O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Etiqueta para escritores em redes sociais

Como não li nada muito esclarecedor sobre este assunto, pensei em identificar, a partir da minha pequena experiência nas redes da internet, os procedimentos de etiqueta em redes sociais que alguns escritores adotam.
Faço-o não para uso próprio, tendo em vista a modéstia de minha condição de autor, mas pelo eventual interesse de jovens literatos, que, espero, por serem mais inspirados, farão coisas muito diferentes das que identifiquei.



1. Convide a todos para "curtirem" páginas com o seu nome: "Lorênia Sirga convidou você para curtir Lorênia Sirga". Todos amarão receber uma sentença como essa, feita apenas de palavras importantes: o seu nome, claro, mas principalmente "você" e "curtir". A vida é curta, mas não para quem sabe fazer convites. Você também os receberá, aceite-os, e a rede estará sendo armada. Em relação à rede, você deverá preferir a posição da aranha, isto é, de quem a tece e amplia sua teia: a literatura abre horizontes! Outros adotarão a outra posição, e desses você viverá, assim como fazem os aracnídeos.
Atenção: O networking é a sintaxe da literatura de hoje. Não o ter significa iletramento. Quanto mais seguidores e amigos, mais letras, ou seja, mais obras. Lembrar-se que os seus livros são pretextos para a verdadeira obra, a sua rede.

2. Crie projetos coletivos bastante inclusivos (como "escritores a favor do mundo") e convide todos para que contribuam com desabafos, garranchos, criações no paint. Sairá um e-book coletivo e seus pares se lembrarão de você sem que seja necessário que leiam o livro. Não o abrir apenas tornará mais doce a lembrança do seu nome e de sua iniciativa nos corações alheios. Você mesmo não deverá lê-lo, nem antes nem depois. A leitura prévia das contribuições poderia tentá-lo a cortar algumas delas (seja por piores do que a média, ou por melhores do que as suas) e trairia o propósito acolhedor. Depois, a própria publicação dispensa o ato de ler: os bons livros existem por si mesmos.
Atenção: Esta regra vale para coletâneas não patrocinadas. Para as patrocinadas, convide os que o convidariam de volta. Sistemas precisam de retroalimentação.

3. É possível que notícias relevantes apareçam nas redes, e mesmo as de altíssima importância, que são as que sopram o seu próprio nome para mais leitores. Antes de tudo, não as retransmita simplesmente: assuma-a como se você fosse a fonte da informação: não dê RT, crie o seu próprio post, não por desrespeito às fontes, mas pela generosidade de emprestar a sua assinatura, já futuramente consagrada, à informação veiculada diante dos olhos de outros.
Atenção: Esta regra não vale para eventuais futuros editores e para críticos, pessoas mais sofisticadas e que, por esse motivo, lograrão reconhecê-lo como autor se você apenas retransmitir os posts deles ou elogiá-los.

4. Informar aos potenciais leitores os detalhes íntimos de seu cotidiano de escritor pode fortalecer os fios da rede, torná-los mais seguros: "derrubei iogurte na primeira página de meu romance", "céu claro, literatura obscura, de que nuvem cairá minha primeira frase?", "meu cachorro latiu e incluí esta manifestação no meu livro aberto para o mundo". A vacuidade das frases permitirá que os leitores as preencham com seus próprios sonhos e aspirações, assegurando a interatividade e impedindo a consolidação da figura do mestre, tão autoritária. Não esqueça das enquetes, tão eficientes para estimular a interatividade: "que nomes devo dar para a gatinha da minha personagem?".
Atenção: É aconselhável citar autores, desde que não concorrentes: "Par délicatesse j'ai pété la vie", de Rembrandt, é uma das dicas, bem como os belíssimos sonetos de Clarice Lispector. As citações sempre servirão para lembrar os leitores de como você é culto, e os outros autores sentir-se-ão atraídos para as oficinas que você dará.

5. Nem tudo deve ser revelado na rede. A literatura exige, algumas vezes, um grau de sutileza e de resguardo que pode ser raro nos fóruns da internet. Ou seja, os grupos de discussão sobre as últimas infidelidades conjugais cometidas por você e seus pares, imprescindíveis para a sociabilidade literária, são assuntos de deep web. Os leitores não precisam saber de tudo, o mistério faz parte da fascinação literária.
Atenção: Apesar da tentação de só usar belas palavras, não escolha o título de nenhum de seus livros como senha para participação nesses grupos. Algum cônjuge pode descobrir e publicar um romance de autoficção depois disso.

6. Quanto a temas políticos, é melhor evitá-los, pois há leitores, jornalistas e júris de editais de todos os partidos, e nenhum deles deve ser discriminado pela literatura. Ela deve ser inclusiva e ampla, já explicamos; caso contrário, não será literatura. Se há governos que mandam tropas de choque contra professores em greve, cuidado com a tentação de comentar o tema: a literatura não está em tudo e deve ser reservada para os campos onde ela pode ser efetiva, ou com que tenha alguma relação. Não disperse sua energia!
Atenção: Pode ser necessário combater escritores que não sabem o seu lugar e adotem uma postura que chamam, pretensiosamente, de participativa. Contra esses, é lícito manifestar-se, pois, para as autoridades, você estará cumprindo o difícil e custoso papel de estar sempre a favor.

7. Crie listas de conselhos para jovens escritores. Além de não dar trabalho algum sob o ponto de vista intelectual, bastando recolher as palavras comuns nas searas cotidianas, elas darão o consolo a quem as lê não só de reconhecer o que já havia sido relido milhares de vezes, mas o júbilo de poder caracterizar a reiteração como reflexão. Trata-se de um exemplo de como arriscar-se no erro pode ser lucrativo para o autor.
Atenção: Sempre acrescente a essas listas a notícia de sua próxima oficina de criação, se ainda tiver alguma, ou de marketing literário e/ou marketing para textos. É melhor insistir nesta última categoria: nada é mais recompensador do que escrever as chamadas que rendem mais clicks na internet. Os maiores talentos de hoje buscam as maiores remunerações de sempre.

8. Acima de tudo não ignorar, nas redes como alhures (se houver ou importar algo como alhures), que não há criação fora do marketing. Temos que assumir este Zeitgeist, que nos recorda que são as palavras que criam o Mundo, e o mundo existiu para terminar numa Mercadoria.

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