, que finalidade teriam eventos que discutissem 1964? Eis como, se negando a história, atinge-se a democracia. Segundo essa visão negacionista, esses eventos, de fato, deveriam ser proibidos, e (o que seria um segundo passo, consistente com o primeiro) deveria ser declarado subversivo todo aquele que achasse que houve no passado ruptura com a democracia, bem como todo aquele que julgasse que, através das fendas produzidas pela ruptura institucional, ainda escapam fuzis, cassetetes, aparelhos de escuta, monitoramento de movimentos sociais, e até mesmo decisões antidemocráticas do Judiciário.
Termino lembrando da ligação entre memória social e democracia, segundo Jacques Le Goff em Histoire et mémoire:
Nas sociedades desenvolvidas, os novos arquivos, arquivos orais, arquivos de audiovisual não escaparam à atenção dos governantes, mesmo se eles não podem controlar essa memória tão estritamente quanto os novos instrumentos de produção dessa memória, o rádio e a televisão notadamente.
Com efeito, incumbe aos cientistas profissionais da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos fazer da luta pela democratização da memória social um dos imperativos prioritários de sua objetividade científica.
[...] Ajamos de maneira que a memória coletiva sirva para a liberação e não para a subjugação dos homens.

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