O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

#ForaTemer em São Paulo e o saque como método de governo

Em 4 de setembro de 2016, participei em São Paulo de uma das manifestações #ForaTemer que ocorreu no país contra aquele que no momento ocupa a Presidência da República. A manifestação, a partir do vão do Masp, desceu até o Largo da Batata pela Avenida Rebouças. Quando ela se dispersava, os manifestantes, a imprensa e os que simplesmente estavam presentes foram atacados pela Polícia Militar.
Não sei bem como foi em outras cidades. Em Belém do Pará, a polícia atirou: https://twitter.com/NoticiasdoPARA/status/771900820518559744
Eu não havia chegado ao Largo quando a repressão começou; ouvi de longe as bombas. E li alguns relatos e notícias:
No dia seguinte, era previsível que as manifestações não seriam a manchete principal de certos grandes jornais, e que O Estado de S.Paulo nem mesmo se daria ao trabalho de destacar uma foto, mesmo pequena, na capa. Note-se também a estratégia dos jornais que tiveram o cuidado de colocar a foto na metade inferior da capa:




De fato, assim ela não seria vista na maior parte das bancas de jornais, e cumpriria seu papel de desinformar aqueles que só checam as manchetes à vista nas bancas, e que provavelmente são o maior público dos jornais impressos.
Todos esses periódicos falharam também no teste Eduardo Sterzi de dignidade jornalística: não destacaram a foto de Helio Leandro Ramos resistindo ao jato d'água da PM. A esse respeito, foi uma bela exceção a Agência Democratize: "Helio, sequestrado pela tropa de choque, passa bem: confira sua história".
Houve mais ilegalidades; uma delas foi o método da detenção "preventiva". Jovens e adolescentes foram capturados antes da passeata no Centro Cultural Vergueiro; esses e mais outros que estavam vestidos de preto na Paulista também foram detidos e levados, veja-se, ao DEIC: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=774196606063754&substory_index=0&id=325499670933452
Aventou-se que o perigosíssimo chaveiro do Pateta que estava com os jovens seria uma desrespeitosa alusão ao novo governo federal...
Isso ocorria na ditadura militar, claro; eles foram mantidos incomunicáveis por horas, o que configura outro abuso de poder (e acontecia frequentemente durante a ditadura, ao contrário do que um grupo de jornalistas, em informação que erra grosseiramente a história recente, espalhou). O mesmo abuso de poder, desrespeito às garantias fundamentais dos detidos e às prerrogativas profissionais dos advogados ocorreu nas Olimpíadas: os acusados de atos preparatórios de terrorismo ficaram sem acesso a defensores.
Este vídeo da Ponte, que documentou a ação ilegal das Polícias, mostra a Polícia Civil comportando-se sarcasticamente em relação aos pais: https://www.instagram.com/p/BJ9Ft-vAW53/
Leiam também este texto da Artigo 19: https://www.facebook.com/artigo19brasil/photos/a.150627595096365.32375.150615498430908/688599221299197/?type=3&theater
Descendo a Rebouças, vi estas duas inscrições no mesmo muro, que reproduzo em conjunto, permitindo-me uma analogia política adequada aos tempos;



Quantas pessoas participaram da manifestação? Cem mil segundo Guilherme Boulos, do MTST, um dos organizadores; 40 segundo o DataTemer, em previsão minimalista dos números. Talvez o ex-interino esteja, com tais avaliações, se exercitando para cortes nos direitos sociais, ou talvez esteja acostumado a baixos percentuais em razão de sua popularidade.
Minhas fotos têm má qualidade, porém são fiéis:




Eram milhares, evidentemente. Não sei bem quem éramos. Vi bandeiras do MST, jovens do RUA, militantes do PCdoB, pessoas que eu esperava ver lá. Muita gente, porém, de outras origens, e espero que os sociólogos estejam pesquisando essa população; havia gente do "Volta Dilma", e eram poucos. Houve os que empunhassem a defesa de uma assembleia constituinte - algo bem temerário, julgo, no contexto atual. Havia cartazes de diretas já (retrocedemos a 1984, distante época em que o PMDB apoiava as pautas democráticas) e de greve geral.



É possível que muitos tenham protestado nas ruas em 2013 (como a própria Mídia Ninja, que fez um valente trabalho), quando PT e PSDB se uniram na repressão às manifestações.
"Fora Temer", lema projetado nos prédios, era a divisa que realmente unia as diferentes tribos.




Unia mesmo aqueles que passavam ao lado da manifestação, como esta jovem dentro do ônibus, que civicamente improvisou um cartaz:


Outras pessoas, de sacadas e janelas, faziam o mesmo.
Eu não cheguei até o Largo da Batata, mas ouvi de longe as bombas que a Polícia Militar jogou. A estação de metrô Faria Lima foi fechada pelos ataques policiais: https://www.youtube.com/watch?v=diODEpJSTXU Dessa forma, muitos foram para a estação Fradique Coutinho, onde eu estava. O "Fora Temer" continuou, em som e em imagem, dentro do metrô:


Um lema novo era "Temer, seu otário, o seu governo continua temporário", entoado ao lado de clássicos como este: "Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar"; vejam no vídeo que as pessoas começam a cantá-lo quando se aproximam dos policiais.
A juíza Kenarik Boujikian, seguindo a linha de alguns autores argentinos (de que discordei muito parcialmente em outro lugar), escreveu em "A polícia vandaliza o direito de protesto"
A truculência da ação da polícia contra o primeiro dos direitos fundamentais, o direito de protestar, conectado com o direito de reunião, manifestação e expressão, é para impedir a luta contra o retrocesso em relação aos demais direitos. É tentar tirar a base para a preservação dos demais direitos.
O direito de protestar é o único que pode fazer valer os demais direitos fundamentais, especialmente destinados aos mais vulneráveis e à diversidade.
Esse é um dos problemas: a militarização da polícia não foi desfeita pelos constituintes de 1987-1988, que ainda incluíram a "garantia de lei e ordem" para as Forças Armadas. A esquerda que subiu ao poder em 2003, em notável desperdício da oportunidade histórica, não mudou a situação. O relatório da Comissão Nacional da Verdade, bem como o de outras, como a Comissão do Estado de São Paulo, "Rubens Paiva", sensatamente recomendaram a desmilitarização da polícia, porém o então governo federal engavetou o relatório da CNV, apesar do apoio da desmilitarização entre os policiais das corporações. O apoio dos governadores à manutenção desse tipo de tropa a ser usada contra o povo é suprapartidário. A chacina do Cabula, por exemplo, ocorreu na Bahia governada pelo PT.
Sobre o desperdício do momento histórico daquela esquerda que chegou ao poder, Diego Viana, em interessante texto "Os vencedores de sempre e o resto de nós", que aponta, entre outras coisas, que temos dificuldade de sair da República Velha, aponta o ano de 2010:
Foi o momento em que se consolidou uma escolha no planejamento estratégico petista, atraindo as oligarquias que, pela história de sua fundação, esperávamos que combatesse. O período coincide com a preferência acentuada pelos mamutes (perdão, os campeões nacionais) na economia – na esteira da crise de 2008 – e com o papel inchado de um BNDES incapaz de questionar o sentido da letra “D” no próprio nome. Foi o período em que se apostaram todas as fichas no motor chinês e na condição de fornecedor para os asiáticos do material bruto que alimentava a máquina. Foi o período em que se tentou seduzir a bancada ruralista – em parte, funcionou, como vemos pela tenacidade com que a senadora Kátia Abreu defendeu o mandato de Dilma. Não funcionou o bastante.
No entanto, algo como a abominável construção de Belo Monte, sonho etnocida e ecocida da ditadura militar. por exemplo, foi decidida antes desse momento. Talvez a Carta aos Brasileiros, que preparava Lula I, já marcasse o aceno àquelas forças que se esperava que o PT combateria. Mas concordo que Rousseff trouxe uma radicalização desse modelo, com, por exemplo, o fortalecimento da bancada do latifúndio (ela fez campanha para Kátia Abreu, latifundiária e nova companheira do MST, que quase não conseguiu eleger senadora pelo Tocantins em 2014; a ajuda eleitoral da presidenta deve ter sido fundamental). Sobre a desastrada política do BNDES, lembro do artigo de Consuelo Dieguez para a Piauí.
Erros como esse afetaram a economia, derrubaram a popularidade da presidenta, e abalaram as bases sociais que poderiam tê-la sustentado, traídas de forma bem cristalina logo depois do segundo turno de 2014, com assunção de parte do programa do candidato derrotado.
Sobre o derrotado, lembro sempre da inesquecível fala de Aécio Neves para os aliados de ocasião do governo do PT, em junho de 2014 "suguem mais e venham para o nosso lado". Não se trata apenas de uma frase reveladora da ética desse senhor em particular ou do seu partido, ou daqueles aliados, ou do próprio PT; trata-se simplesmente de como funciona nosso sistema político. Nisso, em outro desperdício do momento histórico, nem Lula no seu auge quis mexer.
Aquele senador por MG bem sintetizou o saque como método (ou fim, talvez) de governo, que tem um de seus traços no patrimonialismo. Velho traço, mas que sabe adaptar-se a estratégias novas, como as que foram seguidas pelos meios de comunicação, que ajudaram a criar este quadro que ridiculariza internacionalmente o Brasil: centenas de milhares foram às ruas pretensamente marchando contra a corrupção em 2015 e, assim, auxiliaram a levar ao poder uma série de investigados e/ou processados e/ou já condenados.
Sobre os meios de comunicação, gostaria de contar uma história. Lembro bem da primeira grande passeata contra Rousseff em 15 março de 2015. Não participei dela, claro, não gosto de eventos com trilha sonora do Lobão. Lembro porque ela ocorreu no domingo seguinte à divulgação do relatório final da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", presidida por Adriano Diogo e coordenada por Amelinha Teles, onde eu trabalhava como assessor.
Os dois grandes jornais do Estado de São Paulo decidiram ignorar o relatório, o que obviamente não fazia sentido algum em termos de pauta, e mostrava como certa agenda política conservadora é decididamente incompatível com o bom jornalismo. Um repórter que ainda estava em um desses diários disse-nos (ele seria demitido meses depois) que todo jornal estava direcionado para as manifestações de domingo, que reuniram, entre outros grupos (pesquisa coordenada por Pablo Ortellado mostrou que boa parte daqueles manifestantes eram, por exemplo, favoráveis aos direitos sociais), nostálgicos da ditadura militar e defensores da tortura e das execuções extrajudiciais.


Jornais e tevês insuflaram aqueles protestos, em gritante contraste com os que ocorrem agora. Trata-se mesmo de uma imprensa com partido, embora não confessado.
Vejam a foto acima; havia outros cartazes congêneres, como os que aludiam a uma "Rede Golpe de Televisão".
O relatório da Comissão denunciava a ditadura, bem como esses jornais, cuja conversão à democracia não parece ter sido completada. Em 2013, esses grandes diários pediram violência contra os manifestantes; o ator e escritor Gregorio Duvivier, em coluna de cinco de setembro, reclamou do fato de a Folha de S.Paulo ter reincidido no erro.
Trata-se do partido da violência assumido por essa imprensa. Afinal, de que outra forma uma ordem tão injusta e um governo ilegítimo poderiam cambalear sem cair, a não ser tentando firmar-se nos movimentos do cassetete e na trajetória da bala?
Nesse caso como em outros, repete-se a tática de denunciar o inimigo tentando lhe atribuir o que o próprio denunciante está fazendo. Priscila Figueiredo, um dos maiores ensaístas brasileiros vivos, em recente análise de um programa de tevê da Globo após o impeachment ("Assim se constrói um novo consenso"), destacou que ele se referia a uma suposta "ferocidade da oposição, palavra que se repetiu mais de uma vez no jornal, assim como o termo pacificação, usado pelo ex-vice — sinônimo da velha reconciliação ou um valor mais alto que se alevanta? Seria algo como a universalização das UPPS com o fim de produzir consenso?".
Concordo com ela. O novo consenso que se quer construir, creio eu, visa tanto a destituição de direitos quanto mais violência e controle; ambos, reciprocamente, são meio e fim. A violência é instrumento para a retirada de direitos, e a retirada de direitos é um meio para se alcançar mais repressão. Nos dois casos, negócios lucrativos (de segurança, claro, mas o quadro é mais largo, pois se acena para o fim de garantias trabalhistas e previdenciárias) esperam a destituinte geral.
Volto agora ao texto de Diego Viana, que me parece muito otimista:
[...] apesar dos pesares e do controle quase inconteste que o patrimonialismo estamental sempre exerceu no país, essa concepção de Brasil que o entourage de Temer pretende cristalizar, nem que seja a ferro e fogo, pode já ter se tornado inviável. Seja em razão de mudanças demográficas ocorridas ao longo de muitas décadas, seja graças a avanços obtidos desde a promulgação da constituição (e particularmente nos governos tucanos e petistas), as expectativas e as condições de funcionamento da sociedade brasileira talvez não permitam mais o tipo de dominação e exploração pressuposto por esse regime, e essa pode ser uma janela de esperança. Talvez os grandes vencedores acabem perdendo, afinal.
Fato é esse que esse patrimonialismo continua a dominar os Poderes instituídos; e, quando Romero Jucá conta (em áudios de delação) que ele tem representação no Supremo Tribunal Federal, e que esse, no fundo, é o "grande acordo nacional", o da impunidade das elites, imprescindível para o saque como governo.
Sob essa perspectiva, as pautas das manifestações parecem limitadas, mesmo a #ForaTodos. Raúl Zibechi fala dessa relação intrínseca entre o patrimonialismo e a violência policial:
Estamos cansado de ver pessoas que chegam a diversos escalões de poder e se corrompem. É evidente que nem todos eram corruptos antes de chegar, seria impossível. O PT do Brasil não era essencialmente corrupto antes de chegar ao governo, mas em muito pouco tempo a corrupção o destruiu moralmente e hoje é um partido acabado, sem a menor possibilidade de voltar atrás, de voltar a ser um partido de luta como foi nos anos oitenta. Por quê? É bem parecido. Só se chega a deputado ou senador, e a partir daí a ministro, se se faz uma campanha muito custosa que é financiada em 80 por cento pelas grandes empresas, sobretudo as empreiteiras brasileiras. Depois lhes "paga" a campanha com grandes obras de infraestrutura. Isso acontece em todo o mundo e não há como evitar. Esses cargos não só se mantêm no poder gerando obras senão também reprimindo os de baixo. Nestes dias se multiplicam as denúncias sobre os crimes nos bairros negros de todo o Brasil, mas em particular onde governa o PT, que são os Estados mais pobres. Não é que os governos sejam especialmente repressivos, mas vivem do apoio das classes médias e dos empresários que os financiam e possuem meios de comunicação vitais para suas campanhas e para manter sua imagem. Esses setores da sociedade apoiam-se nos aparatos repressivos que são estruturalmente racistas e violentos, que não são reformáveis porque são quistos autônomos que se guiam por seus próprios interesses, ligados em geral ao empresariado e ao tráfico de drogas que, como vimos, praticam os mesmos modos de fazer.
[...] Existe uma economia policial, digamos, que permite aos quadros repressivos saquear os mais pobres (roubando-lhes os poucos bens que têm e até sua vida) e beneficiar-se simultaneamente de todos os negócios que apoiam (desde o narco até a prostituição e o tráfico de armas e de órgãos) sem serem perturbados nem pelas classes médias nem pelos empresários [...] sustento que os órgãos repressivos não obedecem verticalmente o poder estatal, gozam de relativa autonomia para regular os de baixo. (tradução minha de trecho de Latiendo Resistencia. Mundos Nuevos y Guerras de Despojo. Oaxaca: Edición Cero, 2015)
A "economia policial" descrita não é um acidente, e sim uma necessidade do sistema. Para proteger um Estado sempre em conflito com suas promessas de legalidade, temos nada menos do que a ilegalidade renitente das forças de segurança, sua recusa à transparência (como o descumprimento da Lei de Acesso à Informação), o seu tratamento da população como inimigo interno, numa doutrina de segurança nacional mais ou menos remodelada; só para ficar com um exemplo recentíssimo, relembro a descrição de Pablo Ortellado da "emboscada covarde", em São Paulo, contra ato do Movimento Passe Livre neste ano: jovens que tiveram fraturas expostas, dentes quebrados e outros ferimentos graves. E o governador, do PSDB, não sofreu nem mesmo ameaça de ser derrubado, apesar de sua reincidência nessas práticas e no uso das instituições do Estado para insuflar e defender as manifestações contra o governo federal que caiu; nelas, a Polícia Militar nem mesmo disfarçou que tem partido: tirou selfies com os manifestantes. Agiu às claras como uma instituição de governo, e não como uma instituição de Estado.
A citação corresponde a um trecho de entrevista de Zibechi em que defende o zapatismo, ataca o Estado (sobra até para David Harvey...) e o colonialismo. Trata-se de pautas que vão além da questão de substituir quem preside o saque no momento.



Nenhum comentário:

Postar um comentário