O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Vida fugidia, experiência curta, ocasião enganosa, o médico deve fazer [...] (Algo como um poema)

Vida fugidia, experiência curta, ocasião enganosa, o médico deve fazer [...]


I

Negros malsãos, índios doentes,
deles cuidar é coisa fina,
à elite branca tão somente
cabe o diploma em medicina.

Os soníferos nos animam,
conquistam muitas pacientes,
assim que ficam inconscientes
provamos sua proteína.

Elite branca não é mito,
comete o delito no corpo
e assina o corpo de delito.

Claro que atendemos o povo,
como a mordaça serve ao grito,
como o transplante serve ao morto.


II

- no estacionamento? - mais pinga...
- três em cima dela? - agora!
- só puta que aguenta três picas.
- coração de mãe, cabe a nossa.

- vamos, que está adormecida,
assim ao menos não nos cobra.
- o que não vê o olho de cima
é o que o olho de baixo prova.

- não é puta, mas a caloura!
- tira foto, e por todo o curso
terá que nos dar repeteco.

- vai ser a nossa monitora.
- esta matéria eu estudo!
- anatomia sob jaleco.


III

Bobagem! Para que dar queixa?
Você ficaria mal vista.
E coisa assim, minha querida,
só acontece com quem deixa.

No campus se encheu de bebida.
Vem reclamar agora? Chega!
O diretor já lhe receita
a medicação abortiva.

Este curso é familiar,
a faculdade nos acolhe,
e quem reclama não se forma.

Antes quiseram expulsar
a seringa, a droga e o chicote.
Mas o bom filho à casa torna.


IV

Aqui, política de cotas?
Sem preconceito, mas desista;
a exclusão não os humilha,
aqui só teriam más notas.

Sem racismo, mas a revolta
na faculdade grassaria
se para quem é da etnia
do porteiro abrissem a porta.

Nossos filhos aqui estudam.
Para que aceitarmos gente
com quem não devem casar?

Que os cotistas não se iludam.
Para a sociedade somente
deve a faculdade formar.


V

Sabemos que tipo de uretra
este aluno preferiria.
Não pode fazer cirurgia.
Este ramo é de quem penetra.

Talvez pudesse ser obstetra,
mas nada de pediatria,
que rima com pedofiilia
a quem não tem a cabeça certa.

Invertidos na faculdade?
Só como corpos para estudo.
Mortos, podiam ser aceitos.

Agora, nos exigem respeito.
Eles inverteram o mundo.
Mas não quem tem a autoridade.


VI

Em febre contínua suores
indicam doença protraída
- Nada ficou para os credores,
nem para a gente demitida!

- Como nas vezes anteriores,
tudo foi para nossa clínica.
A febre, se unida a terrores,
está sujeita a recidiva

- Acha que o governo aceita
investir mais neste hospital?
- Foi sempre assim, chega de ideia,

trinta é o meu percentual.
Febre contínua com dispneia
ou delírio é caso mortal


VII

A puta que aguenta três picas,
a medicação abortiva,
os soníferos que animam,
a droga, o chicote e a seringa,

deles cuidar é coisa fina,
tudo vai para nossa clínica.
Separa quem é da etnia,
na faculdade grassaria.

Este ramo é de quem penetra,
trinta é o meu percentual.
A quem não tem a cabeça certa

investir mais neste hospital.
Só como os corpos que estudo;
eles me amam porque são mudos.

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