O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Desarquivando o Brasil CXXX: Militar ou "civil-militar"? Continuidades da ditadura

Esta nota foi escrita para a blogagem coletiva #DesarquivandoBr, cuja chamada pode ser lida nesta ligação: https://desarquivandobr.wordpress.com/2016/11/29/nova-mobilizacao-do-desarquivandobr/

Recebi uma coletânea de textos sobre a ditadura militar, e um ou outro autor usa o termo "civil-militar", alguns "empresarial-militar", e vi quem falasse, a partir do livro, em ditadura "civil-empresarial". Entendo o ponto dos que usam as duas primeiras qualificações, mas acho a terceira fruto de uma grave alucinação histórica.
Pena que os argumentos dos autores não eram bons; o que significa, em termos do poder efetivo na administração do país e da configuração dos chamados "objetivos nacionais", que 39 médicos, em 13 anos, tenham frequentado a Escola Superior de Guerra? Isso bastaria para tornar a ditadura "civil-militar"?



Militantes políticos, na época, tinham outra impressão. Gregório Bezerra, que já tinha décadas de militância comunista, nas suas Memórias (São Paulo: Boitempo Editorial, 2011), escreveu: "vejo e sinto que a ditadura militar fascista que tiraniza a maior parte do nosso povo é cada vez mais repudiada pelas massas trabalhadoras e por todos os patriotas, anti-imperialistas e democratas".
Muitos são os exemplos. Vejam esta carta, publicada pelo Comitê Brasileiro pela Anistia - São Paulo, dos presos políticos desse Estado anunciando nova greve de fome em 10 de março de 1979: "No momento em que a ditadura militar esmera-se em descaracterizar-se enquanto tal, acenando com 'abertura política', 'liberdade', 'anistia' etc, somos forçados a lançar mão desse recurso em defesa de uma direito elementar mas fundamental para nós."
A carta encontra-se no acervo Deops/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Jacob Gorender, em Combate nas trevas (cuja edição mais recente foi feita pela Expressão Popular), acentua a questão da militarização do Estado brasileiro, divergindo, porém (creio que com razão), dos que enxergavam na ditadura um caráter fascista:



Fez-se a identificação da ditadura militar com o fascismo. Penso ser uma tese falsa, pois esconde exatamente o mais peculiar do regime político imperante de 1964 a 1985: o comando ostensivo do Estado pelas Forças Armadas (não por um caudilho militar). A direção do Estado não foi monopolizada por um partido fascista - que se torna residual ou desaparece praticamente após a queda do regime fascista -, mas pela instituição permanente detentora do exercício superior da coerção.
Ao invés da fascistização, houve a militarização do Estado.
E essa militarização, evidentemente, acrescenta Gorender, "serviu aos interesses da burguesia brasileira", jamais, se deve lembrar, confortável com a democracia.
Os poucos autores daquela coletânea que empregavam o "civil-militar" não citavam documentos sigilosos produzidos pela ditadura, que mostram, ao menos parcialmente, as entranhas do Estado tal como ele não queria ser visto pela sociedade civil. Seria necessário examiná-los e explicar por que eles mostram, em instâncias como o Conselho de Segurança Nacional e outras, ou no tocante ao Conceito Estratégico Nacional, o franco predomínio das posições das Forças Armadas.
Esse predomínio explicaria, creio, por que a ditadura logo se apressou em tornar os militares um grupo prioritário para as cassações e afastamento com base no primeiro ato institucional, como verificou o Projeto Brasil: Nunca Mais. Cito o tomo III, Perfil dos Atingidos:
Porta-vozes credenciados do regime instaurado em abril de 1964 costumam afirmar que a decisão de partir-se para o rompimento da normalidade institucional, depondo Goulart, foi tomada no exato momento em que as mobilizações nacionalistas e reivindicatórias atingiram as bases das Forças Armadas.
[...]
[...] o saneamento [eu usaria aspas nessa palavra] de focos de discordância no interior das Forças Armadas foi uma das primeiras e prioritárias decisões do regime emergente.
É inequívoco que houve apoio de setores civis para a conspiração que derrubou João Goulart e para os governos militares. Mas esses governos tiveram a sua frente militares e, nos momentos de conflito com civis, aqueles prevaleceram.
Dessa forma, membros da própria Arena (ou seja, da sustentação parlamentar do governo) foram cassados, empresários favoráveis ao governo ou até mesmo golpistas foram atingidos por medidas governamentais (até o Estadão foi censurado, por exemplo), golpistas que eram lideranças civis anticomunistas foram cassadas (como Carlos Lacerda e Ademar de Barros) e Pedro Aleixo foi impedido de assumir a presidência da república, capturada por um triunvirato militar em 1969, em violação frontal às normas constitucionais criadas pela própria ditadura... militar. 
Não por acaso, logo a ditadura se apressou em passar para a Justiça Militar o julgamento de civis. Trata-se de previsão do Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965:
Art. 8º - O § 1º do art. 108 da Constituição passa a vigorar com a seguinte redação:
"§ 1º - Esse foro especial poderá estender-se aos civis, nos casos expressos em lei para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares."
§ 1º - Competem à Justiça Militar, na forma da legislação processual, o processo e julgamento dos crimes previstos na Lei nº 1.802, de 5 de janeiro de 1953.
§ 2º - A competência da Justiça Militar nos crimes referidos no parágrafo anterior com as penas aos mesmos atribuídas, prevalecerá sobre qualquer outra estabelecida em leis ordinárias, ainda que tais crimes tenham igual definição nestas leis.
§ 3º - Compete originariamente ao Superior Tribunal Militar processar e julgar os Governadores de Estado e seus Secretários, nos crimes referido no § 1º, e aos Conselhos de Justiça nos demais casos.
Era nas instituições militares que esses governos realmente confiavam, apesar da cumplicidade de tantos civis, inclusive de muitos juristas. Sobral Pinto, Modesto da Silveira, Rosa Cardoso e outros advogados defensores de presos políticos eram honrosas exceções no meio jurídico.
Acho que chamar o regime que veio do golpe de 1964 de "civil-militar" acarreta não ver sua diferença em relação a algo como o Estado Novo, ou mesmo a diferença entre o golpe de 1964, que foi realmente civil-militar, e o regime que se instaurou depois. Reproduzo a argumentação de Carlos Fico no pequeno e importante livro que ele publicou pela FGV, "O golpe de 1964", em 2014:
[...] não é o apoio político que determina a natureza dos eventos da história, mas a efetiva participação dos agentes históricos em sua configuração. Nesse sentido, é correto designarmos o golpe de Estado de 1964 como civil-militar: além do apoio de boa parte da sociedade, ele foi efetivamente dado também por civis. [...] Entretanto, o regime subsequente foi eminentemente militar e muitos civis proeminentes que deram o golpe foram logo afastados pelos militares justamente porque punham em risco seu mandato. [...] não me parece que apenas o apoio político defina a natureza de um acontecimento, sendo possivelmente mais acertado considerar a atuação dos sujeitos históricos em sua efetivação. Por isso, admito como correta a expressão "golpe civil-militar", mas o que veio depois foi uma ditadura indiscutivelmente militar.
No blogue Brasil Recente, pode-se ler Fico tratar desse assunto mais de uma vez. Entendo que as pessoas que gostam da expressão "civil-militar" queiram dizer: houve apoio de civis; da FIESP; da Globo etc. O MST apoiou Dilma Rousseff; daí, pergunto a Kátia Abreu, poderia se chamar o governo da presidenta impedida como uma república do campesinato?
Lembro também que a maior parte das Comissões da Verdade adotaram o termo ditadura militar; a Comissão do Estado de São Paulo explicou por que razão o fazia na introdução de seu Relatório;
Devemos esclarecer que se tratou de uma ditadura de natureza militar, e não “civil-militar”. Entendemos o apelo desta segunda designação para muitos militantes da luta pela democracia, mas teoricamente não nos parece a mais acertada. Em primeiro lugar, a palavra “civil” é ampla demais, e não especifica que grupos da sociedade civil estariam a exercer um poder autoritário.
Em segundo, eram os militares que dominavam o sistema político: se as elites civis tiveram colaboração intensa no golpe de 1º de abril de 1964, não foram elas que comandaram o poder: a cassação de membros dessa elite, como Carlos Lacerda em 1968, o afastamento de Pedro Aleixo, vice de Costa e Silva, e a tomada da presidência por um triunvirato militar em 1969 foram alguns desses momentos em que os militares deixaram claro que tinham assumido os destinos do país. A agenda desenvolvimentista adotada pelos militares contrariou certos setores empresariais. Ademais, deve-se notar a subordinação política do partido de sustentação parlamentar do governo, a Arena, que, inclusive, teve alguns de seus membros cassados.
Em terceiro, a inadequada denominação “ditadura civil-militar” perde de vista que foi promovida durante esses anos uma militarização de várias instâncias da vida em sociedade, cujos nefastos frutos continuam a ser sentidos nos dias de hoje, especialmente com a noção de “inimigo interno” da doutrina de segurança nacional, aplicada a negros, índios, camponeses, moradores das periferias. [p. 13-14]
A qualificação "civil-militar", se caracteriza bem o golpe, não captura a especificidade do regime que a ele se seguiu, a ruptura que ele significou, em relação à ditadura anterior, no fato de que os militares derrubaram um presidente civil mas não colocaram outro no lugar, e sim resolvessem assumir diretamente o poder e a caneta que assina decretos, contratos, nomeações no diário oficial; tampouco explica o que vem depois e ainda vivemos: o aparelhamento dos militares no Estado brasileiro, presentes em improváveis instâncias, e seus privilégios: vejam que, agora, planeja-se negar o direito à aposentadoria à maior parte dos brasileiros (vejam o texto de Marcelo Perrucci), em atendimento direto às pretensões dos grupos econômicos de previdência privada, sem afetar, porém, grandes responsáveis pelo chamado défice da Previdência, como os militares.

Considerar que a ditadura era militar, que os ditadores eram escolhidos entre e pelos militares, não significa ignorar o que Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat analisam como a "construção social dos regimes autoritários", tampouco apagar o papel das elites civis.
No tocante ao primeiro ponto, boa parte dessa construção social pode ser vista na idealização, na bajulação e no elogio aos militares por vários setores da sociedade civil (inclusive entidades como a ABI). Por sinal, no livro homônimo, que as autoras publicaram em 2010 pela Civilização Brasileira, há quem empregue a expressão "ditadura civil-militar", mas a própria Denise Rollemberg escreve "governos militares".
A caracterização "militar" parece explicar melhor a longa sombra que a militarização do Estado deixou sobre o direito brasileiro: normas jurídicas de diferentes áreas eram produzidas, interpretadas e aplicadas segundo a ideologia da segurança nacional, o que implicava tratar a população brasileira como inimigo interno.

Vejam no Conceito Estratégico Nacional, documento ultrassecreto da administração Costa e Silva a que referi aqui algumas vezes (pode ser baixado por via do Projeto Memórias Reveladas ou no próprio Arquivo Nacional), que a Lei de Imprensa e a Lei de Greve eram consideradas normas de segurança interna, assim como a de segurança nacional...
Em artigo que escrevi sobre o capítulo do Judiciário no relatório da Comissão Nacional da Verdade, analisei um documento sigiloso no acervo do Deops/SP, que transmitia um parecer do Procurador-Geral junto à Justiça Militar, Ruy de Lima Pessôa, que tinha como principal fundamento a predominância das instituições militares sobre as garantias individuais. O artigo foi publicado na Revista do Arquivo em 2016.
O parecer, de 1975, buscava legitimar condutas ilegais da polícia política e fundamentava-se na doutrina de segurança nacional:
[...] o fundamento do arrazoado não tem natureza legal: “as instituições militares estão acima dos interesses individuais”. Dos interesses e dos direitos, pode-se acrescentar. A ilegalidade do regime e de suas práticas encontra nesse trecho uma formulação lapidar, que bem resume a doutrina de segurança nacional.
O caráter militar da última ditadura, que, além disso, controlou a passagem de poder para um civil e acompanhou de perto os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (já escrevi como o Conselho de Segurança Nacional tentou impedir a criação do capítulo dos índios) marcou o regime formalmente democrático que a ela se seguiu.
Vejam um exemplo de aplicação do direito atendendo àquela ideologia marcada pela noção de inimigo interno. A 1a. Turma do STF decidiu que a Justiça Militar é competente para julgar civis pelo crime de desacato (em 2014, dando uma palestra para alunos dos EUA, a convite de Rebecca Atencio, percebi o choque cultural quando descobriram a existência desse tipo penal) na invasão de favelas cariocas pelo Exército.
Trata-se do  Habeas Corpus 112932, julgado em maio de 2014, com voto do relator, Ministro Barroso, que sustentou que "se as Forças Armadas estão em função de segurança pública, devem ter essa segurança institucional". A segurança dos cidadãos, afetados por essa atuação "excepcional" das Forças de ocupação, não era a prioridade dos magistrados.
A 2a. Turma do mesmo Tribunal, em 2013, havia decidido, a meu ver acertadamente, em sentido oposto, no 12.936/RJ, com Celso de Mello como relator, em que se reiterou a jurisprudência existente:
Impende registrar, por necessário, que esta Suprema Corte, defrontando-se com situação assemelhada à exposta nesta sede processual, por não considerar a atividade de policiamento ostensivo função de natureza militar, reconheceu a incompetência absoluta da Justiça Castrense para processar e julgar civis que, em tempo de paz, tivessem alegadamente cometido fatos que, embora em tese delituosos, não se subsumem à descrição abstrata dos elementos que compõem a estrutura jurídica dos tipos penais militares (CC 7.030/SC, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 68.928/PA, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – HC 101.471/PA, Rel. Min. AYRES BRITTO, v.g.):
A aberração jurídica dos mandados de busca coletivos (o último de que tive notícia, expedido contra a Cidade de Deus no Rio de Janeiro, foi revogado em novembro deste ano, por força da atuação da Defensoria Pública do Estado) obedece à mesma inspiração autoritária.
A inflexão militarizante daquele voto de Barroso, acompanhado por parte de seus pares, parece-me atender ao contexto político da época, em que o governo federal então vigente, e que caiu em 2016, usou as forças de segurança contra movimentos sociais e a população civil em geral para proteger empreendimentos hoje investigados seja por violações de direitos humanos (especialmente remoções forçadas), seja por crimes ambientais e crimes contra a administração pública, isto é, as obras das Copas, as obras das Olimpíadas e os empreendimentos planejados pela ditadura militar, as hidrelétricas na Amazônia.
É possível que alimentar essa militarização e engavetar as medidas de justiça de transição recomendadas pela Comissão Nacional da Verdade (inclusive no tocante à Lei de Anistia) foram fatores que fortaleceram os grupelhos que pediram e pedem o oximoro de "intervenção militar constitucional", usados pelos políticos que hoje tomaram ou simplesmente continuaram na administração federal que ainda está de pé no dia de hoje.

P.S.: Talvez o crime de desacato esteja com seus dias contados no país: http://jota.info/justica/desacato-nao-e-crime-decide-stj-15122016

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