O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CXI: Memória, justiça e movimentos sociais

Estou fazendo um curso a distância sobre justiça de transição. Embora meu aproveitamento não recomende os textos que lá escrevi para ninguém (consegui 6 pontos em 100), resolvi transcrevê-los aqui.
Só incluí textos dos fóruns; os trabalhos, apesar da extensão mínima permitida, talvez eu inclua depois.



Creio que o texto de Reyes Mate, "Memoria y justicia transicional", pode ajudar, bem como outras partes de sua obra. Aqui, citarei também Medianoche en la historia (Madrid: Editorial Trotta, 2006), que analisa as Teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin.
A relação entre justiça e memória pode ser concebida a partir de um prisma benjaminiano; o historiador benjaminiano chegaria a duas conclusões: "Em primeiro lugar, que, se o vencedor segue vencendo nem sequer os mortos estariam a salvo [...], porque o herdeiro do vencedor passado tratará de explorar ou ignorar o sentido da morte do morto. E, em segundo lugar, que a luta atual contra o inimigo presente possui força retroativa." (Medianoche em la historia, tradução nossa, p. 204).
Desse lado, a relação entre injustiça e esquecimento dar-se-ia nestas duas trincheiras: em relação aos mortos, aos desaparecidos e aos antigos militantes, pois ignorar suas histórias impossibilita fazer-lhes justiça, e no tocante às gerações atuais, esquecer as injustiças do passado significa cegar-nos para as do presente.
No texto da bibliografia básica, Reyes Mate critica tanto Hobbes quanto Hegel. A Hobbes, a entrega da violência ao Estado em troca de segurança. Quanto a Hegel, a ideia de que as vítimas não importam diante da marcha do progresso: “las víctimas son el precio del progreso y como este es indiscutible, las víctimas son insignificantes”. Nos dois casos, “El Estado, tanto en su versión hobbesiana como hegeliana, han invisibilizado a las víctimas.” (p. 164).
O esquecimento, portanto, significa a retirada dos corpos e dos desaparecimentos, dos lutos realizados e dos lutos suspensos, ao espaço público. Sem o espaço público, não é possível fazer justiça. Nesse ponto, podemos citar o artigo de Roberta Cunha de Oliveira, “Entre as geografias violadas e a resistência pelo testemunho, a necessária ruptura para a transição brasileira”, no ponto em que aborda a “escuta pública dos testemunhos”, que instaura na narrativa a “ruptura com a velha ordem autoritária que impôs o silenciamento e a desmemória. Nesse aspecto, o lugar público do testemunho instaura o ponto de partida para reconstruções de memórias coletivas por meio da transformação das histórias despedaçadas em histórias compartilhadas.” (p. 176).
Sob esse aspecto, pode-se vincular injustiça e esquecimento. Como exemplo disso no processo brasileiro de justiça de transição, podemos recordar a “Manifestação sobre o Relatório da Comissão Nacional da Verdade” que a Comissão Camponesa da Verdade publicou em 25 de novembro de 2014:
Contudo, apontamos nossa preocupação com a informação de que a CNV reconhecerá oficialmente apenas um número aproximado de 430 mortos/as e desaparecidos/as, referentes em sua quase totalidade a nomes e casos já reconhecidos.
A se confirmar esta informação, se consagra a exclusão da maioria de camponeses e camponesas mortos/as e desaparecidos/as das políticas de reconhecimento oficial, dificultando o acesso à justiça de transição.
Destaca-se que a Comissão Camponesa da Verdade entregou relatório circunstanciado de graves violações de direitos humanos dos camponeses como subsídios à CNV, incluindo uma lista de 1.196 camponeses e camponesas mortos/as e desaparecidos/as.
Reivindicamos o reconhecimento oficial de todos os camponeses mortos e desaparecidos no Relatório da CNV.
O trabalho de memória, no caso do Brasil, não está completo, e ele é necessário para que a dimensão da justiça seja estabelecida.

A segunda pergunta exige a comparação entre dois elementos diversos em natureza e finalidade: um movimento social e uma lei, uma lei que serviu para gerar um efeito diferente do que aquele movimento queria.

O movimento pela anistia iniciou-se em 1975 com o Movimento Feminino pela Anistia, capitaneado por Therezinha Zerbini e outras lideranças. Heloisa Greco, no texto “Direito à memória, à verdade e à justiça: a luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita”, da bibliografia básica deste curso, bem explica que este foi mais um dos momentos em que “as mulheres jogam papel de vanguarda na História”.
Relatório secreto do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), de setembro de 1975, sobre palestra de Zerbini em Porto Alegre, indicava que o movimento queria explorar “lado sentimental da mulher", e que ele, "ainda sem expressão e apoio popular, representa mais um desafio e uma contestação aberta aos princípios defendidos pelo movimento revolucionário.". Tal contestação cresceu. O Comitê Brasileiro pela Anistia, com suas representações estaduais, expandiu-se e defendeu uma anistia ampla e irrestrita para os militantes, e que responsabilizasse os torturadores da ditadura. Da mesma forma, substitutivos do PMDB ao projeto governamental, como o de Ulysses Guimarães, não anistiavam “os atos de sevícia ou de tortura, de que tenham ou não resultado morte, praticados contra presos políticos”.
A lei finalmente aprovada, imposta pelo governo, não anistiou os chamados “crimes de sangue” dos que lutaram contra a ditadura militar e, segundo a interpretação que prevaleceu no Judiciário, reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 153 em abril de 2010, proposta pelo Conselho Federal da OAB, estendeu seus efeitos para os torturadores e carrascos da ditadura.
A memória desse processo histórico foi apagada pelo Supremo Tribunal Federal nesse julgamento, que ousou afirmar que a sociedade teria falado “soberana” com a lei de anistia do general Figueiredo.
A respeito da continuidade da violência de Estado, pode-se lembrar das Mães de Maio, movimento social criado em razão das chacinas que ocorreram no Estado de São Paulo em maio de 2006. Esse movimento participou de atividades da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", tendo em vista as preocupações comuns causadas pela continuidade da violência do Estado brasileiro; cito agora o relatório desta Comissão:
O regime democrático permanece realizando chacinas, que atingem preferencialmente os jovens negros da periferia, como denunciou o Movimento das Mães de Maio, nascido do assassinato em massa de centenas de jovens pela polícia militar de São Paulo em maio de 2006:
[...]
A continuidade dos crimes de lesa-humanidade perpetrados pela ditadura e que, impunes até hoje, se perpetuam na democracia, ensejou a instalação da Comissão da Verdade da Democracia “Mães de Maio”, no dia 20 de fevereiro de 2015, para investigar violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro após a ditadura militar. (capítulo “Perseguição à população e ao movimento negros”, p. 22-23)
Com efeito, Débora Silva, das Mães de Maio, participou da entrega do relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, em 12 de março de 2015, quando se afirmou que “sem a apuração dos crimes da ditadura militar e a realização das necessárias reformas no sistema de segurança pública, com a democratização das instituições e seu controle social [...], os crimes de lesa-humanidade permanecem sendo praticados de forma impune na democracia.” (Idem, p. 23).


Resposta a um colega: A caracterização que você faz do Movimento Feminino pela Anistia como feminista é muito controvertida. Therezinha Zerbini, por exemplo, era contrária ao feminismo. É claro que, por ter rompido com papéis de gênero tradicionais, colocando as mulheres na luta política, o movimento avançava a luta e seus efeitos eram favoráveis ao feminismo. Porém, ele era mais feminino do que feminista.
Lembro do artigo de Joana Maria Pedro, "Narrativa fundadores do feminino: poderes e conflitos (1970-1978)", e o cito: "Algumas mulheres que passaram mais tarde a identificar-se com o feminismo começaram sua militância através do Movimento Feminino pela Anistia. Esse movimento, embora tivesse entre suas integrantes algumas mulheres que se identificavam com o feminismo, tinha como presidente uma mulher que dizia enfaticamente não ser feminista."
Por outro lado, as feministas encontravam em outros lugares também resistência, inclusive na esquerda: partidos como o PcdoB as expulsaram.

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