O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

30 dias de canções: Nyro, as drogas e o transporte

30 dias de canções

Dia 8: Uma canção sobre drogas, legais ou não

"Been on a train", de Laura Nyro. Anos atrás, um amigo, poeta e historiador, me chamou a atenção para uma cantora e compositora que eu não conhecia, Amy Winehouse. Era o lançamento de "Rehab". Ouvi, gostei e comentei: a temática da droga e a repetição "no, no, no" lembravam uma canção dos anos 1960, "Poverty train", de Laura Nyro, outra cantora e compositora.
A diferença é que a situação imaginada por Winehouse circunscreve-se ao plano privado e familiar. Nyro enxerga o consumo de drogas em sua dimensão social e retrata pobres, em um trem, consumindo tóxicos. Ela descreve o efeito, no começo da música: se o adicto não for espancado (estamos bem na realidade, não no céu com diamantes), ele pode ver as paredes rugir, sentir seu cérebro no chão... Ao mesmo tempo, o "no, no" soa como uma tentativa de negação, a princípio fraca, https://youtu.be/Jxjk4Ck4vMA?t=1m26s, depois desesperada: https://youtu.be/Jxjk4Ck4vMA?t=2m29s.
O plano familiar surge, de forma interessante, depois de uma visão do Demônio: "Devil played with may brother/ Devil drove my mother". Nesse contexto, é mesmo de esperar que as relações familiares tenham se rompido ou estejam perturbadas.
A estrofe seguinte trata da fome que acomete esses pobres dependentes de tóxicos. Os versos "You're starving today/ But who cares anyway?" poderiam servir para as chamadas crackolândias de hoje e a reação dos indiferentes.
No fim, o eu lírico, que assume o papel do viciado, cala-se sob o impacto da "doce cocaína".
Nyro, contemporânea de Bob Dylan (o "y" do nome dela deve pronunciar-se da mesma forma que o dele), precursora de outras compositoras como Joni Mitchell, não é tão conhecida hoje quanto alguns de seus contemporâneos. Quem só quer da canção popular simples entretenimento, realmente não terá o mínimo interesse em ouvir a obra dela, não obstante suas primeiras canções terem proporcionado tantos sucessos a outros artistas (Blood, Sweat & Tears,The Fifth Dimension, Barbra Streisand...); Nyro, como se sabe, resolveu rejeitar o star system e recusou até mesmo aparecer na televisão, embora convidada por apresentadores como David Letterman. 
Há esta brilhante exceção de 1969, com "He's a runner" e a música que escreveu a partir do assassinato de John Kennedy, "Save the country".
De "Poverty train", há um vídeo da compositora em sua primeira aparição pública profissional, que ocorreu no Monterey Pop Festival em 1967. A banda é fraca - depois, ela nunca mais se apresentaria sem comandar o piano - mas ela cantou bem: https://www.youtube.com/watch?v=0YxIGXISEi4
Nyro gravou-a no seu segundo disco, "Eli and the thirteenth confession", de 1968, com uma alucinante flauta no arranjo de Charlie Calello.
Dito isso, não é essa a canção dela que escolho para os 30 dias de canções, e sim a segunda que escreveu sobre trens e drogas: "Been on a train". O fato de ela ter escrito duas canções com essa temática pode ter vindo tanto de observação do consumo em transportes públicos, ou pelo fato de que as drogas também transportam, pois levam a consciência para outras dimensões: a "trip", em "Poverty Train".
A segunda canção tornou-se música para balé criado por Alvin Ailey, "Cry" ( com a gravação original de Nyro: https://www.youtube.com/watch?v=d8mqPD_tARM), dedicado a "todas as mulheres negras em todos os lugares - especialmente nossas mães".
É de lembrar que a música que encerra o álbum "Christmas and the Beads of Sweat", de 1970, em que Nyro gravou "Been on a train", protesta contra a prisão dos Panteras Negras.
Michelle Kort, autora da biografia Soul Picnic: the Music and Passion of Laura Nyro, afirma que a compositora escreveu a canção inspirada provavelmente na morte de um primo no fim de 1969, em razão da heroína. 
A música encena um contato, no trem, com alguém que está a consumir drogas e que está a morrer lentamente; desta vez, o eu lírico não é do usuário, mas o de quem assiste ao consumo e se sente profundamente afetado; a letra repete "been on a train/ and I'm never gonna be the same".
Ela se dirige ao homem dizendo que há uma luz brilhante no vento do norte que pode levá-lo para casa, mas ele pede para que ela o deixe sozinho. 
A música torna-se mais agitada na estrofe seguinte; ela retruca "You got more tracks on you baby/ than the tracks of this train" e mais, até que ele diz, de forma tranquila, que só tem uma coisa para aliviar a dor; nesse momento, vem inesperadamente o forte súbito no extremo agudo: "No no/ damn you mister/ and I dragged him out the door": https://youtu.be/d8mqPD_tARM?t=3m08s
Depois do solo de piano, a narradora conta que ele morreu, e que ela nunca mais irá para o norte.
Outro compositor talvez acabasse neste ponto, preocupado com a extensão da faixa para o rádio (ela dura quase seis minutos). Não seria o caso de Nyro. Antes de retomar o "been on a train", ela diz que acha que dentro de um ou dois meses partirá um trem para o norte (aqui, evidentemente, uma imagem da terra dos mortos), e que ela ainda ouve as palavras dele: "There's nothing left to say or do". Ela discorda, muito suavemente: "but mister you were wrong/ and I'm gonna sing my song for you", isto é, a mesma canção que estamos ouvindo. 
A música não pôde salvá-lo, mas talvez pudesse conferir algum sentido à situação, àquela viagem.
A canção, pois, oferece dois aspectos da lei universal enunciada por Baudelaire, isto é, a embriaguez, seja, segundo o poeta, de vinho, de poesia ou de virtude, de acordo com as inclinações de cada um. Laura Nyro, que havia experimentado diversas substâncias da categoria baudelairiana "vinho", inclusive o ácido, acabou por preferir a música (droga da categoria "poesia") como fonte da embriaguez. Mas ela também provaria muito da virtude, a terceira categoria da lei universal de Baudelaire, engajando-se nas causas feministas, pacifistas, dos direitos dos animais e também dos povos originários, com a canção contra a remoção forçada do povo Navajo, "Broken rainbow", escrita para o documentário homônimo.
"Been on a train", além de oferecer as mudanças de tempo e de dinâmica típicas da autora, nada comuns na música popular daquele tempo e muito menos na de agora, exige uma boa extensão vocal. Além disso, a abordagem nada escapista deste assunto sério talvez tenham feito que ela não fosse gravada por muitos intérpretes. Conheço apenas Judy Kuhn em seu "Serious Playground: The Songs of Laura Nyro", de 2007 (com uma das melhores versões de "Stoney end"), e Billy Childs, no premiado "Map to the Treasure: Reimaigining Laura Nyro" (que tem até Yo-Yo Ma e Renée Fleming, que ganharam o Grammy com sua participação no disco), de 2014. Childs a gravou brilhantemente com a voz de Rickie Lee Jones e o saxofone de Chris Potter.


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Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
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Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
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