O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 7 de março de 2017

30 dias de canções: Tiganá Santana e a memória negra

30 dias de canções

Dia 21: Uma canção favorita com um nome próprio no título 

"Mama Kalunga", de Tiganá Santana, que a gravou no disco "The invention of colour", de 2013.
Pode-se ver o compositor interpretando suavemente (ele canta principalmente com a voz de cabeça) esta canção no programa Ensaio, da TV Cultura, veiculado em 21 de maio de 2015; ele começa explicando a origem da palavra candomblé e o contexto desta música: https://youtu.be/i5EHkPSrWdc?t=29m30s.
Duas das mais importantes cantoras brasileiras já a gravaram: Virgínia Rodrigues, que escolheu essa canção para título de seu disco de 2015, produzido pelo compositor e por Sebatian Notini, e Fabiana Cozza, que a gravou em "Partir", disco desse mesmo ano.
Virgínia Rodrigues ao vivo no programa Metrópolis, da TV Cultura: https://www.youtube.com/watch?v=z0X1UdFHTSI.
O nome próprio, naturalmente, é o da deusa: "Água-mãe, vós que aprimorais o meu desmanche/ Pra que eu sempre possa vos representar". 
A letra navega por imagens relativas à água: "Quem na vida rápida veleja"; "O mistério é gota flutuante"; "Eis-me aqui/ Morrendo de mim ao mergulhar". Coerentemente, a primeira frase traz um bom mergulho no grave. No entanto, a música mantém um perfil sereno, de ondas acariciando barco.
Não sei o que significa o refrão da música, que está em um idioma africano (possivelmente o quicongo); importei discos dele que talvez incluam traduções, mas ainda não chegaram; os de Virgínia Soares e Fabiana Cozza não trazem tradução alguma para os trechos em línguas estrangeiras.
Como aconteceu com outros artistas brasileiros (lembro de certa fase da carreira de Joyce), ele teve mais receptividade no exterior. Tiganá Santana gravou na Suécia e no Senegal. Em uma loja de São Paulo, quando fui procurar discos dele, não sabiam de quem se tratava e perguntaram-me se ele era brasileiro!


Ele é baiano e sua mãe, Irani Santana, foi um dos fundadores do movimento Negro Unificado (MNU) nos anos 1970, como ele conta nesta entrevista dada à revista O Menelick 2o. Ato em 2015. 
O MNU, como se sabe, foi vigiado durante a ditadura militar, a qual buscava calar a denúncia e impedir o combate à discriminação racial. O MNU contava com muitos militantes socialistas, o que era outro motivo de suspeita. Acima, pode-se ver cópia de um panfleto de um ciclo de debates ocorrido em agosto de 1980 na PUC-SP (que foi um espaço importante para os movimentos negros em São Paulo) com Joel Rufino dos Santos (que, antes de morrer, escreveu um depoimento especial sobre sua experiência na ditadura para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva"), Clóvis Moura, Mário Espinosa e Eduardo de Oliveira, promovido pelo Departamento Cultural do MNU.
O documento está no Acervo Deops/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo, assim como o seguinte.


A polícia política de São Paulo registrava como "ocorrências" do "campo político" as reuniões públicas do Movimento Negro Unificado e de outras organizações do movimento negro. Acima, se trata de evento ocorrido na Assembleia Legislativa do Estado em 10 de outubro de 1980, com o tema da violência policial contra os negros, e que contou ainda com a Frente Nacional do Preto, a Comissão de Justiça e Paz, a Federação Nacional dos Servidores Públicos e os alunos negros da PUC-SP.
Creio que o engajamento de Tiganá Santana nas raízes africanas da música brasileira, nesta memória do país, tem um claro caráter político, eis que a repressão aos movimentos negros não terminou com o fim da ditadura militar, tampouco a violência policial dirigida contra a "juventude preta, pobre e periférica", como lembram os movimentos negros e/ou contra a violência policial nos dias de hoje, entre eles as Mães de Maio.
Muitos querem fingir que essas vozes de denúncia e protesto não existem. Está aqui, no entanto, a canção que diz: "Serei eu a voz que nunca seja/ Já que a voz pode remeter ao que não há". 

Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba
Dia 15: Rodgers e Hart e o desejo de arte
Dia 16: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável
Dia 17: Janequin, ir à cidade que grita
Dia 18: Amin, Garfunkel e outros pássaros
Dia 19: Wolf e Mörike imaginando a ilha
Dia 20: A loucura, Schumann e Andersen

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