O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

30 dias de canções: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco

30 dias de canções

Dia 4: Uma canção da memória reprimida

"Beco do Mota", de Milton Nascimento e Fernando Brant. Milton, este patrimônio vivo do país, a gravou no seu segundo disco no Brasil, e o terceiro de sua carreira. O segundo, Courage, gravou-o nos Estados Unidos com apoio de Eumir Deodato, quando as portas estavam fechadas para o jovem músico no Brasil.
O disco Milton Nascimento de 1969 era aberto com sua primeira gravação de "Sentinela" (no disco Sentinela, regravá-la-ia em ouras proporções, contando com o Coro de Beneditinos e Nana Caymmi), suficiente para provar que ele era um grande compositor, e que "Travessia", sucesso no II Festival Internacional da Canção, em 1967, não era um acidente de percurso.
Havia mais provas da excelência de Milton, evidentemente, e "Beco do Mota" era uma das canções novas. 
A música não atraiu a atenção da censura, leio no texto de Luiz Maciel no encarte do relançamento do disco, apesar do tema. Milton Nascimento e Fernando Brant falam da memória da antiga zona boêmia de Diamantina, próxima da igreja matriz e, por isso, arrasada no fim daquela década por iniciativa do arcebispo.
Milton, nesta apresentação em 2009, explicou para o público que o Beco do Mota "era o lugar onde viviam as senhoras de vida fácil, e dez metros do Beco do Mota tinha a porta da catedral de Diamantina" e contou que a interpretou para Juscelino Kubitschek, já cassado pela ditadura militar; JK entendeu, naturalmente, a canção e teria rido dizendo "Vocês são de morte, muito bem": https://www.youtube.com/watch?v=4vJzv32qMo8
JK seria morto pela ditadura (a despeito da Comissão Nacional da Verdade, que não investigou o crime, leiam o relatório do Grupo de Trabalho JK para Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva": http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-iv/downloads/IV_Tomo_Relatorio-sobre-a-morte-de-juscelino-kubitschek.pdf). Milton, que teve nessa época sua fase mais engajada politicamente, teria diversos problemas, inclusive censura de canções inteiras.
A obra de Milton Nascimento apresenta várias exemplos dessa memória resistente, que toma como objeto a ser cantado o que outros quiseram reprimir, ou destruir pela segunda vez por meio do esquecimento. Neste caso, o Beco, tomado como espaço dos marginalizados - os "homens e mulheres na noite desse meu país".
Outro exemplo célebre da memória resistente de Milton Nascimento e Fernando Brant é "Saudades dos aviões da Panair" ou "Conversando no bar". Essa canção, a partir do episódio do fechamento forçado dessa empresa de aviação pela ditadura militar, faz uma bela evocação de outras memórias, inclusive da infância. Quase a escolhi para esta nota dos 30 dias de canções.
Trata-se mesmo de uma postura ética de Milton Nascimento, penso, que pode ser constatada tanto nas composições próprias (em relação à memória da luta dos negros no Brasil, o exemplo maior talvez seja a "Missa dos Quilombos", escrita com outros resistentes: Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra), quanto na gravação de cantigas da tradição oral e na escolha de parceiros como Clementina de Jesus.


Milton, como se sabe, foi classificado entre os "artistas contestadores" pelos próprios órgãos de vigilância e repressão da ditadura. Ao lado, pode-se ver um documento que o classifica assim, de 12 de julho de 1977, que achei no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
A informação vinha da Polícia Militar de São Paulo e trata da censura a um espetáculo promovido pelo jornal Versus (periódico de esquerda, foi um dos mais combatidos pela ditadura) e da distribuição de exemplares do periódico nos arredores do Anhembi, onde as apresentações teriam ocorrido. Os outros artistas, também contestadores, eram Chico Buarque, Edu Lobo, MPB-4 e Bibi Ferreira.
Muitos anos depois, Milton, no belo disco que Leandro Braga dedicou à sua obra, Fé cegaregravou o "Beco do Mota" de forma serena, como lembrança distante; ouçam o que Leandro Braga inventa ao piano para encerrar liricamente a canção.
No entanto, a melhor interpretação, segundo Milton, é a de Selma Reis, grande cantora que morreu em dezembro de 2015 (meses depois de Fernando Brant, que faleceu em junho daquele ano). Eu a vi cantando ao vivo essa canção; ela o fez exatamente como nesta apresentação de 1990, que leva mais de seis minutos. Ela não estava preocupada em ser deglutida no fast food musical das rádios FM...
A tevê, no especial, cortou a introdução instrumental, trocando-a pelos comentários de Milton Nascimento sobre a cantora. Antes, mostrava-se Selma Reis interpretando "Meu veneno" com Milton ao violão, uma das parcerias do compositor com Ferreira Gullar, que ela havia gravado em um de seus primeiros discos, há muito fora de catálogo.
De "Beco do Mota", ela retirou a breve ladainha inicial da primeira gravação de Milton (e que ele mesmo dispensaria depois), mas o tempo largo adotado substituiu-a, penso, na evocação da religiosidade. Um tempo desses, que só pode ser encarado por cantores com uma técnica respiratória exemplar, é favorável também para a declamação e para os detalhes; ouçam a delicadeza dos agudos em "arquidiocese" e "noite"; a indignação com que ela diz da noite "colonial vazia".
O que ela faz com a estrutura da música parece-me atender com mais exatidão a letra de Fernando Brant do que o arranjo original. Ela acentua o contraste entre as estrofes que evocam "os homens e as mulheres na noite", mais lentas, e a que trata do fim do Beco: "Nesta praça não me esqueço"; "Acabaram com o beco/ Mas ninguém vai lá morar/ Cheio de lembranças vem o povo/ Do fundo escuro beco/ Nesta clara praça se dissolver". 
Com a intensidade da voz deste contralto, o final da música, uma gradação em que Diamantina, Minas Gerais e, por fim, o Brasil, são identificados ao Beco do Mota, é levado a proporções épicas. Na última vez, "Mota" fica à beira do grito (ela sempre fazia assim, não foi um acidente dessa apresentação), e "viva o meu país" é dito com uma indignação que cala qualquer ufanismo e joga na cara da plateia a denúncia.
No disco O preço de uma vida, foi cortada uma das repetições que ela fazia, e o arranjo datado atrapalha a interpretação; prefiro a regravação de Selma Reis no disco "Todo o sentimento".
Como a obsolescência programada da indústria cultural faz apagar a memória da música brasileira, lembro aqui dos dois melhores discos, para mim, da cantora: A minha homenagem ao Poeta da Voz, dedicado a Paulo César Pinheiro, em que ela vai da mandinga à canção romântica e ao samba (com os parceiros Robertinho Silva, Diogo Nogueira em música de João Nogueira, e Beth Carvalho em um dos maiores sucessos de Clara Nunes), e o disco que fez para Gonzaguinha (Achados e perdidos), em que a variedade vocal da cantora está à altura da riqueza da obra do compositor: paródia de opereta, canções românticas, canções sociais, samba, ritmos do Nordeste (com uma intensa gravação de "Galope"), ela podia cantar tudo, inclusive imitar a voz masculina na sátira social "A cidade contra o crime".

Dia 1: Um retrato à beira da razão, de Tom e Chico
Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda

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