O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 22 de outubro de 2016

O poeta está morto mas juro que não foi l'azur: Guilherme Gontijo Flores à guache

Depois de ter visto uma resenha que mencionava, com alguns equívocos, este livro, resolvi escrever esta nota. O resenhista julgou que o volume se anunciava como uma obra completa apesar de, já na nota inicial, ele ser apresentado como uma obra póstuma deixada dentro de uma pasta rosa (alusão a Ana Cristina Cesar?) pelo lamentado autor.
Guilherme Gontijo Flores continua vivo, felizmente, e já teve o raro privilégio de lançar este livro póstumo, L'azur blasé ou ensaio sobre o fracasso do humor (Curitiba: Kotter Editorial, 2016; na ficha, 2015), em Curitiba e em São Paulo.
A obra ficcionalmente póstuma integra uma tetralogia (Todos os nomes que talvez tivéssemos), anunciada por Gontijo Flores outras vezes, com Brasa enganosa e Tróiades - remix para o próximo milênio, que conhecemos, e o inédito Naharia, que os organizadores de L'azur blasé anunciam que também publicarão postumamente...
Tratando dessa forma da morte, na dimensão da autoria, este livro encontra uma de suas relações com Tróiades, que encontrava aí seu principal tema e partia de materiais de autores todos mortos. Formalmente, os dois livros são muito diferentes, e surpreende que possam ser partes de um mesmo conjunto. No entanto, além da questão da morte, há outras relações, que provavelmente vão se tornar mais claras quando vier o último volume da tetralogia.
A orelha deste livro apresenta uma foto do poeta com óculos de natação fazendo pose de afogado, e o primeiro poema refere-se a essa imagem, com alusão malandras a Rimbaud e Mallarmé. Em outra das brincadeiras com a intertextualidade, um dos poemas tem o título uma gertrude para bartleby. As referências clássicas também estão presentes no livro deste latinista.
A pasta rosa de l'azur divide-se em cinco partes: "parte da ética", "cítrica", "acadêmica", "etílica", "cataio", "a vida e as opiniões do barnabé guilherme gontijo flores, servidor do estado", "excurso". Os poemas, em geral correspondem às seções, mas nem sempre; algumas vezes, eles estão realmente com ar de incompletos - em nome da qualidade da ficção póstuma, Gontijo Flores sacrifica um pouco a fatura dos poemas e a organização, e creio que acertou em fazê-lo. Mensagens de internet, notas de rodapé, soneto, hai-kai, o livro programaticamente rejeita uma unidade formal.
Cito um trecho de cada parte; o primeiro é todo um poema:

a bên
ção pai
enquan
to não
te co
mo pe
ço tu
do me
nos u
ma voz 
eu disse naum ha mais nada pra fazer
q jah num teja feito LOL
terencio de botecos e outros blefes
msm q dito e feito - o que fazer? =) 
poeta ao molho de laranja
na ceia do antropofágico aníbal
lecter - eis a verdadeira
-------------------fragmentação
a mais interessante fragment
-------------------ação
do sujeito contemporâneo 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Desarquivando o Brasil CXXVIII: Seminário Vala de Perus promovido pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos




Recebi este convite com o pedido de divulgação:
A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, preocupada com o andamento e perspectivas da investigação das ossadas de Perus, convidou a equipe de Arqueologia e Antropologia Forense responsável por este trabalho, para apresentar em um Seminário a situação atual para os familiares e militantes envolvidos com o tema.
O Seminário será realizado na próxima terça-feira, dia 18/10, das 10h às 13h, na Câmara Municipal (viaduto Jacareí, nº 100, sala Oscar Pedroso Horta, 1º subsolo).
Convidamos todos e todas a participarem conosco desta atividade.
O tema é importantíssimo. Trata-se de uma série de escândalos que acusam diversas debilidades do processo de justiça de transição no Brasil. Em primeiro lugar, o escândalo da própria vala, aberta durante a primeira prefeitura de Paulo Maluf, como prefeito nomeado durante a ditadura militar (a eleição para prefeitos de capitais havia sido eliminada pelo AI-3, de 1966), que acabou servindo para ocultar cadáveres de opositores políticos, de vítimas do Esquadrão da Morte e mortos pela epidemia de meningite, que estourou em São Paulo e foi censurada na imprensa, já que notícias tão negativas para o governo não poderiam ser divulgadas, o que teve o efeito de não realizar campanhas de saúde pública para a população. A ditadura também matou por meio da censura.
Cito Luiza Erundina, a prefeita que abriu a vala em 4 de setembro de 1990:

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O banquete como forma de governo


I - Devorados com gosto

Vamos dirigir o país
Gritamos enquanto os que apoiamos
nos pisam
com nossos próprios pés;

(outros
brincam de governo
usando os nossos brinquedos)

Vamos expulsar do país
aqueles que não querem
que dirijamos o país

Gritamos com a voz
dos que nos calam
com nossos próprios tiros;

(a gente brincava de governo,
mas outros
governavam o brinquedo)

Ultimato ao país:
Terras vastas mostrem-se à altura
de serem dirigidas por nós

Bradamos do subterrâneo
onde fomos trancafiados
por aqueles a quem demos a chave do país;

(se o governo é um brinquedo,
onde é que ele quebra?)

Olhem que paralisamos o país
Anunciamos decididos
enquanto corremos da chibata
que fabricamos freneticamente,
o produto mais abundante desta terra;

(parece que o brinquedo veio com defeito,
mas que é assim mesmo
que se torna governo)

O produto mais abundante,
todos já têm
e todos o querem comprar.


II - O banquete, forma de governo

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Desarquivando o Brasil CXXVII: Aquarius e a atualidade do ontem

Eu não queria escrever sobre Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, porque ainda não conheço Recife, infelizmente. No entanto, algumas pessoas me sugeriram escrever alguma coisa e me fizeram ler algumas resenhas cinematográficas.
Curiosamente, muitas não reconheciam a marca do cineasta de O som ao redor: não só os ângulos e os zooms que parecem fazer de cada olhar uma ameaça, a câmera adotando uma poética do conflito ou da insegurança, e o tratamento do som: há muito som ao redor, muito ruído passageiro cuja origem não consegui identificar. Essas estratégias incorporam o aleatório e o acaso, dados imprescindíveis para que tenhamos a ilusão de que a própria vida está nas telas, e não aqueles joguinhos de armar onde tudo se encaixa, artifícios baratos de certo cinema comercial.
Não farei, no entanto, uma resenha cinematográfica, muito menos analisar a excelência das atuações, especialmente o tour de force da grande atriz Sônia Braga. Escrevo esta pequena nota para pensar nos pressupostos arbitrários, mas tão significativos, de certas críticas que li.

  • Criticar o uso da "trilha sonora" como típico de telenovelas sem nem mesmo mencionar nenhuma das peças musicais do filme, muito menos o seu compositor predominante, Villa-Lobos, é de uma superficialidade que talvez encontre correlato nos piores comentaristas de tevê. Note-se que, na festa de aniversário da tia Lúcia, toca-se a música de parabéns de Villa-lobos e Manuel Bandeira (ela volta depois), o que já é um dado político e estético essencial, em vez daquela bobagem estadunidense que é onipresente no Brasil (Adriano Brandão me chamou a atenção deste vídeo com o maestro Iván Fischer corrigindo a musiquinha: https://www.facebook.com/medicitv/videos/10153607377142352/). É chocante a ignorância musical dos críticos que dizem que é tocada uma "musiquinha de parabéns". A protagonista, por sinal, é autora de livro sobre o compositor, com título, de que não me recordo, que alude às músicas que não ouvimos. Fazer ouvir o que mal escutamos talvez seja um traço essencial da poética de Kleber Mendonça Filho.
  • Achar que um filme é ruim porque, no final, não ocorreu o fim da sociedade de classes é de um esquerdismo que não chega a ser juvenil; ele parou na idade dos contos de fadas. Revoluções precisam de uma mentalidade mais adulta.
  • Decretar que o filme é fraco por não ser de esquerda, ou não ser de esquerda o suficiente, é outro caso de esquerdismo, porém senil, de gente de um sectarismo velho, que não ouve Stravinsky porque ele era de direita e não lê Fernando Pessoa porque o poeta era contrário à democracia. A senilidade sectária também existe no lado oposto: gente de direita que não lê García-Lorca...
  • Considerar que a qualidade de uma obra depende de o personagem principal chegar a uma consciência mais completa de si mesmo significa confundir cinema com psicanálise para personagens. Grandes obras sobre a alienação não resolvida foram feitas, inclusive no cinema. Trata-se, aliás, de personagens pungentes.
  • Acreditar que as declarações do autor trazem a verdade sobre a obra é de uma inocência tão assustadora quanto a do segundo item. Se o cineasta diz que retratou uma presidenta impedida em sua personagem principal, espero que a declaração seja fruto de alguma militância, e não de uma convicção profunda, que seria muito equivocada. A presidenta afastada estava do lado das grandes empreiteiras e dos projetos desenvolvimentistas, ecocidas (Belo Monte é só um dos exemplos). Se ela estivesse retratada no filme, seria o personagem que não aparece e mandou licenciar o empreendimento contra o qual luta a personagem principal de Aquarius.
  • Comentar que o filme é fraco porque leva a uma identificação da plateia com a personagem principal pressupõe que o público é homogêneo. Pelo contrário, creio que as questões de gênero (cuidadosamente escamoteadas por boa parte das resenhas que li) podem levar muitas pessoas a terem até repulsa da personagem. A vida sexual da mulher de terceira idade, ou da mulher mastectomizada, ou da mulher tout court continua sendo tabu para muita gente. Pareceu-me belo que o filme não fingisse, na propaganda, ser "para toda família". A divulgação destacou uma conclamação de boicote do filme feita por aquele "lúcido" crítico que escreveu certa vez que Drummond não sabia escrever sonetos...
  • É interessante notar como o filme é diferente do cinema político dos anos 1960 (ainda bem, para que cópias requentadas do cinema novo?), mas ignorar que as questões de gênero fazem parte dessa diferença significa não só ignorar a história do cinema, mas a própria história tout court.