O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 24 de agosto de 2014

Desarquivando o Brasil XCI: Memory's Turn, de Rebecca Atencio (e uma nota sobre os índios brasileiros)

Estive numa aula em São Paulo do curso da professora Rebecca Atencio, da Universidade de Tulane, e ganhei seu livro Memory's Turn (The University of Wisconsin Press, 2014). A obra é notável, e uma das razões por que deve ser lida é a própria escolha do objeto, que não é muito estudado na literatura sobre justiça de transição no Brasil.

A autora propõe uma classificação de diferentes ciclos de memória cultural, e suas relações com as instituições e seus mecanismos, sem sucumbir à tentação de ver uma simples relação de causalidade entre um plano e outro. Ela o faz desde a ditadura militar até recentemente, relacionando-os com a justiça de transição e com a lei de anistia.
A escolha das obras é representativa dos ciclos e  abarca gêneros diferentes: literatura, série de tevê, cinema, teatro. No campo institucional, o Legislativo, o relatório Direito à memória e à verdade, o Museu da Liberdade (que se tornou da Resistência).
Atencio está corretíssima em afirmar, sobre a lei de anistia, que "For the family members of the dead and disappeared and their supporters, the Amnesty Law represented a defeat. Still, much of the Brazilian society preferred to view the law less critically [..]" (p. 32), e que um novo ciclo de memória cultural se formava, preferindo a conciliação; a autora o analisa nos livros de Fernando Gabeira (O que é isso, companheiro) e de Alfredo Sirkis (Os carbonários), em contraste com o de Renato Tapajós (Em câmara lenta, obra em nada conciliatória com o terror de Estado), que foi preso e teve o livro censurado.
Attencio nota como, depois da liberação do livro de Tapajós, em 1979, ele chamou bem menos atenção do que em 1977, pois não estaria mais de acordo com o clima cultural, alterado com a aprovação daquela lei e o retorno de exilados.
Flora Sussekind, no fundamental Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos, vê essa literatura política dentro de um quadro mais amplo, o do "cárcere do eu", o que inclui obras tão diferentes como a prosa de Pedro Nava e a de Reinaldo Moraes, a poesia de Drummond: "recuperação da intimidade com o leitor e do perfil do narrador". Sussekind, ao tratar do livro de Renato Tapajós, lembra de sua "pouca preocupação literária" e de como os seus limitados recursos literários fazem com que a "a experiência do choque a que se poderia submeter o leitor, não chega a se realizar". Talvez isso também explique o declínio no interesse pelo livro.
Atencio critica as ambiguidades da narrativa e a relativa despolitização da guerrilha no livro mencionado de Gabeira, e mostra como ele, assim como Sirkis (ambos, por sinal, ingressaram na política institucional), acabou por se opor à punição dos crimes contra a humanidade perpetrados pela ditadura militar.
Faço notar que essa ênfase na conciliação, que a autora tão bem vê após a lei de anistia, foi o traço da memória a que se apegaram quase todos os Ministros do Supremo Tribunal no julgamento de 2010 sobre a recepção dessa lei pela Constituição de 1988, apagando os antecedentes da campanha pela anistia.
No capítulo seguinte, a série de tevê Anos rebeldes, veiculada pela TV Globo, é analisada em toda sua ambiguidade; lembrou da ditadura, mas a retratou de forma que não parecesse tão ruim; com isso, "it recycled the discourse of reconciliation by memory" (p. 60) que estavam presentes nos livros de Gabeira e de Sirkis. Com agravantes, não fora a TV Globo, ela mesma, um produto e suporte do regime autoritário: erotização e justificativa da tortura, abrandamento do caráter ditatorial do governo (com o falseamento de dados históricos, como a redução do número de prisões políticas), a transformação dos conflitos políticos em assuntos de família, e a ausência de torturadores, como se o crime não tivesse responsáveis, e o uso político da série para o impeachment de Collor.
Attencio muito bem afirma que que, se era bem conhecido o fato de que Globo havia colaborado com a censura durante a ditadura, não o era de que "it continued, on its own initiative, to suppress information about crimes against humanity in the new democratic era was much less widely known" (p. 71). Escrevi em outra nota que é uma pena, e é significativo, que as Organizações Globo não tenham criado a sua própria comissão da verdade...
O terceiro capítulo trata já do século XXI e compara duas formas de verdade e memória: o relatório publicado pelo governo federal Direito à memória e à verdade e um livro de ficção de Fernando Bonassi, Prova contrária, que inspirou o filme de Tata Amaral Hoje.
O livro de Bonassi, sustenta Atencio, possui um caráter crítico, ao apontar os efeitos da denegação da justiça, e ajudou a forjar o novo ciclo de memória. O relatório oficial, pelo contrário, diminui a questão da justiça, concentrando-se na memória, e não trata da punição dos assassinos e torturadores da ditadura.
O último capítulo trata da peça criada para o espaço do DOPS/SP em 1999, Lembrar é resistir, que não cheguei a ver, escrita por Analy Álvarez e Izaías Almada, que fazia criativo uso do espaço (que se tornava personagem) e dos arquivos da polícia política. Atencio afirma que o fim forçado da encenação, em 2000, fez parte de uma política de silêncio imposta pelo governo do Estado.
A peça, porém, teve o efeito de envolver público na reivindicação do espaço como um lugar de memória. As autoridades estaduais não pensavam da mesma forma, e preferiram integrá-lo dentro das políticas de "revitalização" da região. Dessa orientação política nasceu o Memorial da Liberdade, que não duraria muito e que Atencio considera, com toda razão, "ineffective"
Estive na abertura do "Memorial da Liberdade"; foi um verdadeiro ato de apagamento da memória, e vi a decepção dos ex-presos políticos que lá compareceram: as celas foram descaracterizadas e, num gesto de vandalismo de Estado, foram apagadas inscrições de décadas feitas pelos presos nas paredes. Monteiro Lobato, por exemplo, havia escrito que esteve ali. Atencio diz que esse apagamento foi realizado em 1983; no entanto, na abertura, vi muitos dizendo que aquilo havia ocorrido recentemente, daí as acusações, que o livro menciona em nota, de que os próprios formuladores do Memorial foram os responsáveis.
O nome ("da Liberdade") também foi contestado, pois ignoraria a luta política dos presos. Quando reaberto como "Memorial da Resistência", alguns ex-presos refizeram parte das inscrições.
Quando Memory's Turn for traduzido e lançado no Brasil, o que espero que logo ocorra, dará uma grande contribuição para os debates sobre a justiça de transição e a memória neste país. Em termos teóricos, interessam muito o seu olhar alerta para as complexas interações entre os mecanismos institucionais e a produção cultural no âmbito dos ciclos de memória cultural (que não podem ser explicados pela simples causalidade), bem como a análise de como uma obra pode ter um impacto diferido ao longo do tempo histórico.
Eu teria uma pequena observação: no livro, menciona-se rapidamente a questão da hegemonia da esquerda nos anos 1960, referindo-se a texto de Roberto Schwarz, "Cultura e política no Brasil: 1964-1969", que foi, como se sabe, bastante discutido e contestado. Um de seus problemas, de ordem conceitual, explica-o Marcelo Ridenti em O fantasma da revolução brasileira: um uso pouco apropriado da noção de hegemonia - que era burguesa, ao contrário do desejo de R. Schwarz. Diz Ridenti: "No máximo, esboçou-se a gestação de uma hegemonia alternativa, ou contra-hegemonia, que acabou sendo quase totalmente abortada e incorporada desfiguradamente pela ordem vigente". Apenas certas camadas mais intelectualizadas estariam realmente mais comprometidas com a produção cultural da esquerda.

Tenho um senão a fazer em passagem da página 50, na comparação com a Argentina; afirmar que a repressão deu-se no Brasil "mostly targeting members of active opposition groups" não se aplica em nada aos povos indígenas.
A observação é importante, pois esses povos  não formavam, em regra, grupos de oposição política; no entanto, eles constituíram, de longe, em números absolutos e em relativos, o maior número de vítimas da ditadura militar, que os sacrificou em nome dos projetos de colonização, muitos em aliança com empresas estrangeiras.
O caráter genocida da ditadura militar levou o Estado brasileiro a uma condenação no Tribunal Bertrand Russell em 1980. O governo tentou impedir Mário Juruna de viajar para o Tribunal, alegando sua "incapacidade" jurídica, mas a Justiça federal concedeu-lhe autorização.
Parte da imprensa brasileira manteve-se fiel ao governo nessa questão e tratou as denúncias de genocídio como fantasia, contribuindo para que tais ações (que confirmam o caráter criminoso do regime) ficassem recalcadas na memória cultural.
Creio que se deve pesquisar, no futuro, se as correntes iniciativas relativas à justiça de transição, oficiais (a Comissão Nacional da Verdade, por exemplo) e não oficiais (como os escrachos feitos pelo Levante Popular da Juventude) inspirarão um novo ciclo de memória cultural, e se este ciclo terá como ênfase a justiça na forma de punição dos crimes da ditadura militar.
Será necessário também verificar se essas iniciativas produzirão documentos que reproduzam o silenciamento, feito pelo governo militar e seus apoiadores, do genocídio dos povos indígenas.
Tratar-se-á simultaneamente de questão para os cidadãos brasileiros e de objeto de estudo de pesquisadores de variada nacionalidade, e espero que Rebecca Atencio continue entre eles.

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