O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Arte urbana e direitos culturais sob o cinza, triste cor das más gestões

O prefeito do Município de São Paulo, João Doria Júnior, parece ter tomado medidas que podem gerar graves prejuízos ao patrimônio público a médio e a longo prazo, como o rebaixamento da Controladoria-Geral do Município, que perdeu o status de Secretaria. Uma vez que a medida dificulta o combate à corrupção e a ilícitos administrativos, não parece configurar um bom exemplo de gestão.
No entanto, já no primeiro mês desta administração municipal, um prejuízo repentino foi realizado de uma só tacada, destruindo um patrimônio que era pelo menos o maior da América Latina: o mural de grafite da 23 de maio.
A 23 de maio era muito feia antes do Mural. Tratava-se da paisagem urbana e, portanto, de bem público, que foi autorizado pela Prefeitura de São Paulo, e no qual ela investiu.
O gestor que destrói o patrimônio de que deveria cuidar disse que o fez por prazer e, na sua sanha de destruição, confessou que deliberadamente exagerou. Ele o declarou, nesta matéria de Gil Alessi no El País: "Pintei com enorme prazer três vezes mais a área que estava prevista para pintar, exatamente para dar a demonstração de apoio à cidade e repúdio aos pichadores."
A declaração, para encobrir a destruição da paisagem urbana, tenta pretender que os graffiti autorizados e encomendados pela Prefeitura para melhorar a paisagem e deixar São Paulo com algo único na América Latina, seriam obras de "inimigos" da cidade, ou que seriam o mesmo que pichações, que obedecem a outra estética e outros princípios políticos.
Dessa forma, a Prefeitura de São Paulo realizou uma política de terra arrasada (ou, nesta situação, acinzentada) que poderia ser enquadrada como vandalismo de Estado, existisse essa categoria.
Em razão do clamor pela destruição da paisagem urbana, o prefeito, comprovando o ato de má gestão, disse que irá financiar outros grafites em substituição ao que ele destruiu - isto é, a Prefeitura vai gastar mais dinheiro por causa da destruição da patrimônio que o Prefeito causou.
Márcio Toscano Franca Filho e Inês Virgínia Prado Soares publicaram, sobre o acontecimento, o artigo "Visão estética do poder público não pode apagar direito ao grafite", destacando a "difícil relação que esse tipo de arte mantém com o poder público, seja ele mecenas, regulador, incentivador, protetor, comprador ou censor, mas também a dificuldade dos governos de garantir e respeitar os direitos culturais".
Neste caso, porém, não se trata de mera dificuldade em garantir, mas de uma vontade declarada pelo chefe do Executivo de violar os direitos culturais.
A vereadora Juliana Cardoso e o deputado estadual João Paulo Rillo, ambos do Partido dos Trabalhadores (que está agora na oposição), apresentaram em 2 de fevereiro uma representação ao Ministério Público para que a instituição investigue o prefeito por improbidade administrativa e crime de dano qualificado contra o patrimônio público:
http://www.viomundo.com.br/denuncias/petistas-vao-ao-mp-contra-doria-por-apagar-grafites-na-23-de-maio-prefeito-violou-a-lei.html
Após essa iniciativa, ocorreu algo que corrobora a representação: o Secretário de Cultura confessou que a sua Secretaria nem mesmo foi consultada sobre a destruição do mural, a qual ocorreu em desrespeito à competência administrativa do órgão e aos princípios mais básicos de gestão. A legalidade administrativa é estrita: um órgão não pode atropelar o outro, muito menos em razão da arbitrariedade do chefe do Executivo.
A lei municipal 14.223, de 26 de setembro de 2006, que "Dispõe sobre a ordenação dos elementos que compõem a paisagem urbana do Município de São Paulo", previu as diretrizes da "colocação dos elementos que compõem a paisagem urbana"; a destruição do mural da 23 de maio violou a quarta diretriz:
Art. 4º. Constituem diretrizes a serem observadas na colocação dos elementos quecompõem a paisagem urbana:[...]IV - a proteção, preservação e recuperação do patrimônio cultural, histórico, artístico,paisagístico, de consagração popular, bem como do meio ambiente natural ou construídoda cidade; 
Em 2014, a Secretaria Municipal de Cultura realizou uma série de contratações para o "Projeto Graffiti 23 de Maio - intervenção visual de arte urbana". Em mais um procedimento para a regularidade administrativa do projeto, buscou-se a autorização para a afixar as placas de identificação dos artistas. Este despacho (citado na representação) foi publicado no Diário Oficial do Município de 24 de dezembro de 2014:
DESPACHO SMDU.CPPU/277/2014TID: 12889083
INTERESSADO: SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA DE SÃO PAULO
LOCAL: AV. 23 DE MAIO
ASSUNTO: PROJETO: "GRAFFITI NA 23 DE MAIO"
PROCESSO DEFERIDO
Com base nas competências da Comissão de Proteção à Paisagem Urbana – CPPU e da Empresa Municipal de Urbanização – EMURB (hoje SP Urbanismo), nos termos dos artigos 35 e 38 da Lei nº. 14.223/2006, bem como do artigo 16 da Resolução SMDU.CPPU/001/2010 (Regimento Interno), e baseado na manifestação da Assessoria Técnica da Gerência de Planejamento da Paisagem às fls. 08 e 09 e a partir das informações constantes do requerimento do interessado, a presidência da CPPU entende que a solicitação não requer submissão ao colegiado da CPPU, uma vez que o enquadramento à legislação está claro nos termos da Lei municipal nº 14.223 de 26/09/06.
Trata o presente de solicitação formulada pela Secretaria Municipal de Cultura referente ao projeto denominado “Grafite na 23 de Maio”, que se caracteriza como uma intervenção artística a ser realizada por iniciativa da Prefeitura, com a pretensão de criar uma galeria de arte a céu aberto. A referida intervenção artística irá colorir cerca de 15 mil m2, em uma extensão de 5.400 metros (mais de 70 muros) com a utilização de spray e látex e para tanto serão envolvidos 12 curadores e cerca de 200 artistas. O projeto pretende valorizar o trabalho individual dos artistas, desta forma, serão confeccionadas placas de identificação com o nome de cada um dos artistas relacionadas com o respectivo trabalho. Um dos muros da Avenida 23 de Maio (a definir) será utilizado como área de créditos do projeto, onde será inserido o logo da Prefeitura de São Paulo, único logo a constar no projeto, por um período de 30 dias. A ação esta prevista para ocorrer em três etapas, entre os dias 06 de dezembro de 2014 e 27 de janeiro de 2015.
A Comissão de Proteção à Paisagem Urbana, em sua 42ª Reunião Ordinária, realizada no dia 17 de dezembro de 2014 deliberou por unanimidade, pela ratificação da Informação SMDU.SEOC.CPPU/1111/2014, considerando tratar-se de manifestação de cunho artístico e sua realização não contraria os dispositivos da Lei 14.223/2006.
1. Com as seguintes condicionantes adicionais:
a) A veiculação da placa informativa com o nome da obra e do artista deverá ter dimensão máxima de uma folha A4 (29,7cm x 21,0cm);
b) O prazo mínimo e máximo para permanência da obra é de 3 (três) meses e 01 (um) ano respectivamente, ficando o interessado responsável pelo restabelecimento da pintura de base, a critério da administração;
c) Reiteramos que a presente autorização abrange exclusivamente as áreas públicas, não estando autorizada a intervenção artística em áreas privadas antes do encaminhamento à CPPU e análise da mesma, de documento de anuência do proprietário;
d) O proponente deverá encaminhar à CPPU a arte final de cada local.
A presente anuência é condicionada a obtenção das demais licenças e autorizações necessárias junto aos órgãos públicos competentes, especialmente da Subprefeitura Sé e Vila Mariana, do Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura (SMC/DPH) e da Companhia de Engenharia de Tráfego - CET.
O interessado deverá ainda, enviar, em até 10 (dez) dias após o evento, fotos impressas e em meio digital das instalações realizadas, para a GPP/SP Urbanismo, Rua São Bento, 405 – 16º andar, sala 161B – CEP 01008-906 – São Paulo, SP.
 
Essa afixação era necessária em razão dos direitos morais dos artistas. Trata-se, porém, de outra questão, aparentemente também violada pelo prefeito João Doria Júnior. Cito a Lei federal 9.610, de 19 de fevereiro de 1998;
Art. 24. São direitos morais do autor:
I - o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;
II - o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;
III - o de conservar a obra inédita;
IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;
V - o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada;
VI - o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem;
VII - o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado.
Desconheço em que termos os artistas celebraram seus contratos com a Secretaria Municipal de Cultura. De qualquer forma, os direitos morais do autor (regulados por lei federal, trata-se de área sobre a qual o Município não pode legislar) continuam mesmo após a cessão total da obra:
Art. 49. Os direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as seguintes limitações:
I - a transmissão total compreende todos os direitos de autor, salvo os de natureza moral e os expressamente excluídos por lei;
Dessa forma, a destruição das obras, além de, em termos de direito administrativo, não poder ser legalmente realizada sem a autorização do órgão competente (o ato administrativo, para ser válido, exige, entre outros requisitos, o agente competente), o que aparentemente não ocorreu, tampouco poderia ser realizada, no campo do direito do autor, em desrespeito ao artigo 24, IV da Lei 9.610/1998.
O grafite corresponde, é claro, a uma obra de arte temporária; porém, como não se realizou nenhum laudo que atestasse que os graffiti estivessem realmente deteriorados (o que, aparentemente, não aconteceu), com a devida comunicação desse laudo para os autores, que mantinham seus direitos morais, a destruição do mural foi, à primeira vista, ilícita.
Os problemas legais não são apenas os mencionados, porém: os direitos culturais da população de São Paulo (modalidade de direitos humanos tantas vezes desprezada no Brasil) também foram violados com a degradação do patrimônio artístico e paisagístico promovida pela Prefeitura de São Paulo.
A lei da ação civil pública, que pode ser proposta, entre outros, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública e por associações da sociedade civil, prevê expressamente a responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados "a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;" (Art. 1º, III).
Afora a ação civil pública, que somente pode ser proposta por determinadas instituições e associações, qualquer cidadão pode propor ação popular em razão dos mesmos fatos. A ação tem como finalidade a proteção ao patrimônio público - um interesse de todo cidadão e, por isso, a legitimidade ativa dessa ação é tão ampla. Neste caso, o prejuízo ocorreu com a destruição do Mural:
Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista, de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.
§ 1º - Consideram-se patrimônio público para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico.
Lembro o artigo 5º da Constituição da República: "LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;"
A despeito do cinza, triste cor das más gestões, os bens de valor estético e artístico gozam de proteção constitucional.
Termino esta nota lembrando que, na cidade do Rio de Janeiro, a nova administração municipal parece também não ter todo o necessário apreço pelo patrimônio cultural, como fez notar a jurista Sonia Rabello (como se sabe, uma das maiores especialistas brasileiras em direito urbano e preservação do patrimônio): http://www.soniarabello.com.br/turismo-e-patrimonio-cultural-como-estamos/

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