O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Nigel Rodley (1941-2017), o Direito Internacional e a tortura no Brasil

Morreu Nigel Rodley (1/12/1941-25/01/2017). O célebre professor universitário, jurista, ativista dos direitos humanos, que trabalhou para a Anistia Internacional (onde estabeleceu o departamento de direitos humanos), para a ONU, era o presidente da Comissão Internacional de Juristas desde 2003...
Vejam este currículo, a notícia dada pela Universidade de Essex, onde lecionou e fundou o Centro de Direitos Humanos, e o obituário elaborado pela Comissão Internacional de Juristas.  Ele foi membro do Comitê de Direitos Humanos da ONU de 2001 a 2016.
Vocês poderão averiguar a qualidade dos jornais que leem pela forma como noticiarão (ou não) neste dia 26 a morte do jurista.
Para os propósitos desta nota, gostaria apenas de lembrar sua independência. Vejam o que ele escreveu sobre a ilícita invasão do Iraque liderada por EUA e Reino Unido em 2002:
I suggest that a simple thought experiment would be sufficient to expose the flimsiness of the case. Imagine that France and Russia, possibly suspecting that intervention might result in greater access to Iraqi oil, and anyway concerned that an unstable Iraq could affect their security, had decided to use force, while the USA, the UK and their allies were trying to keep the diplomatic and inspections routes open. Would authoritative legal opinion in the USA and the UK (especially that of the politically appointed lawyerdom seen to have been in the driving seat) have found the argument, now used against their interests, to have any merit?
O artigo, "The future for International Law after Iraq" é curiosamente otimista em relação ao Direito Internacional. Em relação ao argumento, eu faria a objeção de que o fracasso das políticas implementadas na Ásia a partir da criminosa invasão, como "reconstruir o Afeganistão", derrotar facções islâmicas radicais etc., esse fracasso, tão previsível e esperado, não é sentido, de forma alguma, como um motivo para os governos dos Estados concernentes abandonar a criminosa política exterior belicista e hostil aos direitos humanos, tanto que a mantiveram, mesmo com as mudanças políticas internas. Duas razões me levam a pensar dessa maneira: a) esse fracasso alimenta os pretextos para intervenção em outros Estados (mais guerras, mais atentados) - o malogro, mais do que esperado, é desejado; b) os objetivos apregoados não são os que realmente fundamentam essa política exterior, que responde a uma agenda imperialista com apoiadores poderosos tanto no âmbito interno dessas grandes potências quanto no internacional.
No tocante ao Brasil, Rodley deve ser especialmente lembrado por sua atuação como Relator Especial contra a Tortura. Na minha tese, em que abordei a questão da produção legal da ilegalidade no campo do direito internacional dos direitos humanos, citei bastante o relatório de sua visita ao país em 2000.
Ele visitou apenas o Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará. Ele visitou diversas prisões, cujas condições, como se sabe, ensejaram a proliferação de facções criminosas que reivindicam para si as bandeiras da lei e da ordem (facções como "Paz, Liberdade e Direito"), o que é muito menos absurdo do que parece para o público desavisado que só lembra da questão quando ocorrem rebeliões em presídios, tendo em vista a sistemática violação da Lei de Execuções Penais pelo Estado brasileiro, além da corrupção dos agentes públicos.
A história do Brasil bem mostra que, quando o Estado é criminoso (meus amigos anarquistas dirão que ele é sempre assim), os grupos criminosos fora do Estado facilmente assumem funções típicas dele.
O relatório desta visita de Nigel Rodley ao Brasil (E/CN.4/2001/66/Add.2) é interessantíssimo e contém breves relatos de centenas de casos de tortura com outros crimes, como homicídio e corrupção.
Além de constatar que a herança criminosa da ditadura militar continuava forte no Brasil, um regime baseado em tortura, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados, ela estava presente no Judiciário:
161. Brazilian legislation has many positive aspects. The 1997 Torture Law has characterized torture as a serious crime, albeit in terms which limit the notion of mental torture by comparison with the definition contained in article 1 of the Convention against Torture and Other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or Punishment of 1984. After 24 hours’ detention in a police station, that is, once a judicial warrant for temporary or provisional detention has been issued, a person should be transferred to a provisional (pre-trial) or remand detention facility. Free legal assistance should be available to those who do not have their own. Testimony obtained by torture should be inadmissible against the victims. A forensic medical service should be able to detect many cases of torture. Various categories of persons should be separated from each other (e.g. pre-trial detainees from convicted prisoners). Conditions of detention and treatment of detainees should be humane and, for juveniles at least, an educational experience. The problem is that they are widely ignored, an often complaisant judiciary upholding states’ departure from the requirements on various grounds, be they unavailability of resources to implement the obligations or by placing unsustainable burdens on complainants to prove their complaints. The Torture Law is virtually ignored, prosecutors and judges preferring to use the traditional, inadequate, notions of abuse of authority and causing bodily harm. The forensic medical service, under the authority of the police, does not have the independence to inspire confidence in its findings.
162. Free legal assistance, especially at the stage of initial deprivation of liberty, is illusory for most of the 85 per cent of those in that condition who need it. This is because of the limited number of public defenders. Moreover, in many states public defenders (São Paulo is a notable exception) are paid so poorly in comparison with prosecutors that their level of motivation, commitment and influence are severely wanting, as are their training and experience. Thus vulnerable, the suspects are at the mercy of police, prosecutors and judges many of whom are only too glad to allow charges to be brought and sustained under legislation allowing little scope for removal from custody for long periods of often petty criminals, numbers of whom have been coerced into confessing to having committed more serious crimes than they may have actually committed, if they have committed any at all. 
Ele elogiou a lei brasileira que tipifica a tortura, que havia finalmente sido aprovada, mas notou que o Ministério Público e os magistrados preferiam ignorá-la em favor "noções inadequadas, tradicionais, de abuso de autoridade e lesão corporal". Ademais, os serviços de medicina legal, sob a autoridade da polícia, não tinham (não têm) independência para agir, e as Defensorias Públicas, apesar de alguns avanços, continuam sem a estrutura necessária para realizar seu trabalho.
Esse era o papel, segundo a ONU, desses funcionários públicos na institucionalização das políticas públicas criminosas de segurança do Estado: servir de garante para a tortura efetuada pelos agentes de segurança. A tortura para sistematizar-se, necessita da negação ou da restrição de outros direitos fundamentais além da integridade física, como o da ampla defesa. Na época da ditadura militar, tratou-se de um sistema; cito a introdução do relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva":
Os órgãos de informação e o aparato de repressão formaram um verdadeiro sistema que impede uma análise isolada dos crimes da ditadura militar.
Pode-se verificar essa característica aos menos em dois aspectos: a) Interligação entre diferentes condutas criminosas: por exemplo, a violação, para os presos políticos, do direito à ampla defesa e do acesso ao advogado, na recusa ilegal de atendimento jurídico nos períodos de incomunicabilidade (por sinal, a própria prisão dava-se, em regra, na ilegalidade) era instrumental para a realização das torturas, das execuções e dos desaparecimentos forçados. Por vezes, tratou-se tecnicamente de crimes conexos aos de lesa-humanidade (e não conexos aos crimes políticos, que são os dos opositores à ditadura).
Essa interligação foi percebida em plena ditadura militar, como o demonstrou a longa denúncia escrita pelos presos políticos no Presídio de Barro Branco em 1975, endereçada ao Presidente do Conselho Federal da OAB, chamada de “Bagulhão”, que a CEV “Rubens Paiva” publicou e lançou em audiência pública. O documento, elaborado clandestinamente dez anos antes do Brasil: Nunca mais, nunca foi desmentido pelo governo e demonstrou como as diferentes ilegalidades, crimes e atos repressivos da ditadura militar (violação do direito de defesa, censura, desrespeito às prerrogativas da advocacia) serviam para o funcionamento do sistema de tortura, assassinato e desaparecimento de que dependia o regime.  
No Brasil democrático, Rodley havia constatado um uso sistemático e disseminado da tortura contra os pobres e os negros. Cito o mesmo relatório:
166. Relatively few allegations arose in respect of the federal level or the Federal District. Torture and similar ill-treatment are meted out on a widespread and systematic basis in most of the parts of the country visited by the Special Rapporteur and, as far as indirect testimonies presented to the Special Rapporteur from reliable sources suggest, in most other parts of the country. It is found at all phases of detention: arrest, preliminary detention, other provisional detention, and in penitentiaries and institutions for juvenile offenders. It does not happen to all or everywhere; mainly it happens to poor, black common criminals involved in petty crimes or small-scale drug distribution. And it happens in the police stations and custodial institutions through which these types of offender pass. The purposes range from obtaining of information
and confessions to the lubrication of systems of financial extortion. T
he parts of the country visited by the Special Rapporteur and, as far as indirect testimonies presented to the Special Rapporteur from reliable sources suggest, in most other parts of the country. 
Nigel Rodley havia percebido no Brasil uma certa continuidade em relação à ditadura. Os torturadores do passado não foram punidos, tampouco os de hoje - lembrem-se do julgamento da ADPF da lei de anistia pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, que indica uma persistente cultura jurídica infensa aos direitos humanos, propícia para a produção legal da ilegalidade nesse campo.
Essa cultura jurídica talvez explique, por exemplo, que em 2017, o Ministério Público de São Paulo queira criminalizar a posse de material de primeiros socorros que serviria para atender a vítimas de violência policial.
Como se sabe, boa parte da imprensa apoia a tortura (e estimula a opinião pública a defender a barbárie) e, defendendo esse crime, criticou o relatório da Comissão Nacional da Verdade. O relatório recomendou, entre outras medidas, a desmilitarização da polícia e a independência dos institutos médico-legais. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" também fez recomendações semelhantes.
Após a visita de Nigel Rodley e reformulações dos órgãos de direitos humanos da ONU, o Subcomitê da ONU de Prevenção à Tortura (SPT) esteve no Brasil em 2011 (pois o Estado havia ratificado em 2007 o Protocolo Facultativo da Convenção da ONU contra a Tortura, permitindo esse tipo de fiscalização internacional). O relatório de 2012 sobre essa visita apresentou dados preocupantes:
52. Impunity for acts of torture was pervasive and was evidenced by a generalized failure to bring perpetrators to justice, as well as by the persistence of a culture that accepts abuses by public officials. In many of its meetings the SPT requested, but was not provided with, the number of individuals sentenced under the crime of torture. Individuals interviewed by the SPT did not expect that justice would be done or that their situation would be considered by state institutions. 
O Estado brasileiro acabou enviando os dados sobre os indivíduos processados pelo crime de tortura somente depois da visita, um número constrangedoramente pequeno, que chegou a tempo de entrar no relatório: "Pursuant to information provided by the State party after the visit, in April 2011 there were 160 persons charged with the crime of torture out of a prison population of 512,000.".
O relatório de 2015-2016 do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura adota uma linguagem extremamente diplomática para a constatação de que os "órgãos do sistema de justiça criminal" não estão desempenhando bem seu papel na prevenção e no combate à tortura:
275. Os órgãos do sistema de justiça criminal, principalmente o Ministério Público, o Poder Judiciário e a Defensoria Pública, podem desempenhar um papel fundamental na prevenção e no combate à tortura no Brasil. Essas instituições são fundamentais para a fiscalização periódica dos locais de privação de liberdade, para a responsabilização de pessoas acusadas por práticas de tortura e maus tratos e, sobretudo, para a consecução de processos de desinstitucionalização.
Esse mesmo relatório destaca a importância da visita de Nigel Rodley em 2000 para fortalecer as iniciativas da sociedade civil brasileira contra a tortura:
13. Em abril de 1997, o Brasil definiu o crime de tortura através da Lei Federal 9.455, de modo que o Estado deu um passo importante no reconhecimento sobre a gravidade desta prática. Em maio de 2000, o Relator Especial das Nações Unidas sobre a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, Nigel Rodley, realizou sua primeira visita ao país. A partir de seu relatório, houve forte mobilização social para o enfrentamento à tortura, que culminou na Campanha Nacional Permanente de Combate à Tortura e à Impunidade, uma parceria da sociedade civil e da então Secretaria Especial de Direitos Humanos. Os principais objetivos dessa campanha eram identificar, prevenir, enfrentar e punir a tortura, bem como todas as formas de tratamento cruel, desumano e degradante.
Os relatórios do SPT são confidenciais até que o Estado concernente autorize a divulgação - é a previsão do artigo 16 do Protocolo:

Artigo 161. O Subcomitê de Prevenção deverá comunicar suas recomendações e observações confidencialmente para o Estado-Parte e, se for o caso, para o mecanismo preventivo nacional.2. O Subcomitê de Prevenção deverá publicar seus relatórios, em conjunto com qualquer comentário do Estado-Parte interessado, quando solicitado pelo Estado-Parte. Se o Estado-Parte fizer parte do relatório público, o Subcomitê de Prevenção poderá publicar o relatório total ou parcialmente. Entretanto, nenhum dado pessoal deverá ser publicado sem o expresso
Essa confidencialidade só pode ser quebrada unilateralmente pelo SPT nas condições excepcionais do parágrafo quarto do mesmo artigo (o Estado deixar de cooperar com o SPT). Pois bem: o SPT voltou em 2015 e conseguiu realizar sua visita. O relatório foi enviado em 24 de novembro de 2016 e o atual governo autorizou sua publicação em 10 de janeiro de 2017. No sítio do SPT, ainda não aparece: http://tbinternet.ohchr.org/_layouts/TreatyBodyExternal/CountryVisits.aspx?SortOrder=Alphabetical
Ele pode ser lido aqui: http://www.sdh.gov.br/noticias/pdf/relatorio-subcomite-de-prevencao-da-tortura-1. O documento praticamente prevê a explosão de violência nas prisões; no parágrafo 50, menciona expressamente o Complexo Penitenciário Anísio Jobim em Manaus (administrado por uma empresa privada desde 2014, que financiou a campanha do Governador e aumentou os custos por preso - elementos típicos da privatização de serviços públicos), onde ocorreu uma grande chacina de presos no início de 2017. O SPT denunciou a superlotação e lembrou que em 2002, doze presos haviam sido mortos: "The current overcrowding increases the risk that a similar incident could occur at any time." Não vi nenhum jornalista destacar esse ponto, peço para que me comuniquem as matérias em que ele foi tratado.
Nesse ponto, deve-se tentar entender por que o atual chefe do ministério da justiça pediu, em agosto de 2016, menos pesquisa em segurança e mais armamentos, mas não consigo fazê-lo; afinal, com mais estudos e informações, saber-se-ia como evitar chacinas e, quem sabe, até mesmo estabelecer o princípio da dignidade da pessoa humana, para o qual Nigel Rodley tanto trabalhou e pesquisou. Afinal, Rodley foi um verdadeiro jurista, ao contrário dos "operadores do Direito" que trabalham contra a igualdade e a integridade.
Alguns destes são até cotados, às vezes, para a mais alta magistratura do país.

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