O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CXIV: Estratégias de justiça de transição na Espanha e na América do Sul

Como alguns dos outros textos que incluí neste blogue em dezembro de 2015, trago mais um comentário que fiz no fórum de um curso sobre justiça de transição, que está correndo mais ou menos. Nesse fórum, ainda participaram 13 dos 60 alunos, contando com quem se manifestou intempestivamente, mas o abandono parece estar crescendo.
A atividade era meio impossível: dever-se-ia fazer uma comparação entre Espanha, Uruguai, Chile, Peru no tocante às estratégias de justiça de transição. Um tema desse tipo daria um livro enorme, fiz apenas alguns apontamentos. Talvez algumas das referências que fiz sejam interessantes para quem não conhece o assunto.


Não creio que haja tantas semelhanças assim entre esses países da América do Sul e a Espanha. Há mais similaridades entre os Estados da América do Sul, que não passaram por uma ditadura fascista que durou décadas, que foi o que ocorreu na Espanha, cujo regime nasceu em outra época – a ascensão do nazifascismo na Europa.
No caso do Uruguai, temos um exemplo de confronto entre o político e o jurídico: o povo uruguaio decidiu em favor da lei de anistia, apesar de sua incompatibilidade com o direito internacional dos direitos humanos. Pablo Galain Palermo, no texto “Justicia de transición en Uruguay”, identifica que vigeu nesse país um modelo de esquecimento entre 1985 e 2000. Desse ano a 2005, um modelo de reconciliação, marcado pela Comissão para a paz, sem poder de investigação.
De 2005 até hoje, um período do modelo de persecução penal. A primeira decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos contrária à anistia no Uruguai é de 2011, e o parlamento uruguaio aprovou lei cumprindo a decisão, declarando que os crimes contra a humanidade eram imprescritíveis. Em 2013, porém, a Suprema Corte daquele país anulou dispositivos da lei em nome do predomínio do direito nacional e da irretroatividade da lei penal.
Este é um dos casos referidos no relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. No capítulo sobre a Sentença da Corte Interamericana no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil, lembra-se do importante caso Gelman vs. Uruguai na Corte Interamericana de Direitos Humanos:

Entre os pontos condenatórios, estavam estes: “Em um prazo razoável, o Estado deve conduzir e levar a termo eficazmente a investigação dos fatos do presente caso, a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e administrativas e aplicar as consequentes sanções que a lei preveja”, buscar e localizar María Claudia García Iruretagoyena ou os seus restos mortais, garantir que a lei de anistia não fosse um obstáculo para investigação e sanção dos responsáveis, por sua invalidade diante da Convenção Americana de Direitos Humanos, e a implementação de um programa permanente de direitos humanos para os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário.
A supervisão de cumprimento da sentença, em 20 de março de 2013, constatou que apenas alguns pontos haviam sido atendidos, e que o Judiciário uruguaio estava sendo um obstáculo para o cumprimento da sentença: “a decisão de 22 de fevereiro de 2013 da Suprema Corte de Justiça do Uruguai constitui um obstáculo para o plano acatamento da Sentença”. (http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_3_A-sentenca-da-Corte-Interamericana.pdf)

O grande escritor Juan Gelman, que teve de exilar-se durante a ditadura, perdeu o filho e a nora, que continuam desaparecidos. Ele morreu em 2014, e o Estado uruguaio ainda não cumpriu a sentença.
No Chile o processo de transição teve um grande impulso externo que foi a prisão de Pinochet no Reino Unido em razão do processo na Espanha, conduzido por Baltasar Garzón. Pouco antes, Jorge Correa Sutil podia escrever que “the most prominent political actors in Chile and, in many ways, Chilean society as a whole remain undecided about whether to punish past abuses” (no livro Transitional Justice and the Rule of Law in New Democracies, de 1997, organizado por A. James McDams).
Quando Juliana Passos de Castro e Manoel Severino Moraes de Almeida escreveram “Justiça transicional: o modelo chileno”, a presidenta do Chile ainda não havia anulado o decreto-lei de anistia, o que foi bem recebido. O texto destaca, entre as deficiências, a situação dos índios Mapuche, que continuam a sofrer intensa repressão do Estado (com a aplicação da lei antiterrorismo chilena contra eles), e as violências a mulheres e crianças.
O caso do Peru, embora a Jo-Marie Burt tenha ignorado o fato no artigo “Transitional Justice in Post-Conflict Peru: Progress and Setbacks in Accountability Efforts”, envolve e envergonha o Estado brasileiro, que deu apoio a Fujimori durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. A Comissão de Verdade e Reconciliação, apesar de seu extensivo trabalho – ela recebeu 17 mil depoimentos (Jaudel, Étienne. Justice sans châtiment. Paris: Odile Jacob, 2009) – teve suas recomendações ignoradas pelos governos, bem como a análise sobre as causas da violência (como lembra Audrey R. Chapman na obra coletiva Assessing the Impact of Transitional Justice, de 2009, organizada por ela, Merwe e Baxter).
“Justicia post-transicional en España”, de Clara Ramírez-Barat e Paloma Aguilar, trata da fundamental falta de justiça de transição na Espanha, que “ha venido ignorando toda uma serie de obligaciones hoy en día reconocidas por el derecho internacional, incluyendo la investigación, persecución, sanción y reparación de graves violaciones de derechos humanos”. Mesmo com a lei de memória histórica, de 2007, lamenta que “el Estado no haya asumido la exhumación de las fosas comunes, a pesar de que esta ha venido siendo una de las principales demandas de los colectivos de víctimas”. Como afirmaram José Antonio Martín Pallín e Rafael Escudero Alday em Derecho y nemoria histórica (Editorial Trotta, 2008, p. 10-11):



Hoy sabemos que fueron más de 200.000 las personas asesinadas entre los años 1939 y 1942, que 700.000 estuvieron en campos de concentración, que más de 400.000 fueron encarceladas y que unas 300.000 fueron expulsas de sus postos de trabajo. Sabemos ahora que se trató de un auténtico genocídio por motivos políticos que los vencedores de la guerra ejecutaron sin pudor, ensoberbecidos por la imperial marcha de sus protectores nazis.

Mais curioso a se destacar no caso espanhol, além da impunidade promovida e garantida pelo Estado (o que gerou o escândalo internacional do afastamento do juiz Baltasar Garzón), é a “guerra de memórias”, segundo Mari Carmen Rodríguez: “a persistência de símbolos explorados por Franco no espaço memorial público contemporâneo é igualmente observável”, com uma “persistência do imaginário franquista” (na obra coletiva Culture et mémoire, organizada por Hähnel-Mesnard, Liénard-Yeterian e Marinas em 2008). Ocorre algo parecido no Brasil, o que foi objeto da primeira tarefa deste curso.
É curioso que o curso tenha escolhido Espanha e não Portugal para comparação; talvez pelo fato de em Portugal ter ocorrido uma revolução, e que ela tenha sido uma notícia incômoda no Brasil de 1974, sem nem mesmo uma figura real para assegurar um pacto? A Espanha, para Juan J. Linz e Alfredo Stepan (A transição e consolidação da democracia: a experiência do Sul da Europa e da América do Sul, publicado pela Paz e Terra em 1999), “o caso paradigmático para o estudo das transições democráticas efetuadas por meio de pactos e das consolidações democráticas rápidas”. Talvez o caso espanhol tenha parecido ser mais relevante para entender a transição brasileira, apesar de ela ter sido excepcionalmente lenta – já que a “abertura” começa com Geisel. Resta saber se prosperará a estratégia de fazer investigações por meio da justiça argentina.
Não creio que essas quatro experiências tenham muito em comum, senão:
  • O fato de as Justiças nacionais mostrarem-se em geral muito inferiores à missão que têm de desempenhar (mesmo no Peru, apesar do sucesso do julgamento de Fujimori, Jo-Marie Burt, diante do cenário de impunidade, constata que “Five years after the conclusion of the Fujimori trial, Peru‘s transitional justice scenario is disheartening”);
  • O apoio internacional, seja de organizações, de estruturas estatais, é sempre estratégico, como é demonstra o caso chileno com a prisão de Pinochet;
  • O papel da sociedade civil como impulsionadora da justiça de transição; no caos espanhol, lembra Kora Andrieu que foi por causa dos movimentos de vítimas do franquismo que a lei de memória histórica foi aprovada e que as vítimas puderam fazer opor suas vozes à “memória oficial das elites da transição”, “as memórias marginalizadas e por muito tempo proibidas que colocavam em questão a narrativa nacional de ‘todos culpados’.” (La justice transitionnelle, Paris: Gallimard, 2012).
Creio mesmo que a estratégia de fazer uso de instrumentos e campanhas internacionais é, além de eficaz, completamente coerente com estas questões, pois se trata de crimes contra a humanidade, e não de problemas essencialmente locais. Ademais, o envolvimento da opinião pública é imprescindível, pois as transições tratam, evidentemente, da (re)construção do que é público, ou da própria possibilidade da esfera pública. Trata-se simultaneamente de estratégias e desafios, junto com a reconstrução institucional, que envolve as Forças Armadas e o Judiciário, geralmente tão renitentes em assumir e/ou punir crimes praticados durante os regimes autoritários, ou a seguir linhas políticas e jurídicas de um regime democrático. O Brasil, por sinal, é um exemplo claro dessa "renitência".

[Uma colega criticou o fato de a questão do fórum não ter incluído a Argentina, que seria "exemplar" no campo da justiça de transição. Também achei estranha a exclusão desse país, e lembrei disto, da violência daquela última ditadura.]

Concordo que a proposta é curiosa, ainda mais levando em conta as iniciativas comuns de Alfonsín e Sarney, que justificariam uma comparação entre Brasil e Argentina, ainda mais porque, já desde esses primeiros presidentes civis depois das ditaduras militares, os dois países logo se mostrariam muito diferentes no tocante à justiça de transição. No governo Alfonsín, tendo Carlos Nino como ministro, além da comissão da verdade (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas), já haveria processos criminais contra agentes da repressão, enquanto, com Sarney, tivemos um governo tutelado pelos militares, sem nenhuma comissão desse tipo, muito menos processos - e violência no campo e na floresta.
Antes mesmo disso, a Argentina já era "exemplar". Por exemplo, por causa dos milhares de desaparecidos que a ditadura gerou, foi por causa desse país que a Assembleia Geral da ONU aprovou sua primeira resolução sobre desaparecimento forçado de pessoas:

En 1978, por primera vez la Asamblea General adoptó una resolución sobre la desaparición forzada de personas. La resolución 33/173 exhortaba a los Estados a poner un fin a las desapariciones forzadas, omitiendo mencionar a la Argentina. En 1980 la Comisión de Derechos Humanos creó el Grupo de Trabajo sobre Desapariciones Forzadas o Involuntarias, constituyendo el primer procedimiento especial de Naciones Unidas. Como es sabido, no solo el Grupo de Trabajo continúa en sus funciones en el presente, sino que a partir de ese momento se pusieron en funcionamiento un número considerable de  procedimientos especiales que constituyen una herramienta esencial para el monitorio de los Derechos Humanos. (Micaela Frulli, "Nino Cassese y los albores de la lucha contra las desapariciones forzadas de personas". Derechos Humanos. Ano IV, n. 9, 2015, http://www.infojus.gob.ar/docs-f/ediciones/revistas/DERECHOS_HUMANOS_A4_N9.pdf).


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