O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Desarquivando o Brasil XCIII: Índios, Tribunal Bertrand Russell e genocídio


"Nunca antes na história desse país, em menos de um ano, dois caciques foram impedidos de viajar para fora do Brasil", escreveu Henyo Barreto sobre este país nos dias de hoje. Marcos Xukuru e Babau Tupinambá foram impedidos pelo governo brasileiro de viajar para o exterior para participar de eventos políticos em prol dos povos indígenas: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/535493-cacique-e-impedido-pelo-governo-federal-de-participar-da-1o-conferencia-mundial-sobre-os-povos-indigenas
Este cerceamento da atividade política dos índios ocorre em uma legislatura federal em que não há nenhum parlamentar indígena. A próxima legislatura deverá ser semelhante nesse aspecto.
No passado recente, embora sem bater a marca do atual governo, a ditadura militar tentou impedir lideranças indígenas incômodas de fazer denúncias no exterior. No caso provavelmente mais rumoroso, Mário Juruna, o líder Xavante que se tornaria deputado federal e constituinte, foi chamado para participar da quarta edição do Tribunal Bertrand Russell (o filósofo já estava morto há dez anos) que examinaria as denúncias de genocídio de índios no Brasil, em 1980, na cidade de Roterdã. Ainda escreverei sobre esse julgamento, espero. O Tribunal havia sido criado em 1966 para investigar os crimes de guerra no Vietnã e condenara, naquela ocasião, os EUA. Ele, na sua segunda edição, já havia condenado o Brasil (bem como Bolívia, Chile e Uruguai) em razão das torturas aos presos políticos.

Nesta breve nota, lembro que as denúncias do genocídio que ocorria lograram a chegar ao exterior, não obstante os esforços, desde o governo Médici, de negá-las.
Esse esforço contava com a ajuda dos civis favoráveis ao regime ditatorial e genocida. Neste Boletim do SNI sobre o "comunismo internacional", de junho de 1970,  conta-se que Agnelo Rossi, então Cardeal de São Paulo, "disse estar indignado contra o que ele chama 'a calúnia organizada em escalão internacional contra o Brasil' (referindo-se aos artigos sobre torturas, massacres de índios e perseguição religiosa)."; em tal situação, ele via "falta de patriotismo".
O religioso repetia a retórica oficial de considerar as denúncias contra o regime de campanha contra o regime; dessa forma, segundo a legislação de segurança nacional, tratava-se de uma conduta punível como forma de "guerra psicológica adversa".

Felizmente, mais adiante, ele seria substituído por Dom Paulo Evaristo Arns. Vejam o que Frei Betto conta sobre aquele cardeal nesta entrevista a Ricardo Galhardo:
O Rossi ficou hospedado no mesmo lugar onde sempre ficam os brasileiros, chamado Pio Brasileiro, e celebrou uma missa dizendo no sermão que no Brasil não havia tortura, que tudo era uma campanha comunista. Em seguida, depois do sermão, na oração dos fiéis, os seminaristas brasileiros começaram a dizer “rezemos por fulano, assassinado pela polícia nas ruas de São Paulo segundo o ‘Observatório Romano’, rezemos pela sicrana que foi muito torturada segundo a ‘Rádio Vaticana’”, etc. Eles acabaram com o Rossi, pois as fontes eram os próprios veículos de imprensa do Vaticano.
Com essa preocupação com as denúncias internacionais, o governo resolveu impedir, por meio de suas diversas agências, Juruna de viajar. A Funai, militarizada (comandada, na época, pelo coronel Nobre da Veiga, e subordinada ao Ministro do Interior, o coronel Mário Andreazza, que se opôs à viagem), o Ministério das Relações Exteriores (na sua tarefa de negar o direito de ir e vir de oposicionistas, bem como espionar banidos e exilados) fizeram seu papel habitual na ditadura.
O coronel da Funai chegou a dizer que Juruna não tinha conhecimento da situação dos índios...
A Justiça Federal, no entanto, fez cumprir a lei e autorizou Juruna a viajar. Do Brasil, foram representantes do CIMI, Alvaro Sampaio, Darcy Ribeiro, Memélia Moreira, Márcio Souza, Anna Lange e Vincent Carelli. Juruna foi escolhido presidente do tribunal, o que foi um dos fatores que pesou na decisão da justiça brasileira.
Em Rotterdam, não deu outra: o Estado brasileiro foi condenado, em razão de atos de seus próprios agentes e e de particulares como os salesianos.
Neste número de 1980 do Journal de la Société des Américanistes, pode-se ler uma narrativa do que aconteceu. Na imprensa brasileira, há uma interessante matéria de 1980 escrita por Carlos Alberto Luppi para a Folha de S.Paulo sobre os salesianos, http://pib.socioambiental.org/anexos/19046_20110303_125832.pdf'Denúncia atribui massacre indígena a Salesianos", a partir de acusações de Márcio de Souza entregues ao Tribunal Bertrand Russell, a respeito da área do Vale do Rio Negro, no Estado do Amazonas.
Outras matérias do jornalista explica como eles se aliaram a FAB e a FUNAI (http://pib.socioambiental.org/pt/noticias?id=98993 e http://pib.socioambiental.org/anexos/19049_20110303_133153.pdfpara explorar economicamente o trabalho indígena.
Os próprios salesianos admitiram que venderam terras indígenas, no entanto juridicamente inalienáveis: http://pib.socioambiental.org/anexos/3641_20090805_102642.pdf.

Nenhum deles - FAB, Funai, salesianos - estava a cumprir a legislação da época, que não autorizava o genocídio. Por sinal, o genocídio já era crime no Brasil desde a lei 2889
de 1956, que se seguiu à ratificação, pelo Brasil, em 1952, da Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio (ONU, 1948). A ditadura militar nem mesmo necessitou revogar a lei; bastou contar com a complacência das autoridades judiciais e do Ministério Público, historicamente pouco ou nada atuantes em relação aos crimes contra as populações indígenas.
Por isso, não deixa de ser absurda a recente declaração de Felipe Milanez de que a ditadura militar "cumpriu a lei" em termos de remoções forçadas de povos indígenas; "Na época, durante o regime de exceção, a ditadura cumpriu a lei – havia uma previsão legal que permitia a remoção compulsória de povos indígenas no Estatuto do Índio (Lei 6001/73)."
Uma ideia estranha, a de uma ditadura cumprir a lei, uma vez que, sendo um regime autoritário, o que não funcionará serão exatamente os mecanismos que poderiam cobrar a aplicação do direito: o Judiciário não terá independência, os cidadãos que reclamarem serão calados, torturados ou mortos, os jornais que denunciarem serão censurados ou se tornarão alvo de atentados etc.
Essa remoção, em regra, fazia-se com o descumprimento dos requisitos legais. Um dos documentos que comprova essa ilegalidade generalizada é o relatório do Comitê da Verdade de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas, A ditadura militar e o genocídio do povo Waimiri-Atroari, recentemente publicado também na forma impressa pelo próprio Comitê e pela editora Curt Nimuendajú.
Esse povo foi dizimado por construção de estradas, autorização de mineração e a construção da Hidrelétrica de Balbina, ao arrepio dos padrões jurídicos de então. No caso da construção da BR-174, temos este documento autorizando a violência:
A FUNAI foi a mais fiel escudeira do Exército em todo o período da construção, como se pode ler nos noticiários da época.
O Ofício Of. n. 042-E2-CONF, de 21 de novembro de 1974, assinado pelo Gal. de Brigada Gentil Paes, determinou, sem rodeios, em 14 itens, o uso da violência. Veja-se este item: "esse Cmdo, caso haja visitas de índios, realize pequenas demonstrações de força, mostrando aos mesmos os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite." (p. 81-82)
Impactantes são os desenhos das crianças alfabetizadas na língua Kiña por Egydio e Doroti Schwade em 1985 e 1986; depois, foram expulsos da região pela FUNAI, que atendia a interesses da Eletronorte. Os desenhos são verdadeiros testemunhos dos tiros e bombas que se abateram sobre os índios - um deles, com um helicóptero sobrevoando aldeia, foi escolhido para a capa do livro: "Comunidades inteiras desapareceram depois que helicópteros de soldados sobrevoaram ou pousaram em suas aldeias" (p. 35). Ainda hoje, por meio do Programa Waimiri-Atroari, o acesso aos índios é controlado pela Eletronorte e os grupos empresariais que dominam a área.

Apesar dos genocídios indígenas recorrentes na história do país, ainda há negacionistas do racismo no Brasil; ignoram não só a própria sociedade, mas a literatura social deste país, notadamente a abertamente discriminatória e que partia da noção de desigualdade racial, e que ainda se reflete no ensino, em todos os níveis, inclusive o superior: vejam minha experiência no Direito.
Esse pensamento negacionista era oficial na ditadura militar, pois as denúncias de racismo (tanto contra os negros quanto contra os índios) eram consideradas um instrumento do MCI (movimento comunista internacional) contra o país. Escrevi sobre isso já algumas vezes; ao lado, um relatório sobre comunismo internacional do SNI, de outubro de 1971, em que descobrimos que "As esquerdas inventam as mentiras mais deslavadas, com esta em que o Brasil, conhecido universalmente como hospitaleiro e amigo, aparece manchado pelo labéu do racismo e xenofobia."
Neste caso, trata-se  de comentário ao documento do primeiro encontro da  Conferência Latino-Americana da Missão, da Congregação dos Missionários Oblatos de Maria Imaculada, com a participação de delegados do Peru, Brasil, Paraguai, Chile, Argentina e Uruguai, realizado em Santiago do Chile, de 25 a 31 de julho de 1971. O relatório do SNI marcou a "evidente a tentativa de promover a 'experiência socialista' do Presidente ALLENDE, no Chile" e que, no Brasil, os representantes dessa Ordem estavam em São Paulo, Uberlândia e Belém.
Não surpreende, com essa avaliação oficial, que tenha havido prisões no ano seguinte afetando essa Ordem no norte do país. Cito agora artigo de Airton dos Reis Pereira, "Colonização e conflitos na Transamazônica em tempos da ditadura civil-militar brasileira", publicado na revista Clio em 2014:
Nem os padres e as freiras que desenvolviam naquelas comunidades rurais os trabalhos pastorais da Igreja Católica foram poupados do sistema de vigilância e repressão do Exército, como aconteceu com os padres franceses Roberto de Valicourt e Humberto Rialland, da Congregação dos Missionários Oblatos de Maria Imaculada que haviam chegado à cidade de São João do Araguaia, no início da década de 1970, e a irmã Maria das Graças, Dominicana de Monteil, que também morava naquela localidade. Roberto, Humberto e Maria das Graças foram presos e torturados, em 01/06/1972, suspeitos de serem guerrilheiros ligados ao PC do B, só soltos muitas horas depois por meio da interferência do bispo da Prelazia de Marabá, Dom Estevão Cardoso de Avelar.
Faço este aparente desvio apenas para voltar ao assunto: todos sabem que membros da Igreja Católica também foram alvos da repressão política, o que inclui os clérigos que se dedicavam aos camponeses e aos índios (como Dom Tomás Balduíno, recentemente falecido). O CIMI (Conselho Indigenista Missionário) foi visado. Por sinal, ainda na série "o que resta da ditadura", temos a recente invasão de sede regional do CIMI no Acre: http://www.cptnacional.org.br/index.php/noticias/conflitos-no-campo/2271-regional-do-cimi-na-amazonia-ocidental-e-invadida
Essa luta não terminou, e se afigura ainda mais renhida nos próximos quatro anos, seja lá quem vencer o segundo turno das eleições presidenciais, com a eleição triunfal de tudo-o-que-não-presta para o Congresso e outros do mesmo quilate.

Nota: Os documentos referidos neste texto foram pesquisados no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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