O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 24 de agosto de 2014

Desarquivando o Brasil XCI: Memory's Turn, de Rebecca Atencio (e uma nota sobre os índios brasileiros)

Estive numa aula em São Paulo do curso da professora Rebecca Atencio, da Universidade de Tulane, e ganhei seu livro Memory's Turn (The University of Wisconsin Press, 2014). A obra é notável, e uma das razões por que deve ser lida é a própria escolha do objeto, que não é muito estudado na literatura sobre justiça de transição no Brasil.

A autora propõe uma classificação de diferentes ciclos de memória cultural, e suas relações com as instituições e seus mecanismos, sem sucumbir à tentação de ver uma simples relação de causalidade entre um plano e outro. Ela o faz desde a ditadura militar até recentemente, relacionando-os com a justiça de transição e com a lei de anistia.
A escolha das obras é representativa dos ciclos e  abarca gêneros diferentes: literatura, série de tevê, cinema, teatro. No campo institucional, o Legislativo, o relatório Direito à memória e à verdade, o Museu da Liberdade (que se tornou da Resistência).
Atencio está corretíssima em afirmar, sobre a lei de anistia, que "For the family members of the dead and disappeared and their supporters, the Amnesty Law represented a defeat. Still, much of the Brazilian society preferred to view the law less critically [..]" (p. 32), e que um novo ciclo de memória cultural se formava, preferindo a conciliação; a autora o analisa nos livros de Fernando Gabeira (O que é isso, companheiro) e de Alfredo Sirkis (Os carbonários), em contraste com o de Renato Tapajós (Em câmara lenta, obra em nada conciliatória com o terror de Estado), que foi preso e teve o livro censurado.
Attencio nota como, depois da liberação do livro de Tapajós, em 1979, ele chamou bem menos atenção do que em 1977, pois não estaria mais de acordo com o clima cultural, alterado com a aprovação daquela lei e o retorno de exilados.
Flora Sussekind, no fundamental Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos, vê essa literatura política dentro de um quadro mais amplo, o do "cárcere do eu", o que inclui obras tão diferentes como a prosa de Pedro Nava e a de Reinaldo Moraes, a poesia de Drummond: "recuperação da intimidade com o leitor e do perfil do narrador". Sussekind, ao tratar do livro de Renato Tapajós, lembra de sua "pouca preocupação literária" e de como os seus limitados recursos literários fazem com que a "a experiência do choque a que se poderia submeter o leitor, não chega a se realizar". Talvez isso também explique o declínio no interesse pelo livro.
Atencio critica as ambiguidades da narrativa e a relativa despolitização da guerrilha no livro mencionado de Gabeira, e mostra como ele, assim como Sirkis (ambos, por sinal, ingressaram na política institucional), acabou por se opor à punição dos crimes contra a humanidade perpetrados pela ditadura militar.
Faço notar que essa ênfase na conciliação, que a autora tão bem vê após a lei de anistia, foi o traço da memória a que se apegaram quase todos os Ministros do Supremo Tribunal no julgamento de 2010 sobre a recepção dessa lei pela Constituição de 1988, apagando os antecedentes da campanha pela anistia.
No capítulo seguinte, a série de tevê Anos rebeldes, veiculada pela TV Globo, é analisada em toda sua ambiguidade; lembrou da ditadura, mas a retratou de forma que não parecesse tão ruim; com isso, "it recycled the discourse of reconciliation by memory" (p. 60) que estavam presentes nos livros de Gabeira e de Sirkis. Com agravantes, não fora a TV Globo, ela mesma, um produto e suporte do regime autoritário: erotização e justificativa da tortura, abrandamento do caráter ditatorial do governo (com o falseamento de dados históricos, como a redução do número de prisões políticas), a transformação dos conflitos políticos em assuntos de família, e a ausência de torturadores, como se o crime não tivesse responsáveis, e o uso político da série para o impeachment de Collor.
Attencio muito bem afirma que que, se era bem conhecido o fato de que Globo havia colaborado com a censura durante a ditadura, não o era de que "it continued, on its own initiative, to suppress information about crimes against humanity in the new democratic era was much less widely known" (p. 71). Escrevi em outra nota que é uma pena, e é significativo, que as Organizações Globo não tenham criado a sua própria comissão da verdade...
O terceiro capítulo trata já do século XXI e compara duas formas de verdade e memória: o relatório publicado pelo governo federal Direito à memória e à verdade e um livro de ficção de Fernando Bonassi, Prova contrária, que inspirou o filme de Tata Amaral Hoje.
O livro de Bonassi, sustenta Atencio, possui um caráter crítico, ao apontar os efeitos da denegação da justiça, e ajudou a forjar o novo ciclo de memória. O relatório oficial, pelo contrário, diminui a questão da justiça, concentrando-se na memória, e não trata da punição dos assassinos e torturadores da ditadura.
O último capítulo trata da peça criada para o espaço do DOPS/SP em 1999, Lembrar é resistir, que não cheguei a ver, escrita por Analy Álvarez e Izaías Almada, que fazia criativo uso do espaço (que se tornava personagem) e dos arquivos da polícia política. Atencio afirma que o fim forçado da encenação, em 2000, fez parte de uma política de silêncio imposta pelo governo do Estado.
A peça, porém, teve o efeito de envolver público na reivindicação do espaço como um lugar de memória. As autoridades estaduais não pensavam da mesma forma, e preferiram integrá-lo dentro das políticas de "revitalização" da região. Dessa orientação política nasceu o Memorial da Liberdade, que não duraria muito e que Atencio considera, com toda razão, "ineffective"
Estive na abertura do "Memorial da Liberdade"; foi um verdadeiro ato de apagamento da memória, e vi a decepção dos ex-presos políticos que lá compareceram: as celas foram descaracterizadas e, num gesto de vandalismo de Estado, foram apagadas inscrições de décadas feitas pelos presos nas paredes. Monteiro Lobato, por exemplo, havia escrito que esteve ali. Atencio diz que esse apagamento foi realizado em 1983; no entanto, na abertura, vi muitos dizendo que aquilo havia ocorrido recentemente, daí as acusações, que o livro menciona em nota, de que os próprios formuladores do Memorial foram os responsáveis.
O nome ("da Liberdade") também foi contestado, pois ignoraria a luta política dos presos. Quando reaberto como "Memorial da Resistência", alguns ex-presos refizeram parte das inscrições.
Quando Memory's Turn for traduzido e lançado no Brasil, o que espero que logo ocorra, dará uma grande contribuição para os debates sobre a justiça de transição e a memória neste país. Em termos teóricos, interessam muito o seu olhar alerta para as complexas interações entre os mecanismos institucionais e a produção cultural no âmbito dos ciclos de memória cultural (que não podem ser explicados pela simples causalidade), bem como a análise de como uma obra pode ter um impacto diferido ao longo do tempo histórico.
Eu teria uma pequena observação: no livro, menciona-se rapidamente a questão da hegemonia da esquerda nos anos 1960, referindo-se a texto de Roberto Schwarz, "Cultura e política no Brasil: 1964-1969", que foi, como se sabe, bastante discutido e contestado. Um de seus problemas, de ordem conceitual, explica-o Marcelo Ridenti em O fantasma da revolução brasileira: um uso pouco apropriado da noção de hegemonia - que era burguesa, ao contrário do desejo de R. Schwarz. Diz Ridenti: "No máximo, esboçou-se a gestação de uma hegemonia alternativa, ou contra-hegemonia, que acabou sendo quase totalmente abortada e incorporada desfiguradamente pela ordem vigente". Apenas certas camadas mais intelectualizadas estariam realmente mais comprometidas com a produção cultural da esquerda.

Tenho um senão a fazer em passagem da página 50, na comparação com a Argentina; afirmar que a repressão deu-se no Brasil "mostly targeting members of active opposition groups" não se aplica em nada aos povos indígenas.
A observação é importante, pois esses povos  não formavam, em regra, grupos de oposição política; no entanto, eles constituíram, de longe, em números absolutos e em relativos, o maior número de vítimas da ditadura militar, que os sacrificou em nome dos projetos de colonização, muitos em aliança com empresas estrangeiras.
O caráter genocida da ditadura militar levou o Estado brasileiro a uma condenação no Tribunal Bertrand Russell em 1980. O governo tentou impedir Mário Juruna de viajar para o Tribunal, alegando sua "incapacidade" jurídica, mas a Justiça federal concedeu-lhe autorização.
Parte da imprensa brasileira manteve-se fiel ao governo nessa questão e tratou as denúncias de genocídio como fantasia, contribuindo para que tais ações (que confirmam o caráter criminoso do regime) ficassem recalcadas na memória cultural.
Creio que se deve pesquisar, no futuro, se as correntes iniciativas relativas à justiça de transição, oficiais (a Comissão Nacional da Verdade, por exemplo) e não oficiais (como os escrachos feitos pelo Levante Popular da Juventude) inspirarão um novo ciclo de memória cultural, e se este ciclo terá como ênfase a justiça na forma de punição dos crimes da ditadura militar.
Será necessário também verificar se essas iniciativas produzirão documentos que reproduzam o silenciamento, feito pelo governo militar e seus apoiadores, do genocídio dos povos indígenas.
Tratar-se-á simultaneamente de questão para os cidadãos brasileiros e de objeto de estudo de pesquisadores de variada nacionalidade, e espero que Rebecca Atencio continue entre eles.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Antologia mural de viagem: Portugal, 2014

Passei duas semanas em Portugal em julho e fiquei quase todo o tempo em Lisboa. Fotografei algo do que avistei e escrevi algumas coisas.

Lá, escutei e vi o discurso da crise, que muitos atribuem àquilo que Alberto Pimenta, há mais de 10 anos, chamou de "IV Reich", e é a União Europeia.
"Já vi estas ruas cheias Agora são só memórias vazias" foi uma das inscrições que vi. Vi ruas cheias, porém de estrangeiros como eu, ou bem mais do que eu, pois a maior parte não era lusófona.

Nas fotos ao lado, creio que se trata de frases escritas por portugueses, devido à ortografia errada ("depotation", "peublo"), ou, ao menos, não falantes dessas línguas. O fato de elas estarem em paredes de Lisboa me perturbou: a revolta teria que falar outra língua? Em Portugal, ela teria que ser importada e, talvez, mal assimilada? Não sei.

Sei que a consciência da crise estava presente: no metrô e, também, nos trens.
Enquanto lá estive, tribunais foram extintos, o que causara protestos dos advogados, que teriam que se deslocar mais para trabalhar.












Vi algumas inscrições de "Revolta-te", alguns rastros anarquistas.























Esta pintura pelo direito à cidade abria portas na parede.


Enquanto estive lá, ocorreu uma passeata dos professores, de que não consegui participar. Vi, porém, suas marcas pelo meio urbano, e fixas como a que fotografei, "PROFESSORES DE LUTO E EM LUTA Pela profissão, Em defesa da Escola Pública".
Lembremos que o inefável Passos Coelho convidou em 2011 os professores portugueses a deixar o país; um momento vergonhoso em que o governo desejava, com efeito, apagar as luzes da nação.
É necessário que essas luzes cresçam com(o) o fogo? Talvez ainda falte que a cidade arda, como diz Alberto Pimenta no poema 50 do seu último livro, Autocataclismos (Lisboa: Pianola, 2014):

a cidade está a arder--------o aperto é grande
desde há vários dias---------escasseiam os mantimentos
mas o que arde cura---------mas o que aperta segura

Manuel de Freitas, no número 2 da revista Cão Celeste (2013), escreveu "Que a poesia interessa a quase ninguém, é um dado adquirido. Provam-no, de maneira drástica, as tiragens cada vez menores com que grandes e médias editoras apostam (?) nesse gênero escandaloso, para não dizer nefasto."
De fato, hoje, são as editoras menores que continuam a sustentar esse gênero. Mais adiante, no mesmo texto, "As coordenadas líricas" acrescentou este contraponto: "Por ironia, e embora já ninguém se aperceba disso, a poesia (que não vende, não interessa, etc.) continua a ser a mais forte e intensa afirmação da literatura portuguesa. Talvez por lhe faltar aquilo que nunca teve: esse gosto pela prostituição em que tantos ficcionistas e prosadores se comprazem."
Também no ano passado, a propósito do livro De nada de Alberto Pimenta, eu havia escrito, fazendo um comentário a Eduardo Pitta, que havia notado esse problema em boa parte da ficção portuguesa, e a poesia não merecia essa ressalva.
Descobri, depois, um vídeo, de 2009, com programa de tevê com Diogo Vaz Pinto e Luís Quintais reclamando da crise e da falta de leitores para a poesia. Deve ser verdade. No entanto, creio que há outra coisa em questão, talvez mais importante do que essa falta: a poesia, ela mesma, pode ter como ambiente mais adequado a crise, ou pelo menos a de uma certa espécie, nos discursos.
Ou melhor: ela pode ser essa própria crise e, com isso, inventar os seus leitores e recriar o silêncio. Trata-se de uma tarefa para os poetas.
"Paredes brancas povo mudo", outra das inscrições que vi em Lisboa. Que a poesia também seja uma pichação sobre a cidade e os discursos.


sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Desarquivando o Brasil XC: Prisões políticas, ontem e hoje

Ontem, perguntaram-me se Fabio Hideki Harano havia sido condenado a 13 anos de prisão. Não, trata-se ainda de um inquérito (e não de um processo penal) que prossegue, embora ele tenha sido libertado, com Rafael Marques Lusvarghi, no dia 7 de agosto. O laudo chegou a conclusão de que não carregavam explosivos, o que pode ser verificado nos vídeos que estão no sítio Liberdade para Hideki.
Nos dois casos, tratou-se de prisões políticas em São Paulo, segundo a linha de argumentação que expus em outra nota neste blogue:
Participei de poucos eventos relativos à Copa porque estava muito envolvido, mesmo em junho, com a rede Índio é Nós; no entanto, pude testemunhar que a polícia militar tentou invadir uma atividade do Comitê Popular da Copa e do Comitê pela Desmilitarização da Polícia em que eu era um dos palestrantes sob o pretexto de que ocorreria uma "atividade política".
A persistência das ações ilegais do Estado brasileiro contra seus cidadãos mostra que a Copa foi mais um triste capítulo na história da democracia brasileira. Persistência alimentada pelos velhos hábitos do Judiciário: o único preso pelas manifestações de 2013 foi alguém que nem mesmo delas participava, mas era o alvo preferencial do sistema penal brasileiro: o negro e pobre Rafael Braga Vieira, "armado" com perigosíssimo desinfetante.
Alguém, talvez ingenuamente, poderia indagar se as prisões arbitrárias (como foi a de Vieira, ratificada pelo Judiciário) são políticas, ou se há presos políticos no país. Não vejo como negá-lo. Explico.
As prisões ilegais têm como efeito a limitação do que Charles Tilly chama de repertório de ação coletiva dos movimentos. Nesse repertório, estão passeatas, debates, marchas - as possibilidades de ação coletiva para mobilizar a ação e a opinião públicas.
Tal ação coletiva é política, e é ela que está sendo reprimida. Quando são detidos manifestantes que são considerados "líderes" de movimentos (e criminalizados por parte da imprensa que é sócia desses abusos), não é abusivo caracterizá-los como presos políticos. Ainda mais porque são detidos em razão do exercício (ou da possibilidade desse exercício, no caso de prisões que antecedem as manifestações) de direitos democráticos.
O cerceamento policial-midiático-judicial do repertório legal de ação coletiva é um desastre do país.
A ilegalidade corrente desse tipo de atuação das polícias parece-me estar documentada. Ademais, pessoas que sabem muitos mais do que eu desses assuntos concordam com a natureza política desses inquéritos. Nesta recente entrevista, dada à Rede Brasil Atual, Luiz Eduardo Greenhalgh, que defendeu vários presos políticos durante a ditadura militar e fez carreira política no PT, afirma que se sente "novamente defendendo um preso político" e ataca, corretamente, como o faz há muito tempo Fábio Konder Comparato, a forma de nomeação de Ministros no Judiciário, que facilitaria os comprometimentos políticos.
Ele erra, no entanto, ao dizer que hoje "não tem Lei de Segurança Nacional"; muito pelo contrário, nós a temos, e é a mesma dos tempos do General Figueiredo, integrando o chamado entulho autoritário normativo da ditadura: a lei n. 7170 de 1983. Lembro que ela ainda é empregada contra manifestantes nos dias de hoje.

No inquérito fluminense fruto da Operação Firewall, e que também gerou prisões políticas, Bakunin foi tratado como um dos suspeitos. Esse momento de curiosa competência técnica da inteligência policial fez muitos recordarem momentos em que as prisões políticas eram mais frequentes, a ditadura militar, e lembrarem que, naqueles tempos, Karl Marx foi fichado pela polícia política; até a obra de Descartes foi tratada como literatura subversiva.
Note-se que a Polícia do Rio de Janeiro (talvez hoje o grande centro de repressão política no Brasil: não é de admirar que policiais desse Estado tenham ido prender manifestantes no sul do país) foi mais erudita do que o governo de Goiás, que veiculou notícia de mortes de overdose de maconha, de um sítio de paródia, com o testemunho pretensamente real de personagens de cinema e de tevê dos Estados Unidos.
Aquele detalhe espírita-anarquista, no entanto, é um dos menos absurdos do inquérito fluminense, que inclui a negação do envio dos autos para o desembargador Sirlo Darlan (mas não para a Globo) e uma dor de cotovelo vingativa contra Elisa Quadros, conhecida como Sininho. Bessa Freire, em "Sininho: a mídia e os tradutores da polícia" (leiam-no), fez uma divertida paródia da fabulação policial de que o Maracanã seria incendiado. Cito o autor:
[...] a Polícia do Rio tem uma tradição de leitura de intenções delituosas. No Arquivo Nacional, no Fundo Polícia da Corte, encontrei um documento que registra a prisão de um índio, em 1831, por "estar numa atitude de quem estava pensando em roubar". Embora não tenha conseguido ler as intenções, entre outros, dos assassinos da dona do Restaurante Guimas, a Polícia usou seu faro para prender, pelo menos, quem estaria pensando em fazer baderna.
Lênio Streck afirmou que se trata de uma "versão jabuticaba do Minority Report", já que a polícia estaria prevendo crimes antes de serem preparados... Essa fabulação autoritária policial, apoiada pelos governos estaduais concernentes e pelo federal mantém o Rio de Janeiro como talvez o centro mais importante da repressão política no país. Em outra nota, escrevi que as prisões eram políticas em virtude do repertório de ação coletiva dos movimentos sociais. A criminalização do pensamento também caracteriza a natureza política das prisões ordenadas pelo juiz Itabaiana, que fazem parte de um processo nacional (a despropósito, o candidato do PSDB à presidência resolveu fazer campanha dizendo que seria mais repressivo do que a presidenta), que envolve, em São Paulo, o inquérito contra o Movimento Passe Livre e a prisão de militantes (que inclui explosivos que não eram), bem como a prisão de diversas lideranças indígenas pelo Brasil.

Enfim, o #NãoVaiTerCopa estava certo... A Copa deixa seu legado repressivo, que tem um impacto forte contra os direitos fundamentais. Note-se, como a Anistia Internacional o fez, que a Defensoria Pública não recebeu credenciais para a Copa do Mundo, e sim os magistrados e o Ministério Público. A opção política era por quem poderia acusar e quem poderia condenar.
O problema não é só de polícia, tampouco o de sua militarização; como se poderia ter uma polícia democrática se os governos não o são realmente? O que acontece no Rio e em São Paulo deveria ser caso de impedimento dos governadores, mas aqueles que o poderiam decidir fazem parte do mesmo problema, e os grandes partidos unem-se (inclusive o que ocupa o governo federal), na oportunidade dos grandes negócios e eventos, no mesmo complexo repressivo: a abertura da Copa confirmou-o.
Um dos grandes juristas brasileiros, Deisy Ventura, que espero que reúna essas reflexões em um artigo, lembrou que "Há abissal diferença entre membro de uma organização política praticar um crime e o fato de fazer parte de organização política ser um crime", e ela se chama "democracia". Se formalmente o regime seria uma democracia, pode-se falar em uma cultura democrática no Brasil?
Em vários setores, não. Em um momento em que professores também estão sendo presos, como Camila Jourdan da UERJ, a fome das vozes da repressão é atiçada e exige mais ossos.
O ódio ao ensino e aos professores é mais um dos elementos dessa criminalização do pensamento. Uma educadora, poeta, psicanalista e filósofa que aparece nos veículos da Globo veiculou em rádio uma frase que pode ser encontrada em blogues de extrema direita, "adote seu filho antes que um professor de história ou de filosofia o adote, porque essa é a guerra com os adolescentes em sala de aula". O radialista chegou a lhe perguntar se se não tratava de exagero, mas ela reiterou sua visão, tentando dar uma lição de direito (bem errada, por sinal) para Siro Darlan. Gilson Junior fez uma análise das declarações dessa autora no blogue dele, afirmando que ela era um caso de "criminalização do raciocínio".
Certamente a "guerra", como a autora define tão mal, passa por uma hostilidade ao pensamento. Em mais um dos momentos ridículos do inquérito no Rio de Janeiro, uma pesquisa de mestrado foi considerado um dos "grupos organizados", "permeáveis a ideias extremistas e a manipulação política"; conta-nos Arthur William, mestrando na UERJ.
Tal hostilidade é um dos elementos do caráter político dessa onda de repressão que é a resposta do Estado brasileiro, governo federal e estaduais em conjunto, para as demandas democráticas que a sociedade fez nas ruas em 2013.

Habituais porta-vozes dessa hostilidade, os grandes meios de comunicação fazem sua tarefa habitual de desinformar e criminalizar manifestantes. Foram escritas coisas muito constrangedoras sobre direito de asilo (inclusive pelo Ministro do STF que deu a decisão que levou à fuga de Salvatore Cacciola do Brasil), em virtude de a advogada Eloísa Samy, um dos alvos da Operação Firewall, ter pedido asilo ao Uruguai. Remeto novamente às explicações da internacionalista Deisy Ventura: https://twitter.com/Deisy_Ventura/status/491583002410237952
Os Advogados Ativistas e os Observadores Legais têm se tornado um alvo da polícia, o que é mais uma ratificação do caráter político das prisões, além das agressões a jornalistas. A advogada Eloísa Samy teve, de fato, prerrogativas da advocacia desrespeitadas (a OAB-RJ expressou contrariedade em razão do grampeamento do telefone de advogados feito na Operação Firewall), e argumentos típicos da ditadura militar para acusá-la; segundo notícia da Globo, um dos elementos da denúncia apresentada pelo Ministério Público era o fato de ela não cobrar honorários.

Trago apenas dois documentos, de tantos possíveis, da época da ditadura militar, que se relacionam com esses dois pontos.
No tocante à comunicação entre advogados e clientes, a correspondência entre clientes e advogados era muitas vezes interceptada, o que já era ilegal nessa época.
O documento, guardado no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), é uma Informação do Centro de Informação do Exército (CIE), de 1970. Na correspondência entre o advogado Ney Tavares de Campos e o militante Jorge Batista Filho, note-se que o advogado também era considerado "subversivo" para o órgão do sistema de informações.
Sobre o segundo ponto, esta Informação de julho de 1970 do Ministério do Exército, também guardada no APESP. Temos nela um dos exemplos da preocupação oficial com a atividade advocatícia. Destaco outro documento do governo Médici, época em que muitos advogados foram presos simplesmente por tentarem defender seus clientes.
Em nota anterior neste blogue, em que mencionei a prisão de Rosa Cardoso (hoje um dos membros da Comissão Nacional da Verdade) durante a ditadura militar por defender presos políticos, pode-se ver a preocupação da polícia política em saber se os advogados trabalhavam de graça. Se o fizessem, era sinal de que eram militantes e, portanto, subversivos. No entanto, se cobrassem honorários, estimulariam com isso atividades ilícitas da esquerda clandestina:
4. Criou-se uma verdadeira indústria de advocacia da subversão, cujos nomes são públicos e notórios, especializados em tais tipos de defesa, com quase total liberdade de movimento nas Auditorias, coagindo, moral e financeiramente, seus funcionários para obterem cópias de depoimentos, etc, além de exercerem pressão para obtenção de regalias, acima do possível, para seus constituintes, quando já em regime penitenciário.
5. Não se trata de perseguir ou cercear o direito de defesa, exigindo-se tal controle, mas evitar o estímulo a novos assaltos para obter tais recursos, diminuir a ambição desmedida de advogados inescrupulosos e o controle moral das organizações sobre os presos.
Ontem como hoje, a existência desses advogados que defendem os inimigos do poder é incômoda para o Estado. Mostrou-o o inefável tweet da Polícia Militar do Rio de Janeiro em 22 de julho de 2013: "Membros da @OABRJ_oficial prejudicando o trabalho da Polícia Militar".

Escrevo essa nota em homenagem a Siro Darlan, que apenas confessa que o rei está nu ao dizer isto desta eventual extensão da polícia que é o Ministério Público: "Os instrumentos de segurança estão invasivos, até mais que na época da ditadura, por uma questão de desenvolvimento das comunicações. Na época dos militares, não tínhamos a tecnologia de hoje. Essa nova lei contraria os direitos do cidadão. O Ministério Público é uma inutilidade. Ele é muito eficiente quando lhe interessa. Mas há situações em que o MP se omite. Hoje estamos com prisões superlotadas porque o MP é eficiente na repressão do povo pobre, do povo negro."
Por isso, recebeu uma representação contra ele no Conselho Nacional de Justiça: http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2014-08-01/conselho-pede-punicao-de-juiz-que-criticou-ministerio-publico.html
Nesta reportagem da Ponte, testemunha Débora Maria da Silva, das Mães de Maio, uma das representantes desse povo organizado: "a polícia mata, mas o Ministério Público mata mais e com canetadas, com jogos de carimbos entre as instituições."

P.S.: Vejam que o presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB-RJ, Breno Melaragno Costa, informa que a Polícia Civil decidiu publicar em seu boletim que irá respeitar o Estatuto da Advocacia no tocante às prerrogativas do advogado, bem como garantias contra as prisões arbitrárias: https://www.facebook.com/breno.melaragnocosta/posts/736115753096377