O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Inverter o mundo, erguer as vítimas do progresso: Josoaldo Lima Rêgo e "Carcaça"

Eu havia escrito três notas sobre poesia e tremor, a respeito de livros de Leonardo Gandolfi, Guilherme Gontijo Flores e Eduardo Jorge, que foram transformadas em um texto, a que agreguei outros autores, para um dossiê sobre poesia contemporânea brasileira que ficou inédito.
Entre as obras que analisei, está Carcaça (Rio de Janeiro: 7Letras, 2016), de Josoaldo Lima Rêgo.  O livro apresenta poemas de destruição da terra: “Floresta” é “A extinção/ certeira”; “alguém falou de pássaros/ quando devastava a floresta”; “é improvável que reste um rio” (um dos “64 títulos”). A carcaça que dá título ao livro, porém, continua a lutar, e ele termina com um animal extinto, do outro lado do planeta, pela colonização: o Tilacino, o Tigre da Tasmânia. Mesmo “extinto”, “manda lembranças”, e ecoa o primeiro poema, que tem por título a exclamação de Cunhambebe a Hans Staden, “Jauára ichê” (sou um tigre), em justificativa da antropofagia.
A poesia de Josoaldo Lima Rêgo apresenta explicitamente um perfil descolonial. O poema “Torres-García” parte da obra em que o artista uruguaio homônimo inverte a posição da América do Sul no mapa-múndi, realizando uma operação geopolítica e geopoética de inversão do norte, hemisfério do colonizador; Torres-García faz algo de semelhante também na afirmação dos povos originários americanos em obras como “Indoamérica”.
Em Carcaça, os povos originários também aparecem em vários momentos. Eusébio Kaapor, líder indígena assassinado perto de Santa Luzia do Paruá (no Maranhão) em 2015, provavelmente em razão da luta contra a exploração ilegal de madeira em terras indígenas, foi assimilado por Josoaldo Lima Rêgo à própria natureza devastada por meio da razão instrumental, em um dos mais impressionantes poemas do livro: “um rio morre assim, eusébio, com pólvora e razão nas entranhas” (“Eusébio”).
Este livro, porém, aprecia os cientistas ou teóricos que foram para o sul, como Goethe na Itália, ou que simplesmente desapareceram: é o caso de Ettore Majorana (no poema "Quando um italiano desaparece"), o físico italiano que sumiu antes de colaborar em programas de pesquisa colaborativa entre a Itália fascista e a Alemanha nazista.
Os poemas, em geral, são curtos e se esclarecem no conjunto; trata-se de um poeta que escreveu antes um livro do que uma coletânea de poesias (nesse aspecto, Carcaça é bem diferente de Paisagens possíveis, livro do mesmo autor publicado pela 7Letras em 2010, que apresenta um tratamento mais convencional dos espaços geográficos e poéticos). Destaco um poema sobre colonialismo interno, “Nos baixões de Altamira”, que cito integralmente:

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

#ForaTemer em São Paulo e o saque como método de governo

Em 4 de setembro de 2016, participei em São Paulo de uma das manifestações #ForaTemer que ocorreu no país contra aquele que no momento ocupa a Presidência da República. A manifestação, a partir do vão do Masp, desceu até o Largo da Batata pela Avenida Rebouças. Quando ela se dispersava, os manifestantes, a imprensa e os que simplesmente estavam presentes foram atacados pela Polícia Militar.
Não sei bem como foi em outras cidades. Em Belém do Pará, a polícia atirou: https://twitter.com/NoticiasdoPARA/status/771900820518559744
Eu não havia chegado ao Largo quando a repressão começou; ouvi de longe as bombas. E li alguns relatos e notícias:
No dia seguinte, era previsível que as manifestações não seriam a manchete principal de certos grandes jornais, e que O Estado de S.Paulo nem mesmo se daria ao trabalho de destacar uma foto, mesmo pequena, na capa. Note-se também a estratégia dos jornais que tiveram o cuidado de colocar a foto na metade inferior da capa:

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

"O Estado cobra dos olhos/ direitos da bala"





O Estado cobra dos olhos
direitos da bala;
a cegueira mostra aos olhos
como o Estado fala.

Viver na linha de tiro,
moradia crítica,
e o Estado abriga o tiro
na própria política.

Com a bala o Estado vê
enfim corpo adentro,
mas é no chão que revê
seu secreto centro:

o sangue, esteio mais sólido
da cidadania
de governos tão sólidos
quanto a hemorragia.

No entanto, existe a Justiça
e condena a luz
por ousar negar justiça
à ferida e ao pus

que tentarem sediar o Estado
em plena visão.
Tomou os olhos o Estado.
Nada mais verão.