O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Escandir o lixo, ou Adriano Escandolara

Nestes tempos de anestesia mental, em que até da poesia se exigem promessas de bem-estar, lembro de dois livros recentes que não entraram nesse promissor nicho de mercado.
Nesta pequena nota, escrevo rapidamente sobre o primeiro, de Adriano Scandolara, Lira de lixo, publicado pela Patuá em 2013 (retirei do sítio da editora a imagem da capa feita por Leonardo Mathias, tão adequada ao livro).
Descobri o autor, que já é um importante tradutor, por meio do twitter e do blogue de poesia Escamandro. Ele nasceu no ano em que foi promulgada a atual Constituição brasileira e vive em Curitiba.
O livro é dividido em seções, às vezes temáticas, às vezes formais. A primeira, "Entulho", apresenta o compromisso ético desta poesia. No primeiro poema ("Da misericórdia"), temos um cu de cachorro; no segundo ("Transcendendo o cinza"), a imagem de uma pica de metal; que tipo de sexo ambos poderiam ter?
O terceiro ("Do progresso nas profissões") responde: uma cópula "transumanista". Neste poema, uma prostituta com uma perna protética comercia o "transerótico".
Se esse louvor ao trans soa bem século XXI, e certamente dialoga com as condições históricas deste momento, há nele algo de uma tentativa de comunhão transgênera de todas as coisas, englobando o animal não humano e o inanimado, na mesma onda universal, in des Welt-Atems wehendem All, mais descendente de Baudelaire (referido algumas vezes nesta poesia - esta lira ecoa de longe as flores do autor francês) do que de Wagner, tendo em vista a presença do grotesco.
Em certos momentos, pode-se sentir um clima mais século XV e XVI, numa tentativa de transmutação alquímica em que o lapis philosophorum revela-se sempre a morte do humano e a vida da matéria, como nos carros libertos da utilidade para o tráfego (alguns dos poemas revelam que o poeta prefere, nos carros, o acidente). Trata-se do caso de "Memento mori":
À frente na calçada escorrendo óleo
do aço em frangalhos, sobras
dos quatro cilindros de um motor
inútil.
Retomando esse tema tradicional, bíblico, Scandolara comete a delicadeza de não colocar nenhuma figura humana no quadro. Essa delicadeza é a poesia.
O livro apresenta também uma pesquisa formal interessante: há glosas não sobre textos concebidos como versos, e sim a partir de pichações de muros ("Muros ou 8 glosas sobre motes de pichações"). Um exemplo é "Elaine puta", que foi comentado por Matheus Mavericco, que compara a alternância de registros em Scandolara a "subir e descer o precipício". Eu acrescentaria que Scandolara não recusa de forma alguma o precipício. O melhor talvez não seja esse, porém, mas o último da seção:
CRISTO REINA
mas não governa
Quase um ready-made. Bela ironia. Talvez um exemplo de humor judaico... O livro, devo dizer, tem muitos momentos engraçados: "A sabedoria tem osteoporose" ("Poema pedagógico"), "[...] a idade tirou os dentes/ mas aumentou o preço do boquete" (o hilstiano, apesar do título de William Blake, "Canção de experiência"), "O ralo do chuveiro entupiu/ farto de engolir restos de nós" ("Hesitação"), "dorme/ o leviatã,/ com uma tremenda dor de barriga" ("Pré-carnaval (2012)").
Há poemas que funcionam especialmente na chave do intertexto. "Mais uma carniça", por exemplo, remete a Baudelaire e ao célebre "Uma carniça". Relendo Scandolara no clima de "mes amours décomposés", a contemplação dos restos de pombo no asfalto da cidade, tema visitado por Donizete Galvão (com que dialoguei na recente antologia coletiva a partir deste autor), torna-se algo além de uma crítica ao progresso (o que está presente neste livro também). O poema ganha a aura do sexo transumanista, a se dedicar também a cadáveres desfeitos de animais. É interessante, em termos heréticos, que o faça com o símbolo do Espírito Santo.
O livro apresenta alguns dos defeitos típicos de estreias de poeta: uma sensação de que o autor quis esvaziar gavetas, pegadas visíveis das influência que passaram por essa poesia, a literatice ocasional (ao revisitar explicitamente certos mitos), além do grande número de epígrafes e dedicatórias, que funcionam como passes de entrada no mundo da literatura.
No entanto, a curiosa aliança de ereção e heresia logra êxito na maior parte do tempo, como em "Ode à serpente", último poema do livro, de que transcrevo o final:
rastejar
---------a espinha sustentando a verdade
quebrando no meio
o pescoço
--------quebrando no meio
o rosto preso virado pra baixo
----------------------------------rastejar
seria talvez canção
este resto de voz
-----------------alhures,
sem suas plumas de corvo
-------------------------estes versos
pobres e feios.
Aqui, nessa indeterminação sintática, ele transforma a imagem da serpente com plumas, pois elas são de corvo e, mais do que isso, esta serpente é, de fato, mais trivial, como o cão de Cabral.
O elogio do trivial e da sarjeta é moderno, e está presente desde o título. Mais contemporânea é a ideia de comparar a poesia ao resto de voz do rato que é morto e devorado pela serpente. Boa imagem para o século XXI. Afinal, "[...] o gozo pertence/ ao que tudo consome,/ cascos de um cavalo pálido/ pisoteando a calçada/ imunda de camisinhas usadas." ("Sobre a peste").

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